Os trinta anos de “O Descobrimento do Brasil”

 

 

 

A turnê de V foi interrompida em setembro de 1992. No final do mesmo ano, chegou às lojas Música para Acampamentos, uma coletânea de gravações ao vivo e mais algum material de arquivo. Foi uma forma de “compensar” os fãs que deixaram de assistir shows e de recompor as finanças da banda, mas foi também um jeito de ganhar tempo para pensar sobre o porvir da Legião Urbana.

 

No primeiro semestre de 1993, o trio teve à disposição o estúdio de Mú Carvalho no Rio de Janeiro para compor as músicas que entrariam em O Descobrimento do Brasil. Em parte desse período, Renato internou-se em uma clínica de reabilitação e frequentou reuniões dos Alcoólicos Anônimos.

 

Entre agosto e outubro, o estúdio carioca Discover recebeu a banda e o produtor Mayrton Bahia (parceiro de longa data) para a gravação das 14 faixas de O Descobrimento. A EMI lançou o álbum nos meses finais daquele ano.

 

Os shows começam apenas em maio de 1994. Antes deles, Renato Russo entra novamente em estúdio para registrar seu primeiro trabalho solo, The Stonewall Celebration Concert. É uma coleção de versões para músicas de gêneros variados, todas cantadas em inglês.

 

Para as apresentações ao vivo, juntam-se ao trio: o tecladista Carlos Trilha, que já fora parceiro na turnê anterior e acompanhava Renato em seu trabalho solo; o violonista e guitarrista Fred Nascimento, que já participara dos ensaios para os shows de V; e o baixista Gian Fabra.

 

Depois de aparições em programas, na TV e no rádio, a turnê começa no interior de São Paulo e passa por algumas capitais. Os shows do Rio de Janeiro seriam lançados como álbum (Como é Que se Diz Eu Te Amo, 2001). Em janeiro de 1995, em Santos, ocorre o que acabou sendo a última apresentação da banda.

 

Renato ainda gravaria outro disco solo e entraria mais uma vez em estúdio para registrar as faixas que preenchem os últimos álbuns da Legião Urbana. Enfrentou nova recaída (após estar “limpo” por quase dois anos) e não resistiu às complicações que faliram sua saúde.

 

Nessa linha do tempo, O Descobrimento do Brasil sobressai como um momento de equilíbrio – mesmo distante da estabilidade – na história da banda e de sua figura central. As faixas dos dois últimos álbuns não desfrutaram da mesma trégua e exalam as condições precárias em que foram gravadas. Em relação ao passado, o sexto álbum representou um novo ímpeto, ansioso por descobertas e recomeços.

 

 

Rock que passa por MPB

 

Para o formato sonoro de O Descobrimento do Brasil, V foi tido como uma referência negativa. Nada de músicas quilométricas, rebuscadas e arrastadas – embora nem tudo em V fosse assim. Ao contrário: pop songs de três minutos com refrões não longe dos primeiros acordes – o que, novamente, não descreve exatamente como as coisas saíram.

 

Desde o início, a Legião Urbana cultivou a diversidade de referências dentro do amplo espectro do rock. Entre o segundo e o quarto álbuns, podemos distinguir uma linha que os conectava a The Smiths. Mas isso não significava muita coisa, pois os britânicos não seguiam um estilo coeso. A banda brasileira continuou a integrar elementos muito variados, amparados no conhecimento enciclopédico de seu vocalista e principal compositor.

 

No sexto álbum, Renato, Dado e Marcelo colaboraram, em medidas diferentes de acordo com as faixas, para a construção dos sons. Se a turnê integrou outros músicos, no estúdio todo o trabalho foi feito a seis mãos. Houve novidades que interferiram no resultado final: cítara e bandolim foram acrescentados às cordas e Bonfá compôs teclados em cinco músicas.

 

A ideia da pop song simples e direta está bem reconhecível em “Vamos Fazer Um Filme”, em “Os Anjos” e na acústica “Love In The Afternoon”. Também próximas disso estão “Um Dia Perfeito”, com teclados fortes, e “Giz”, quase uma balada.

 

Mas nada tem exatamente um refrão, reiterando uma marca das composições da Legião. As sonoridades suaves e a ausência de refrões se prolongam em “Vinte e Nove”, com um final acelerado contrastando com suas bases acústicas, e em “O Descobrimento do Brasil”, guiada por uma programação eletrônica e pelos teclados.

 

As coisas se alteram um pouco com “Os Barcos” e “Só Por Hoje”. Nesta, a instrumentação acompanha de perto as oscilações da letra, encorpando-se com guitarras fortes em um trecho central. Na primeira, novamente as guitarras fortes surgem como um contraponto a um registro vocal que flerta com o brega, um estilo que estava entre os elementos mencionados por Renato para descrever sua banda.

