Power, Corruption & Lies: 40 anos

 

 

 

Power Corruption & Lies (PC&L), lançado em maio de 1983, é o segundo álbum da New Order. Mas para os integrantes da banda, Bernard Sumner, Gillian Gilbert, Peter Hook e Stephen Morris, quando olham para trás, é como se fosse o primeiro. Pois é aí que a New Order se liberta de suas origens como Joy Division (1977-1980).

Em Movement (1981), mesmo com várias novidades, as sombras da banda que contava com Ian Curtis eram ainda fortes. Dá para entender o desabafo de Hook: soubemos que estávamos no caminho certo porque PC&L foi odiado por fãs da Joy Division.

 

 

Ironicamente, PC&L foi gravado no mesmo estúdio em que foi feito Closer (1980), o epitáfio da banda anterior. O quarteto passou cerca de seis semanas trabalhando no Britannia Row Studios (montado por Nick Mason, da Pink Floyd), entre setembro e outubro de 1982.

 

Mas já ali houve mudanças, pois Martin Hannet, com quem a Joy Division gravou seus dois LPs e que acompanhou a New Order em Movement, já não estava na escalação. A gravação do primeiro álbum havia causado mal-estares, a parceria azedara em “Everything Gone Green” e foi dissolvida em “Temptation”, dois singles posteriores a Movement.

 

Em 1982, a banda começou a produzir por conta própria. Para PC&L, contou com a valiosa ajuda do engenheiro Mike Johnson. E não esqueçamos: a New Order continuou a ser a principal integrante do cast da Factory, uma das mais bem sucedidas experiências de empreendimentos independentes no mundo da música pop.

 

Outra novidade estava no hardware da banda. A aquisição de novos sintetizadores e drum machines permitiu avançar nas experimentações eletrônicas. Também ajudou o fato de que a New Order agora dispunha de um estúdio próprio para ensaiar em sua cidade, Manchester.

 

Essas condições foram propícias para que se decantassem as referências com as quais a banda teve contato em suas viagens aos Estados Unidos em 1981, um coquetel de pós-disco, Latin freestyle e electro sorvido em danceterias que não existiam ainda em terras britânicas.

 

Nessas condições, o quarteto sentiu-se seguro para fazer o que seria PC&L.

 

 

Uma nova ordem em processo

 

Apesar da celebrada auto-satisfação com PC&L, o álbum estava longe de ser um paradeiro seguro. Faz mais sentido vê-lo como o registro de buscas e experimentações que percorriam tanto os ensaios quanto os shows da banda.

 

Apenas duas das oito faixas de PC&L não haviam sido apresentadas anteriormente às gravações do álbum. Segundo Morris, três músicas já faziam parte das sessões de Movement. Ou seja, realmente o segundo álbum é o retrato de um processo com várias coisas antes e muito pela frente.

 

Um registro interessante desse processo é a Peel Session (antológico programa da Rádio BBC) de maio de 1982. Das quatro músicas apresentadas, duas não entraram em PC&L. Delas, chama mais a atenção “Turn the Heater On”, na qual percebemos influências de reggae e dub!

 

Meses depois, quando a banda entra em estúdio para gravar as faixas de PC&L, o resultado não deixa de surpreender. O faixa-a-faixa parece uma verdadeira montanha russa, com a New Order percorrendo caminhos variados e nada óbvios.

 

O álbum abre com “Age of Consent”. A linha de baixo de Hook é arrasadora. Morris mostra como sabe tocar rápido e com um pulso dançante. Sumner e Gilbert estão livres para inserir a guitarra e o teclado sobre a vigorosa base da dupla baixo-bateria.

 

“We All Stand” é arrastada, parece sair do repertório de outra banda. O baixo eletrônico é engenhoso. A versão apresentada na Peel Session era mais jazzy, por conta do destaque conferido ao teclado. Mas algo disso ainda resta no registro de PC&L, repleto de dubs.

 

“The Village” – como “We All Stand”, veio das sessões de Movement e passa a aparecer em shows desde abril de 1982 – retoma o tom alegre da faixa de abertura, embora aqui as bases eletrônicas tenham um papel muito mais importante. Quando o ritmo acelera, o resultado é eufórico. Simplesmente deliciosa.

 

“586” começa colada na faixa anterior. Embora os timbres eletrônicos permaneçam, o contraste não poderia ser maior. Após uma introdução de dois minutos que remete a Moroder, umas das influências da New Order, os mais de cinco minutos restantes são tomados por um criativo bate-estaca. A faixa termina se “desmanchando”, recurso que encontramos em músicas da Joy Division.

