In Utero: Asas e vísceras, (re)nascimento e morte

 

 

 

Nevermind, de 1991, pelo seu êxito comercial e por seu impacto na música pop, criou expectativas enormes sobre o seu sucessor. In Utero seria lançado apenas em setembro de 1993. Para aliviar a tensão, em dezembro de 1992, a Nirvana soltou Incesticide, uma compilação de lados-b e sobras de estúdio.

In Utero não se saiu nada mal nas paradas, atingindo o primeiro lugar na Billboard americana e no Reino Unido. Mas ficou bem abaixo do estrondo de Nevermind. Na verdade, isso foi algo pretendido pela banda de Seattle, com repercussões tanto na sonoridade quanto nas letras do seu terceiro álbum, que, por conta da morte de seu ícone maior, acabou sendo o último da Nirvana em vida.

 

 

The Simon Ritchie Bluegrass Ensemble no estúdio

Em uma entrevista para a Rolling Stone em fevereiro de 1992, Kurt Cobain já havia adiantado que o novo álbum trabalharia os dois extremos da banda formada por ele, Krist Novoselic e Dave Grohl: “Terá músicas mais cruas e terá também músicas mais pops”. É uma pista que continua válida para destrinchar as 12 faixas de In Utero.

 

Para começar, notemos que, dessas 12 faixas, nada menos que cinco haviam sido originalmente compostas antes do final de 1991: “Dumb”, “Pennyroyal Tea”, “All Apologies”, “Radio Friendly Unit Shifter” e “Rape Me”. Ou seja, em termos cronológicos, eram mais ou menos contemporâneas a Nevermind.

 

“Rape Me” faz até uma citação a “Smells Like Teen Spirit” e reitera a dinâmica quiet-loud que caracteriza muitas criações da Nirvana. Em In Utero, “Pennyroyal Tea” e “All Apologies” estão na mesma veia, assim como uma faixa de composição mais recente, “Heart-Shaped Box”. Já alguns acordes de “Dumb” lembram “Polly”, ambas de atmosfera calma.

 

Na outra ponta sonora, “Radio Friendly Unit Shifter” faz companhia a “Tourette’s” como faixas que podemos associar diretamente ao punk rock. Também nervosas, mas mais elaboradas, são “Very Ape” e “Frances Farmer Will Have Her Revenge on Seattle”, ambas do grupo de composições mais recentes.

 

“Serve the Servants”, a faixa que abre o álbum, é em si mesma uma síntese dos extremos que a Nirvana buscou trabalhar em In Utero. Soa pesada, mas tem uma melodia pop, com seu refrão embalado por um andamento new wave. Composta provavelmente nas sessões de gravação, não segue a dinâmica quiet-loud, mostrando que a banda não estava acomodada a uma fórmula.

 

Em comparação com Nevermind, duas faixas de In Utero chamam a atenção. “Milk It” é bem quiet-loud, mas em um contraste aterrador, acentuado pelo solo esquálido e desconjuntado da guitarra de Cobain. “Scentless Apprentice” nasce com um riff de guitarra sugerido por Grohl, que contracena com acordes ascendentes e culmina em um refrão de andamento quebrado. Black Sabbath sequestrado pelo pós-punk: ambas têm algo disso. E ambas carregam um peso brutal, insuportável para uma sensibilidade pop.

 

“Milk It” e “Scentless Apprentice” atiçam nossa curiosidade por coisas que se distanciam de Nevermind. Nas edições de In Utero comercializadas fora dos Estados Unidos há uma faixa oculta, “Gallons of Rubbing Alcohol Flow Through the Strip”, espécie de jam em que a Nirvana soa parecida com Pavement. “Marigold”, incluída no single que destacou “Heart-Shaped Box”, é cantada por Dave Grohl, em estilo que antecipa canções da Foo Fighters.

