Vs – A segunda vez do Pearl Jam

 

 

 

Vs., lançado em outubro de 1993, é bem diferente de Ten, o álbum da estreia em 1991. Eddie Vedder, Stone Gossard, Jeff Ament, Mike McCready e Dave Abbruzzese não quiseram repetir a fórmula de um sucesso explosivo e assustador. Ao lado de outras bandas de Seattle, o quinteto jogava com as promessas e os destinos do grunge.

 

A ascensão de Vedder dentro do grupo é acompanhada pela ênfase na atuação política, em um quadro de frágil equilíbrio entre seus integrantes. Lutando pela sobrevivência e pela excelência, a banda produziu um álbum memorável.

 

 

Os sons de Vs.

 

Se Ten é grandioso e rebuscado, Vs. é, no geral, mais direto e nervoso. Nele, não vamos encontrar nada parecido com “Alive”, “Even Flow” e “Jeremy”. Há alguma continuidade com “Why Go” e, em parte, “Porch”. Contudo, mesmo percorrendo amplitudes menores, Vs. tem suas próprias nuances.

 

As músicas que integram o álbum foram quase que totalmente compostas após a finalização da turnê de Ten, durante a qual desapareceram os cadernos com as anotações de Vedder. Assim, os principais capítulos da história de Vs. ocorreram em ensaios na cidade de Seattle nos meses finais de 1992 e no estúdio reservado pela Epic para as gravações, The Site, localizado em Nicasio, nos arredores de San Francisco, Califórnia, onde a banda se instalou em março de 1993.

 

Para ajudá-los na produção, o quinteto convocou Brendan O’Brien, com quem desenvolveria uma longa parceria. O’Brien ganhara alguma projeção ao participar dos registros dos dois primeiros álbuns da Black Crowes e, igualmente como engenheiro e responsável pela mixagem, de Blood Sex Sugar Magik, da Red Hot Chili Peppers. Em Ten, ele havia assumido apenas a mixagem.

 

Durante dois meses, O’Brien quis valorizar o que saísse das jam sessions realizadas no estúdio, aperfeiçoando aquilo que a banda trazia dos ensaios. Ficou combinado que cada música seria finalizada antes que a seguinte começasse a ser registrada. Doze faixas preenchem Vs., que foi primeiramente lançado em vinil (quando o CD era o formato em ascensão).

 

O trabalho começou com “Go”, “Blood”, “Rats” e “Leash”. Esta última teve sua primeira aparição em shows em novembro de 1991, embora a versão final da letra tivesse aproveitado trecho da acústica “Angel”, nunca registrada em álbum. Outra que já havia sido apresentada ao vivo era “Daughter”, composta literalmente na estrada e batizada inicialmente como “Brother”.

 

“Go” faz companhia a “Animal”, as faixas que abrem Vs. São duas pauladas, com guitarras e bateria ferozes. Os riffs de “Animal” vêm de gravações feitas por Gossard em 1990, anteriores ao início da Pearl Jam. Vedder começa e termina quase rapeando (“five against one”, que chegou a ser adotado como título provisório do álbum), algo que remete à colaboração da banda com Cypress Hill para a trilha sonora do filme Judgment Night (também de 1993).

 

“Daughter” vinha na sequência e junto com as anteriores foi um dos destaques do álbum. Iniciando com uma levada folk-country, ela atinge uma intensidade arrepiante. O groove da percussão alterna com a saliência das guitarras. A finalização em fade out permite até hoje a citação de outras músicas nas apresentações.

 

“Elderly Woman Behind the Counter in a Small Town” assume quase totalmente o estilo acústico, com algo de R.E.M. Com os anos, se tornará um hit nos shows. Fechando o álbum, temos “Indifference”, que retoma o clima de “Oceans”, mas em tom mais calmo, os instrumentos formando não muito mais do que uma base para a performance de Vedder.

 

“Blood” é outra música feroz, a mais de todas. Sob um vocal alucinado, a instrumentação oscila entre calmarias e ataques, terminando em pleno caos. “Rearviewmirror” finaliza em frenesi, mas até chegar lá passa por guitarras mântricas que mais adiante tangenciam o sublime. “Leash” contrapõe um trecho cheio de groove a outro mais rock’n’roll, em junção arrebatadora.

 

Sobre ainda mais groove se sustenta “Rats”, com destaque para o baixo de Ament, antes de evoluir para partes dominadas pelas guitarras. É a música que mais revela influências do funk. “W.M.A” é outra faixa com poucos antecedentes na curta história da banda, com sua bateria tribal e acenos para o afrobeat.

