A novidade musical ainda é o máximo
Vejo infinitas discussões sobre a validade do streaming como meio de difusão da música pop. Argumentos contrários acusam a falta de remuneração justa aos artistas, a lobotomização dos gostos pessoais, subserviência ao algoritmo e produção de poluição sonora que prejudica a formação de um público, digamos, consciente e crítico. Do outro lado, um tanto de gente defende a possibilidade de ter acesso a um número nunca antes experimentado de artistas, álbuns e canções. E o tal algoritmo, que é a danação para uma parcela, é, justamente, uma das grandes vantagens do streaming para a outra. Conhecer novos artistas, novas canções, informar-se em tempo curtíssimo, tudo isso é indispensável para quem trata a música pop não só como um fenômeno temporal, mas como um fenômeno contínuo, que não parou. E o meio nunca é mais importante do que a mensagem, ou, pelo menos, não deveria ser. Eu estou no segundo grupo, o que defende a faceta reveladora dos serviços de streaming e digo isso com total noção do preço baixíssimo que remunera os artistas. Torço e faço o possível para que essa remuneração atinja patamares decentes num futuro próximo.
Porém, enquanto isso não acontece, eu sigo explorando fronteiras que eu nem pensava existirem. Por exemplo, hoje em dia, a música eletrônica é o gênero que mais me atrai, especialmente a produção feita ao longo dos anos 1990. Foi um tempo que vivi e que desprezei essa produção artística, achando-a pouco relevante e, francamente, como eu estava errado. O streaming – e os mp3 – me possibilitam recuperar o tempo perdido ouvindo obras de artistas sensacionais como Chemical Brothers, The Orb, Underworld, Goldie, Grooverider, Leftfield, Prodigy, Caribou (este é mais recente), Aphex Twin, DJ Shadow, entre muitos outros. Precisamente neste momento, estou imerso no relançamento do disco de estreia do Orbital, homônimo, mas chamado pelos fãs de “The Green Album”. São quatro álbuns, num total de 54 canções, não só as do CD original, mas mixes, remixes, versões ao vivo, um prato cheio pra quem está, neste momento, concluindo que a música mais revolucionária daquela década veio das pick-ups e das festas e não do britpop ou do grunge, o que não significa, claro, deixar de ouvir esses estilos, mas, não sem um pequeno retrogosto adquirido recentemente.
E estar mergulhado num álbum como esse também não impede a incessante busca por sons via streaming, que extrapola as esferas profissionais, digamos. Atualmente não há outro modo de você ouvir a produção contemporânea de discos e lançamentos se não for via streaming. É uma questão simples de tempo e otimização, para não falar no altíssimo custo que demandaria adquirir discos importados frequentemente. E, em meio a essas buscas constantes que faço, dois álbuns gritaram forte, exigindo textos a respeito de seus contextos de produção. Não são trabalhos de bandas em atividade, não têm nada a ver com o som praticado atualmente no “pop” e, bem, destinam-se ao grande bacião de lançamentos esquecidos pela história, algo que o streaming possibilita ver, garimpar e descobrir. São eles: o grupo americano Tinted Windows, formado por gente muito conhecida das fileiras do pop e do powerpop de três décadas e o quinteto chileno Amanitas, que lançou um único trabalho, com o lindo título de “Amor Celeste Imperial”. Se não fosse o tal algoritmo do streaming, no caso, do Spotify, eu não conheceria esses grupos tão cedo. Devo agradecer, sei lá a quem. Cada um a seu modo, “Tinted Windows”, o disco, e “Amor Celeste Imperial”, são duas joias da produção pop rock de vários tempos. Se eu fosse você, separava tempo para comprovar o que vou dizer abaixo.