 

Essas guitarras fortes, por sua vez, vão dominar várias faixas, em contraste com as anteriores, embora sem deserdar dos territórios do pop. É o caso de “A Fonte”, disputando espaço com os teclados e acompanhando um vocal alterado. Mais cruas são “Do Espírito”, envenenadíssima, e “La Nuova Gioventú”, feroz e doce ao mesmo tempo.

 

Dado Villa-Lobos comenta em suas memórias que a sonoridade mais agressiva tinha a ver com o que o trio andava escutando à época. Ele cita Stone Roses e Radiohead, o acid rock e o grunge. Em O Descobrimento, essas influências aparecem processadas ao lado de elementos mais definidores da proposta do álbum e sob a centralidade das explorações vocais de Renato no universo da canção e da MPB.

 

Dos três integrantes, Dado era o que, à época, se dedicava a projetos musicais paralelos e coletivos. Entram aí suas colaborações com Fausto Fawcett e Laufer que foram até o show/álbum Básico Instinto. Entra também aí a Rock it!, selo que havia começado como uma loja de discos, revistas e indumentárias e que o colocava em contato com várias novas bandas brasileiras. Uma e outra coisa deixaram suas marcas por meio das guitarras fortes que aparecem em algumas faixas de O Descobrimento.

 

Entre elas podemos incluir “Perfeição”, aliás, música de trabalho do álbum. Sua construção é engenhosa. Bonfá vai sincopando sua bateria sobre uma batida eletrônica. A guitarra, distorcida mas discreta, vai serpenteando como um mantra pós-punk. Os teclados aparecem pela metade da faixa e vão ganhando mais destaque, especialmente na parte que podemos chamar de apoteose, que culmina e contradiz o que veio antes.

 

Até essa apoteose, o vocal de Renato é mais falado do que cantado, talvez o mais próximo que chegou de um rap. Em seguida, muda totalmente de registro, mostrando toda sua potência barítona. As semelhanças com a melodia de “O Bêbado e o Equilibrista”, clássico da MPB, levaram a banda a fazer o crédito nos encartes. Em uma entrevista, Renato aproximou essa parte de um samba enredo!

 

O Descobrimento traz ainda uma faixa instrumental, “O Passeio da Boa Vista”, repetindo algo que ocorre também no segundo e no quinto álbuns. Uma música serena, que deveria evocar caminhadas à beira mar, projetada como trilha sonora para um grupo de dança de Brasília. Dialoga com o verso de “Vamos Fazer um Filme”, que imagina a vida “como um musical dos anos trinta”, expressão da mente multimídia de Renato.

 

Em suma, O Descobrimento mostra uma banda despreocupada em estar em sintonia com os rumos que o rock tomava no Brasil em 1993. Para reafirmar seu lugar singular no pop brasileiro, a Legião Urbana defendia o legado da geração dos anos 80 – que reinventou o rock cantado em português – e fazia acenos para a MPB, sem se confundir com ela. Uma aposta corajosa.

 

 

Músicas para crianças

 

Positividade é a palavra-chave das letras de O Descobrimento do Brasil. Ao menos, essa era a intenção anunciada pelo seu compositor, algo que se expressa na capa do álbum: em meio a muitas flores, Renato, Dado e Marcelo figuram em trajes que remetem a personagens de outro tempo. O clima se repete no único clipe que acompanha o álbum, com imagens bucólicas e campestres.

 

A positividade tentava juntar dimensões pessoais e sociais. Renato havia passado por uma reabilitação que lhe deu um novo ânimo. No final de 1992, houve o impeachment de Fernando Collor, tirando o país de um pesadelo. Na esteira disso, formou-se a Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, também conhecida como “Campanha do Betinho”, apelido de Herbert de Souza, seu principal animador. Renato envolveu-se com ações de combate à fome que ocorreram em meio à produção do álbum.

 

Não se tratava de uma positividade ingênua ou escapista. Muitas mazelas do país estão enumeradas na letra de “Perfeição”, inclusive as “crianças mortas”, referência direta à Chacina da Candelária, ocorrida em julho de 1993. Mas Renato não queria falar só disso, assim como não queria deixar de apontar para alguma luz no fim do túnel.

 

Em entrevistas e pronunciamentos, o vocalista insistia na transformação pessoal como um passo necessário para mudanças sociais. Os problemas do mundo, nessa visão, se alimentavam de vícios individuais. Coisas como maldade, vaidade e mentira (e tantas outras mencionadas na “receita” de “Os Anjos”).