 

Em “Dissident”, o quinteto desacelera sem perder peso, guiado pelos riffs de McCready. A enérgica “Glorified G” é uma das faixas em que se juntam a intensidade de bateria e baixo, a força dos vocais e o trabalho das guitarras, marcas da Pearl Jam.

 

Além das 12 faixas que entraram em Vs., das sessões no The Site resultaram a acústica “Hold On” (que ganharia versão eletrificada incluída na coletânea Lost Dogs) e as baladas “Crazy Mary”, versão da canção composta por Victoria Williams (e com participação dela), e “Hard to Imagine” (também incluída em Lost Dogs).

 

Nas mesmas sessões foram registradas duas faixas que só entrariam no terceiro álbum da banda: “Better Man”, que vinha do repertório da primeira banda de Vedder, a Bad Radio, e “Whipping”. Durante a turnê de Vs., surgiriam a maioria das faixas de Vitalogy (1994), gravadas em vários estúdios.

 

Eis aí um fato atesta a criatividade em alto grau dessa fase da trajetória da Pearl Jam. No caso de Vs., temos um álbum que cumpriu muito bem as expectativas levantadas por Ten (envelhecendo melhor, acrescentaria) e que legou canções cuja força se faz ouvir até hoje nos shows da banda.

 

Seu sucesso foi imediato. Além de agradar a crítica musical, Vs. vendeu, só nos EUA, quase um milhão de exemplares nos primeiros cinco dias após seu lançamento, um recorde que se sustentou por cinco anos. Em outubro de 1993, Vedder estampava a capa da revista Time na edição que trazia uma reportagem sobre o impacto do grunge.

 

Das bandas associadas ao gênero, a Pearl Jam era a que mais reconhecimento conquistara entre figuras de outra geração. Assim mostravam os encontros da banda ou de seus integrantes com gente como Keith Richards e Bob Dylan. No início de 1993, Vedder foi convidado para o evento de inclusão da The Doors no Rock and Roll Hall of Fame, apresentando-se ao lado dos três remanescentes do antológico grupo de Los Angeles.

 

Em comparação com In Utero, da Nirvana, lançado um mês antes, Vs. fazia uma transição mais suave dentro da espiral de sucesso. Ao contrário da banda de Cobain, a Pearl Jam não teve problemas com a embalagem de sua obra. Na capa, figura uma enigmática ovelha fotografada atrás de uma cerca. Mas um comentário de Ament nos leva a outras dimensões do álbum.

 

 

A política de Vs.

 

Ament explicou que a capa retratava o sentimento da banda àquela época: muita pressão e prisão. Isso trazia para o primeiro plano uma dimensão política, não imediatamente sensível na sonoridade de Vs. A fim de percebemos essa dimensão, temos que atentar para as palavras e ações que acompanham o álbum.

 

Quanto às letras de Vs., Ronen Givony em seu livro vai direto ao ponto: “É o raro álbum pop que começa com uma discussão sobre tortura, abuso, sequestro, alarme, escravidão, sangue, dor e inimigos. E essas são apenas as duas primeiras faixas”. Nesses temas, confissões sobre a vida pessoal de Vedder se misturam a comentários sociais sobre a realidade estadunidense.

 

“Daughter” e “Leash” tratam de garotas em conflito com suas famílias, retomando as questões de “Why Go”. Elas se fundem com a narrativa de “Rearviewmirror”, na qual Vedder expõe suas próprias experiências traumáticas com adultos, vistas de dentro de um carro em fuga.

 

Além de “Daughter”, duas outras músicas narram histórias. Em “Dissident”, uma mulher, contra seus planos, entrega um homem foragido às autoridades, enquanto que “Elderly Woman Behind the Counter in a Small Town” fala sobre alguém cuja vida está presa em uma cidade mergulhada em marasmo.

 

“Glorified G” é uma crítica ao orgulho armamentista. “W.M.A.”, por sua vez, inspira-se em uma situação presenciada por Vedder em Seattle, uma abordagem racista por parte de policiais. O encarte lembra a morte, pelas mesmas razões, de Malice Green, assassinado em Detroit em 1992.

 

“Rats” serve-se do comportamento de roedores para refletir sobre malvadezas humanas. Em contraponto, “Indifference”, que encerra o álbum, é uma profissão de fé sobre a integridade que pode motivar ações consequentes e comprometidas.

 

A carta de princípios exposta nas letras de Vs. se estendia para as preocupações da banda por onde passou nos idos de 1993 e 1994: apoio a causas de povos indígenas e participação em um concerto de protesto contra a radicalização de grupos anti-aborto. Para a abertura de parte de seus shows, chamaram um duo cujas canções tematizavam o racismo e a homofobia.