“Tinted Windows” é o único álbum lançado pela banda de mesmo nome, no já distante ano de 2009. Voltou a ser pauta de veículos de informação pequenos e antenados, que deram vivas ao relançamento do disco em vinil por conta do último Record Store Day. Ainda que a tiragem tenha sido de apenas 1800 cópias, houve muita gente comprando e festejando este trabalho. E, afinal de contas, o que é “Tinted Windows”? Uma banda formada por diversão, trazendo James Iha, nas guitarras; Adam Schlesinger, do Fountains Of Wayne, no baixo, Bun E. Carlos, do Cheap Trick, na bateria, e Taylor Hanson, dos Hanson, nos vocais. No cardápio o mais puro powerpop já feito, nem tão doce, nem tão pesado, no ponto correto. A presença de Schlesinger no elenco dá o tom exato da excelência das canções, que poderiam, todas, estar presentes em algum trabalho de sua banda Fountains Of Wayne, que, sintomaticamente, lançaria um disco em 2011, “Sky Full Of Holes”, pela mesma gravadora que colocou o Tinted Windows na praça, a S-Curve Records. Todas as canções foram escritas por Schlesinger e Hanson, mas parecem saídas de álbuns obscuros dos anos 1970. O single “Kind Of Girl”, que tem um clipe primoroso, que está ao fim do texto, dá a medida exata do que foi o Tinted Windows, um dos últimos projetos de Schlesinger, tragicamente morto em 2020, por conta da covid-19. Sem exagero, Adam foi um dos mais importantes compositores do rock mundial.
O outro álbum surgiu do mais absoluto nada. Ouvia eu o trabalho de Bardo José, uma espécie de trovador equatoriano, que soa como um Tame Impala tropical (e sensacional, aguarde resenha por aqui), quando, ao fim do álbum, o algoritmo disparou algumas músicas “parecidas”. A segunda me capturou a atenção imediatamente: “Triza”. Os vocais femininos, em espanhol, o instrumental parecendo um Flaming Lips do início dos anos 2000, mais focado, mais voltado para sonoridades sessentistas pop, tudo aquilo me fez parar o que fazia, no caso, o almoço. Após descobrir o nome da canção, me detive no álbum que a continha e, claro, na banda. Amanitas, do … Chile. Não é o país mais frequente na nossa mirrada e triste dieta de grupos e artistas bacanas dentro da América Latina. Após um pouco de pesquisa, constato que as Amanitas encerraram atividades em 2019, e que “Amor Celeste Imperial” foi seu único disco, lançado em 2017.
Após lamentar alguns instantes, vi que a força criativa do grupo, a baterista, compositora e cantora Natalia Andrea Soledad Pérez Peralta, iniciou carreira solo quase que imediatamente após o fim das Amanitas e, sob o nome de Cancamusa, já lançou dois ótimos trabalhos – “Cisne: Lado Negro” (2020) e “Amor Minimal” (2023). O tom é de pop psicodélico de primeira linha, muito bem produzido, com uma ótima voz e canções impressionantes. Detalhe: Natalia não é de Santiago ou Viña del Mar, cidades mais conhecidas do Chile, mas da pequena Valdívia, uma vila quase no extremo sul do país. Ouvindo suas canções me pergunto como ela conseguiu chegar a uma sonoridade tão bem feita e cheia de passagens lindas. Por exemplo, os teclados de “Aveluz” ou a melodia beatle de “Me Desvelo”, na verdade, “Amor Celeste Imperial” é uma pérola, esperando ser encontrada. Fico pensando como o mundo é injusto em vez que uma banda lança um disco tão excelente e, dois anos depois, encerra atividades. Felizmente pude conhecer tamanha beleza e a Cancamusa entrou para o hall de artistas a quem dedico atenção e carinho, digamos, acima da média.
Seja com “Tinted Windows”, seja com “Amor Celeste Imperial”, você estará em boa companhia. Ouça-os, liberte seus ouvidos da mesmice e vá em frente com uma vida melhor e mais legal. Afinal de contas, a música serve, sim, pra isso.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.