 

“Oh, the Guilt”, gravada em 1992 e lançada em 1993 num EP split com Jesus Lizard, aponta na direção que seria seguida com “Milk It”. “You Know You’re Right”, composta em 1993 e registrada na última passagem da Nirvana por um estúdio, em janeiro de 1994, recorre outra vez ao quiet-loud, mas em uma atmosfera que se aproxima dos tons infernais das faixas mais salientes de In Utero.

 

Se a avaliação de In Utero tendo como parâmetro Nevermind pode parecer injusta, ela é, por outro lado, inevitável, assim como as intermináveis disputas de opinião sobre qual dos dois álbuns seria o melhor. Em mais de um sentido, na realidade, eles são incomparáveis, pois receberam tratamento sonoros muito distintos. Mas, como aponta o livro de Gillian Gaar, é inegável que In Utero nasceu do extraordinário sucesso de Nevermind e, ao mesmo tempo, foi uma reação a ele.

 

Da reação faz parte a contratação de Steve Albini para fazer a gravação do álbum. O estilo de Albini estava associado à crueza que fazia par com o pop do som da Nirvana. Ou seja, nessa opção a balança já pendia para um dos lados da equação. Mais especificamente, o trabalho de Albini com a Pixies em Surfer Rosa (1988) e a Breeders em POD (1990) constavam como referências.

 

Mas, antes de fechar com Albini, a banda chegou a gravar com Jack Endino, que produzira o seu primeiro álbum, Bleach (1989). Os registros, ocorridos no final de outubro de 92, ficaram incompletos, mas alimentaram os rumores sobre o som menos comercial da nova obra.

 

Antes de aterrissar em Minnesota, onde Albini montara seu estúdio, mais gravações foram feitas. Aqui é que entra o Brasil na história da Nirvana. Em meio a sua participação no Hollywood Rock de janeiro de 1993, o trio, assistido por Craig Montgomery, passou três dias nas instalações cariocas da BMG Ariola. Albini recebeu a fita que resultou dessas sessões, selando o acordo com a banda ao retribuir com os registros de Rid of Me, sua colaboração com PJ Harvey.

 

Nessa fita estavam as demos de “Heart-Shaped Box”, “Scentless Apprentice”, “Milk It”, “Very Ape” e “Gallons…”, todas regravadas por Albini, como também “Moist Vagina”, música que entrou no single de “All Apologies”, e “I Hate Myself and I Want to Die”, incluída em The Beavis and Butt-Head Experience, compilação lançada no final de 1993. O público brasileiro foi presenteado com as primeiras execuções em shows de “Heart-Shaped Box” e “Scentless Apprentice”.

 

Confinado no Pachyderm Studios e sob nome falso, o trio trabalhou com Albini e um assistente na segunda quinzena de fevereiro. Bem ao gosto do produtor, um tempo curto, com as bases gravadas ao vivo e outras sessões para camadas de guitarras e vocais. O período de poucos dias incluiu também a mixagem das faixas, num clima descrito como amistoso e agradável.

 

Rapidamente as coisas mudariam de figura. Desde o anúncio do contrato com Albini, pessoas da Geffen Records com tino mais comercial haviam exposto seu descontentamento. Semanas depois das gravações, Cobain, Novoselic e Grohl afinal concordaram que estavam descontentes com a mixagem. Após negociações nada tranquilas, Scott Litt, conhecido por seu trabalho com a R.E.M., foi chamado para remixar duas faixas. Mais modificações foram introduzidas na masterização, com o aumento dos vocais e do baixo.

 

Mesmo com os retoques, In Utero soa bem diferente de Nevermind. O som é realmente mais cru e os extremos estão mais distantes, especialmente por conta de faixas como “Scentless Apprentice”, “Milk It”, “Radio Friendly Unit Shifter” e “Tourette’s”. Mas essa crueza não chegava a abalar a equação que definia o estilo da banda, com seu lado pop. As inserções de violoncelo (pelas mãos de Kera Schaley) em “All Apologies” e “Dumb”, ainda sob o comando de Albini, faziam parte desse lado pop.