 

Outro ponto que contou para a aposta na positividade foi a experiência da paternidade compartilhada pelos três integrantes da banda. Renato passou a compor pensando no que queria que crianças ouvissem para crescerem como pessoas honestas e esperançosas. Em “Um Dia Perfeito”, vozes infantis acompanham a chuva que se anuncia.

 

Para O Descobrimento, o compositor de “Eduardo e Mônica” e de “Faroeste Caboclo” preparou uma outra historinha, mais simples. Nela (faixa homônima ao título do álbum), o menino eletricista e a menina do correio pensam sobre o casamento: “A gente quer um canto de sossego”.

 

Nessa letra, há alguns trechos que sugerem doutrinas espiritualistas. A religiosidade está bem menos explícita do que em As Quatro Estações, com suas referências cristãs e budistas. Mas ela colore, por assim dizer, a descrição de doenças sociais e de distúrbios pessoais.

 

“A Fonte” é um bom exemplo disso, talvez a letra mais densa do álbum. Nela aparece também o domínio da linguagem por alguém que podia escolher entre a singeleza e o rebuscamento. Renato é um poeta de muitas vozes, ele que criou uma persona, o Russo, para ser um artista.

 

Sem fazer jus a toda essa complexidade, continuo a comentar os temas que atravessam as letras de O Descobrimento do Brasil. Comecemos pelo final, a morte. Os créditos homenageiam Tavinho Fialho, baixista durante a turnê de V, que faleceu em acidente no ano de 1993. Mas é a morte de outro jovem, o próprio Renato, que vivia com HIV, que se anuncia de vários modos.

 

Renato e a morte real que o rondou por conta dos exageros de álcool e outras drogas. “Me embriaguei morrendo vinte e nove vezes”. Essa morte “difícil”. A quase morte que produz feridas que impedem de aproveitar o dia: “Hoje não dá”.

 

Renato e a morte simbólica que permite um renascimento. “Vinte e nove dias na prisão”, o número de dias que ficou internado em uma clínica, o número de anos que tinha quando se tornou pai. A morte pode estar também no início.

 

Outro tema é a perda. Aqui entramos nos relacionamentos nunca estáveis de Renato, diante dos quais as amizades surgem como um porto mais seguro. “Me apaixono todo dia e é sempre a pessoa errada”. Embora a homossexualidade não esteja no primeiro plano (como foi assumida em As Quatro Estações e celebrada em Stonewall), ela, por fatores sociais (preconceito e inaceitação), aumenta as chances desses “erros” acontecerem.

 

Em entrevistas, Renato diz ter superado o amor romântico, valorizando mais a lealdade do que a fidelidade. Mas nas letras do sexto álbum, o que emerge parece ser consequência, bem ou mal digerida, de um romantismo recalcado.

 

“Viver sem você” é um aprendizado que não anula o lamento (desse você que “foi embora cedo demais”). Convive com a raiva que acompanha o exorcismo (“sai de mim”) e confessa a saudade que fica. Oscila entre a recordação serena e a ruptura pouco conformada: “Com você por perto eu gostava mais de mim”.

 

Por fim, a vida a ser celebrada. “Começar a viver”, “continuar limpo”, dizer o amor, ver que o “fim-do-mundo já passou”, enfim, “viver a vida em paz”. Renato convida: “Venha, o amor tem sempre a porta aberta, e vem chegando a primavera. Nosso futuro recomeça. Venha, que o que vem é perfeição”.

 

Mas, atenção, entre a morte e um dia perfeito, podem haver apenas “trinta e duas horas”. “No fim das contas ninguém sai vivo daqui”, como diz a letra de “Só Por Hoje” (um lema da reabilitação a que Renato se submeteu), na qual se repete a mensagem do refrão de “Pais e Filhos”: “viver um dia de cada vez”, é o que nos cabe.

 

Lembrei uma das músicas de álbuns anteriores a O Descobrimento e a escuta de suas faixas pode suscitar muitas outras. É parecido com o que ocorre, dizem, quando alguém está morrendo e o filme de sua biografia roda na mente. O sexto álbum da Legião Urbana reprocessa os temas da poética russoniana em um momento crucial de sua trajetória. Se desse para citar um verso que resume tudo, escolheria: “Viver é foda”.

 

Nota: Célula Pop já havia publicado outro comentário sobre O Descobrimento do Brasil. Não deixe de conferir aqui. Seria impossível saber o que sabemos sobre a trajetória da Legião Urbana e de seu líder nos anos 90 sem os livros de Arthur Dapieve e Chris Fuscaldo.

 

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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