 

Na verdade, “586” teve várias versões, por conta de uma composição derivada de jams eletrônicas. Foi apresentada pela primeira vez na inauguração do Haçienda, mítico espaço de dança de Manchester, outro dos empreendimentos da Factory. Durava mais de 22 minutos! No mesmo mês, uma versão reduzida fez parte da Peel Session. Outra foi lançada por uma revista de música ainda em 1982. Nela se expressa o lado mais experimental da New Order.

 

PC&L continua com “Your Silent Face” (é a primeira faixa do lado B do vinil), com sua percussão e teclados escancaradamente inspirados em Kraftwerk. Sumner volta a soprar uma escaleta, instrumento já usado em uma das músicas de Movement. Não seria incorreta chamá-la de balada eletrônica, mas isso não captaria sua beleza glacial. É a faixa de PC&L mais tocada em shows da New Order até hoje.

 

“Ultraviolence” é outra música que nasceu nas sessões de Movement e começa a aparecer em shows desde março de 1982. Há nela uma combinação inusitada em sua base: o baixo eletrônico é acompanhado por uma bateria simultaneamente tribal e pulsante. Nessa faixa, com outros elementos eletrônicos, a percussão se destaca.

 

“Ecstasy”, assim como “Your Silent Face”, não aparece em shows anteriores às gravações de PC&L. Na verdade, nunca seria executada ao vivo. É uma faixa instrumental, se ignorarmos os murmúrios robóticos. Novamente, a percussão se destaca, indo de um andamento quebrado às arrancadas disco.

 

O álbum encerra-se com “Leave Me Alone”, em que baixo e guitarra dialogam numa melodia triste, mas agitada. A bateria de Morris é simples e não há teclados nem outros elementos eletrônicos. Nessa música, a New Order soa como uma banda de rock que compõe um pós-punk orgânico.

 

 

O hit fora do álbum

 

PC&L conquistou o quarto lugar na parada britânica (UK Top 40), mas nenhuma de suas faixas pode ser considerada um hit, como seriam “The Perfect Kiss” e “Sub-culture” em Low Life (1985) e “Bizarre Love Triangle” em Brotherhood (1986). Contudo, as sessões de gravação de PC&L geraram sim um hit: “Blue Monday” – aliás, incluída em algumas versões do álbum em formato cassete e quando saiu como CD.

 

“Blue Monday” é a New Order exercitando seu aprendizado de música eletrônica. Quando a ouviu no estúdio, Rob Greton, o empresário da banda, começou a dançar loucamente. E assim fizeram as pessoas nas pistas de dança, embaladas pelo enérgico bate-estaca.

 

Lançada como single dois meses antes de PC&L, a música valeu à banda sua primeira aparição no principal programa de música pop da Inglaterra, em março de 1983. O quarteto recusou-se a fazer playback, como era a regra no programa.

 

Não que fosse fácil tocar “Blue Monday” ao vivo. Especialmente Morris e Gilbert, o casal que se ocupava da programação de bases e sintetizadores, tiveram que quebrar a cabeça para encontrar as melhores maneiras.

 

Ao longo da trajetória da banda, “Blue Monday” ganhou várias versões, a começar pela primeira que dura mais de sete minutos. Apesar de sua extensão pouco comercial, ela ficou 38 semanas nas paradas britânicas e, reza a lenda, se tornou o “single de 12 polegadas mais vendido da história”.

 

O single chamou atenção também por sua embalagem, criada para parecer igual a um disquete flexível de 3 polegadas e meia (os mais velhos vão lembrar de quando se usava essa mídia de armazenamento de dados). Esse disquete servia a um dos sintetizadores adotados pela banda para compor “Blue Monday”.

 

Peter Saville, o designer responsável pela proeza, era um parceiro da Factory desde os tempos da Joy Division. Coube-lhe também a tarefa de criar a capa de PC&L. Ele encontrou a solução em um museu de arte de Londres.

 

Desistindo de sua primeira ideia – alguma figura maquiavélica em diálogo com o nome do álbum, por sua vez inspirado por uma frase encontrada na contracapa de um livro de George Orwell –, Saville preferiu “Uma Cesta de Flores”, quadro de um pintor francês do século XIX.

 

Ao quadro, o designer acrescentou uma criação sua, um código em que cada cor está associada a uma letra. Na contracapa (do vinil), o código toma todo o centro, no formato de uma roda. Traduzidas, as cores formam o nome do álbum e da banda. Na capa, informam um número na sequência de lançamentos da Factory.