 

As faixas mais promovidas do álbum, no entanto, passavam uma mensagem pouco decidida. “Heart-Shaped Box” e “All Apologies” foram lançadas como singles; a primeira foi a única a ganhar um videoclipe. Em sua aparição no Saturday Night Live, logo na sequência do lançamento do álbum, a banda apresentou “Heart…” e “Rape Me”. Alguns meses depois, quando participou do Unplugged MTV, incluiu apenas três faixas de In Utero: “All Apologies”, “Dumb” e “Pennyroyal Tea”. Contas feitas, notamos que ficavam reforçados os vetores que restabeleciam a continuidade com o álbum anterior, de que a Nirvana queria se distanciar…

 

 

“Sexo e mulher e in útero e vaginas e nascimento e morte”

1992 foi um ano difícil para a Nirvana, justo quando colhia os frutos de seu inesperado sucesso. Exaustão e drogas levaram ao cancelamento de muitos shows. Em 1991, o número de apresentações chegou a 88; no ano seguinte, apenas 35. Havia tensões internas ao trio, incluindo disputas por direitos autorais.

 

Ter se transformado subitamente em uma das principais bandas do mundo não era apenas um problema na cabeça de pessoas com ideais punks. Implicava situações concretas, especialmente para alguém, como Cobain, que prezava o comando sobre todas as dimensões de sua arte. “Sucesso” significava dividir as decisões com cada vez mais gente.

 

Cobain viveu aquele ano vendo crescer a barriga de Courtney Love, líder da Hole. Frances nasceu em agosto de 1992, com o pai recém-saído de uma clínica de reabilitação. Em setembro, uma reportagem publicada na revista Vanity Fair sugeriu que a mãe havia mantido o consumo de drogas mesmo ciente da gravidez. O casal perdeu a guarda de Frances e depois de recuperá-la teve que periodicamente fornecer provas de sua condição saudável.

 

Essas situações se refletem nas letras das músicas incluídas em In Utero, mesmo que algumas, como vimos, tenham sido compostas anteriormente. Mas vários dos versos transcritos no encarte do álbum foram consolidados durante as gravações finais, com base no material que preenchia os diários do vocalista.

 

Em “Serve the Servants”, faixa de abertura do álbum, é clara a mensagem endereçada à mídia que cercava a vida do casal Kurt/Courtney. Isso se mistura a um recado para o pai do compositor, com quem teve uma relação complicada na adolescência.

 

Os embates com a mídia e outros “formadores de opinião” voltam a aparecer em “Frances Farmer…”, cujo título cita a atriz que, por seu comportamento fora dos padrões estabelecidos, foi perseguida, institucionalizada e lobotomizada. Outro exemplo é “Rape Me”, o que certamente impulsionou sua promoção pela banda, mesmo ao preço de ter que explicar que, não, não se tratava de uma “apologia do estupro”…

 

No entanto, as letras de Cobain raramente contêm mensagens. Preferem compor imagens, misturando referências autobiográficas com frases de efeito. Em In Utero, a começar pelo título do álbum, há uma obsessão com coisas relacionadas ao corpo, suas partes, seus fluídos, suas doenças e perturbações, processos de nascimento e morte.

 

Nessa veia, uma das mais explícitas é “Heart-Shaped Box”. Embora Cobain cite como inspiração sua piedade por crianças vitimadas por câncer, a letra parece tratar de dependências físicas e emocionais inerentes às relações amorosas: “arremesse seu cordão umbilical para que eu possa subir de volta”.

 

No elogiado videoclipe dirigido por Anton Corbijn, há uma sucessão de imagens muito vivas por suas cores que culminam na morte de um idoso. Uma menina lembra personagens angelicais, ao passo que uma mulher caminha vestindo uma roupa de órgãos e vísceras.

 

“Milk It” também impressiona por sua linguagem: “Sou meu próprio parasita”, “Tenho meu próprio vírus de estimação”, explodindo em “Bife de boneca, carne de teste”. “Pennyroyal Tea” destila os incômodos de Kurt com seus problemas de saúde apelando a um chá de propriedades abortivas.