 

Foi também durante a turnê de Vs. que se desenvolveram os conflitos que levaram a banda a investir contra a Ticketmaster, acusada de monopolizar a venda de ingressos para concertos nos EUA. Embora perdida no campo jurídico, a batalha chamou atenção para aspectos econômicos do showbizz que mereciam discussão.

 

Ao mesmo tempo em que se preocupava com o acesso de seus fãs aos espaços de shows, a banda, especialmente seu vocalista, demonstrava incômodo com seu público. No show de Seattle de dezembro de 1993, disponível nas plataformas de streaming, Vedder não cede a bajulações: “Bando de estúpidos homens brancos (…) Vocês acham que a vida é uma merda? Vocês têm tudo na palma da mão. Por que não se mexem e fazem alguma coisa?”.

 

“Not For You”, música que aparece na turnê de Vs. e será gravada em Vitalogy, é isso: a banda tentando se afastar do que não quer que lhe acompanhe. Como se proteger do sucesso? Como continuar na estrada depois do que aconteceu com Kurt Cobain?

 

 

Viver, a melhor vingança

 

Vedder era quem mais expressava indignação com certos aspectos do sucesso. Em “Blood”, o assédio da mídia e os exageros do showbizz são experimentados como sanguessugas. Os versos jogam com seu nome: “Paint Ed big / Turn Ed into one of his enemies”.

 

Vedder foi o que mais insistiu em restringir a promoção de Vs. Poucas entrevistas foram concedidas. A turnê não foi além dos Estados Unidos. Houve quatro singles com material retirado do álbum, mas nenhum o antecedeu. Videoclipes não foram produzidos.

 

Durante as gravações, Vedder deu várias escapadas em busca de inspiração, pois o conforto do estúdio (com um campo de golfe por perto e um chef à disposição) o incomodava. O que foi descrito por Abbruzzese como “um paraíso”, para o vocalista parecia mais um lar para idosos.

 

A dinâmica teve algo de paradoxal, pois Vedder foi a pessoa que conquistou mais protagonismo dentro da banda, por conta da exposição na mídia e de seu destaque nos shows. No segundo álbum, ele inaugura sua atuação como instrumentista (guitarra e violão). Isso teve consequências financeiras, pois após Vs. Eddie aumentou sua participação nas receitas.

 

E quem mais sofreu com esse desequilíbrio foi o baterista, que nunca ganhara a simpatia de Vedder. A batata de Abbruzzese foi assando até ele ser dispensado em agosto de 1994. Quase todas as faixas de Vitalogy foram gravadas com ele nas baquetas, mas quando o álbum chegou nas lojas o posto já era de Jack Irons (ex-RHCP).

 

Continuava a saga da banda com a sucessão de bateristas. Estou entre aqueles que coloca Abbruzzese, com sua técnica e feeling, no topo da lista, aquilatando o legado de Ten e contribuindo diretamente em dois dos melhores álbuns da Pearl Jam.

 

Novamente Vedder foi o primeiro a expressar hesitações sobre a continuidade da turnê de Vs., que terminou pouco depois da morte de Cobain. Em 1994, foram menos de 30 shows, apenas dois deles no segundo semestre, em eventos beneficentes. Tratava-se do concerto organizado por Neil Young em prol de uma escola para crianças com deficiências.

 

Neil Young, aliás, como músico e como pessoa, foi uma referência positiva para a banda. Em meados de 1993, após a conclusão de Vs., a Pearl Jam abriu alguns shows de Young na Europa. Além disso, já havia incorporado em seu repertório músicas do canadense, em especial “Rockin’ in the Free World”.

 

Coube a Bono ser a nêmese de Young. Na mesma época, a Pearl Jam abriu quatro shows da U2 na Itália. Vedder odiou toda a parafernália da Zoo TV. A música que ele desejava cultivar não combinava com multidões.

 

A Pearl Jam poderia ter terminado em 1994, sem suportar os dilemas do sucesso.  No entanto, é uma das únicas “bandas de Seattle” que vive até hoje. Ironicamente, o que explica isso inclui aprender a administrar a relação com as multidões.

 

Em 1994 e 1995, os sobreviventes buscaram alternativas ao esquema da Ticketmaster. Em 1996, o quinteto lançaria No Code. Enquanto bandas como Creed e Nickelback se projetavam com um som que parecia (copiava?) a Pearl Jam dos primeiros sucessos, o álbum que muitos consideram seu melhor não traria nenhum hit. Vedder e seus camaradas se mostraram maiores que o grunge.

 

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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