 

 

Flores e códigos, ou o punk em versão eletrônica

 

As flores da capa ecoam o verso de “A Village” – “Our love is like the flowers” – que parece transmitir uma felicidade reforçada pela melodia da música. Alegre, como nunca a New Order tinha soado antes, é também a melodia de “Age of Consent”.

 

No geral, entretanto, as letras de PC&L refletem – ainda que não diretamente, pois passam distante da política – as alusões do título do álbum. Muito delas vem de elaborações sobre improvisos que Sumner – que tomou o papel de letrista definitivamente para si – fazia em estúdio e shows.

 

Arriscando uma leitura, destacaria o descompasso entre pessoas tentando se comunicar, algo que percebemos na primeira e na última faixa de PC&L. Nelas e em outras músicas, surgem paisagens desoladas, caminhos sem destino ou repletos de perigos. Referências ao tempo que não narram histórias. Nada muito alegre, convenhamos.

 

De todo modo, na New Order, as letras são sobretudo a voz servindo como mais um instrumento. A sonoridade é o mais importante e aí talvez valha pensar nas flores como uma metáfora do orgânico presente em uma música repleta de elementos eletrônicos.

 

Pois ao lado e sobre sintetizadores, vamos muitas vezes ouvir uma guitarra que recorre a riffs, que soa funky, que não abandona a distorção. No caso do baixo, mais do que um timbre que se consolida, é uma verdadeira assinatura que se estabelece em PC&L, fazendo de Peter Hook um instrumentista original (e muito imitado).

 

Diria, no entanto, que é na percussão que a combinação entre eletrônico e orgânico ocorre de forma mais completa. Morris desenvolve uma composição geométrica, mesmo quando empunha baquetas. Quem escuta fica muitas vezes na dúvida: isso é uma bateria eletrônica ou acústica? Frequentemente, são ambas, cada qual com sua cota de engenhosidade. Correndo o risco da monotonia, a percussão da New Order é, em PC&L, um exercício de criação.

 

Há motivos de sobra para classificar o som da banda como “música eletrônica”, mas desde que se note que ela não deixa de ser uma banda de rock, gravando em estúdios analógicos e fazendo shows em que, junto às geringonças eletrônicas, estão instrumentos tradicionais.

 

Em meio a tudo isso, percebemos ainda uma ética punk. O encanto que tomou jovens que formariam a Joy Division ao presenciarem uma apresentação dos Sex Pistols na Manchester de 1976 não se desfez. Assumiu novas formas, o único jeito para algo não morrer.

 

Na New Order da era PC&L, uma ética punk pode ser encontrada na simplicidade dos shows, apesar da parafernália envolvida. Também na capa do álbum, que não evidencia sequer o nome da banda. Não adianta buscar por fotos do quarteto nos encartes, pois só vamos encontrar mais cores em código sobre um enorme fundo preto.

 

Ainda sobre shows: naquela época, a banda se recusava a tocar covers e também a dar autógrafos. Entrevistas eram raras. Uma das razões por trás da composição de “Blue Monday” era que uma peça totalmente eletrônica servisse para o “bis”, outra convenção do entretenimento que a banda se recusava a respeitar.

 

Ao mesmo tempo, o som da New Order seguia em direção cada vez mais pop, como mostram os singles posteriores a PC&L. As músicas que ganharam mais destaque foram “Confusion” (1983), outra de inspiração kraftwerkiana, e a elegantérrima “Thieves Like Us” (1984). Presentes em shows desde 1983, ambas foram produzidas por Arthur Baker, que já trabalhara com Afrika Bambaataa, outra referência para o quarteto britânico. O videoclipe da primeira capta seu fascínio pela cena nova-iorquina.

 

Quanto a PC&L, sobrevive bem ao tempo. Prova disso são as listas da Rolling Stone: nas suas eleições de “melhores 500 álbuns da história”, PC&L não havia sido mencionado nas edições de 2003 e 2012, mas figura na posição 262 em 2020.

 

Após o relançamento de 2015 com as faixas remasterizadas, 2020 foi também o ano da divulgação da “edição definitiva” de PC&L. Junto com filmagens de shows ocorridos entre 1982 e 1984, estão disponíveis as músicas da Peel Session de 1983 e registros das composições em estúdios, incluindo “Blue Monday” e “Thieves Like Us”. Presentão para fãs, incluindo gente que, como eu, divide o gosto entre Joy Division e New Order. Aliás, em 1983, “Love Will Tear Us Apart” foi executada pela primeira vez em um show da New Order.

 

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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