 

Em “Scentless Apprentice”, a inspiração vem do livro Perfume, romance de Patrick Suskind sobre um sujeito cujo corpo não exala cheiro e que se torna um assassino em busca do “aroma perfeito”. O refrão é o momento para Cobain urrar sua misantropia.

 

Em meio a tudo isso, ainda há espaço para uma possível felicidade (“Dumb”) e para um encontro com o sol (“All Apologies”). Em ambos os casos, as letras falam de alguém deslocado, que carrega os problemas do mundo e, ainda assim, encontra algo para celebrar. Sentimentos contraditórios sintetizados em “Sappy”, nome de uma canção composta ainda no final dos anos 80 e finalmente gravada nas sessões de In Utero, mas lançada apenas como uma faixa oculta em uma coletânea de 1993.

 

Os extremos das letras estão bem expressos na arte do álbum. Na capa, vemos um manequim usado para fins pedagógicos, a pele transparente a exibir o interior do corpo humano. O desenho de asas foi acrescentado, talvez a sugerir uma fuga para o alto.

 

Na contracapa, temos uma composição feita a partir da foto de uma assemblage montada por Cobain no chão de sua casa. Nela se destacam muitos fetos humanos, misturados a partes de bonecos pedagógicos feitos para a visualização de órgãos. No meio de tudo, orquídeas e lírios, flores que para Kurt remetem ao órgão sexual feminino, mas também introduzem algo de sublime e solar na composição.

 

 

Kurt Cobain (1967-1994)

Sabemos o fim da história. Cobain foi encontrado morto em abril de 1994. Se quisermos achar anúncios de seu suicídio nas letras de In Utero, vamos encontrar. Mas a arte não é uma coisa tão simples.

 

Não há dúvidas de que Cobain era alguém atormentado e que sua música expressava isso. Foi talvez por resignação que ele concordou com a produção, por conta de pressões de grandes lojas, de uma versão de In Utero que, além de trazer uma terceira faixa remixada por Scott Litt, alterou a contracapa, excluindo os fetos e convertendo “Rape Me” em “Waif Me”…

 

Por outro lado, Michael Azerrad, em seu livro, lembra dos shows da turnê de In Utero nos Estados Unidos como momentos de energia positiva. Antes do lançamento do álbum, a banda fez apresentações relacionadas a causas políticas, uma veia que seria definidora do trajeto de Krist Novoselic até hoje. Em fevereiro de 1993, a foto de Kurt estampou a capa de uma revista voltada para o público LGBT+++.

 

Para a turnê de In Utero, o trio foi reforçado por Pat Smear, guitarrista da The Germs, antológica banda punk de Los Angeles. Na Europa, shows tiveram que ser cancelados por conta dos problemas de saúde de Kurt. Numa pausa em Roma, em março de 1994, ele ingeriu dezenas de comprimidos de um tranquilizante. O salvamento apenas adiou seu plano fatal.

 

Com alguma imaginação, podemos “lembrar” de Kurt como alguém com outro destino. Ainda gravaria mais dois álbuns com seus amigos, até resolver dar atenção total ao seu selo, lançando novas bandas. Anos depois, assumiria outro nome artístico apenas para expor seus desenhos. Poucas pessoas sabem onde vive, que com certeza é um lugar muito longe de Aberdeen.

 

Nota: em 2013, foi lançada uma edição “super deluxe” de In Utero, com vários extras, como as faixas que entraram em singles e as versões originais de Albini para “Heart-Shaped Box” e “All Apologies”. Inclui também uma nova mixagem de todas as faixas do álbum pelas mãos do mesmo Albini. Há ainda algumas demos e a gravação de um show em Seattle do final de 1993 (nesse dia, a Pearl Jam também se apresentaria, mas cancelou na última hora). Mas para quem quiser mergulhar ainda mais nas produções da Nirvana em 1993 e 1994, é imprescindível a escuta do material compilado em With the Lights Out, divulgado em 2004.

 

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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