Macca no Maraca 2023 – Maior que a Vida

 

Foto crédito: Marcus Hermes

 

Estou tentando há horas começar este texto. Na verdade, a angústia em escrevê-lo iniciou-se ontem, imediatamente após a execução do medley final do último show de Paul McCartney em 2023, no Maracanã. Foi a última apresentação do beatle no Brasil, a oitava. E também a derradeira desta segunda perna da turnê Got Back, que também compreendeu Austrália e México. Segundo informações da organização do show, 65 mil pessoas estiveram presentes ao Maracanã na noite de 16 de dezembro de 2023. Sem querer comparar, já comparando, é bem menos do que Paul levou ao velho Maracanã, em duas noites de 1990. Numa delas, em 21 de abril daquele ano, ele colocou 184 mil pessoas no estádio, um recorde na época. Eu estava lá. Tive a sorte de vê-lo nestas duas apresentações e em outras três vezes, totalizando cinco shows de Paul McCartney no meu currículo. A cada um deles, uma mágica diferente. A expectativa por alguma canção dos Beatles, dos Wings, algum hino, algum clássico, algum lado-B. A música de Paul está na minha vida desde muito cedo. O primeiro compacto que comprei foi o de “Goodnight Tonight”, por cinquenta cruzeiros, na velha Moto Discos de Copacabana. Eu tinha nove anos.

 

O tempo passa para todos, e ele, o tempo, é a chave para entender o que aconteceu ontem. Paul, 81 anos, é um mito. Além do ser humano. Quando ele está no palco, cantando sua obra – a mais consistente e relevante do século 20 – ele ultrapassa qualquer dimensão física e incorpora sentidos e significados sobre-humanos. Ser um Beatle em 2023 é algo além da vida. Ser o guardião deste túnel do tempo até diferentes momentos do século passado, é algo além do corpo físico. É algo que, diria eu, como crítico e pesquisador musical, além da nossa simples compreensão, justo pelo fato de que se manifesta aqui, agora, diante dos nossos olhos. Paul no palco, a esta altura do campeonato, é uma inevitável confusão de percepções. Não é só um músico, um produtor musical, um instrumentista, é algo muito além. Compreender e aceitar essa dimensão sobre-humana é ter, acima de tudo, noção da importância da arte e do próprio legado do qual Paul é o portador: o legado dos Beatles.

 

E ele não se faz de rogado quando o assunto é tocar músicas do grupo. Em 1990, quando veio pela primeira vez, Paul estava se reconectando com este legado, que ele procurara deixar de lado naqueles anos anteriores. Exceto pelo filme “Give My Regards To Broad Street”, de 1984, cuja trilha consistia de remakes de velhas canções dos Beatles, Paul fizera de tudo para deixá-los de lado. Na verdade, da segunda metade dos anos 1970, ele incorporou disco music, new wave, eletrônica, duetos com Stevie Wonder, com Michael Jackson, a própria trilha do filme, tudo, absolutamente tudo para correr numa raia diferente dos Fab 4. Depois disso, talvez cansado, aos 47 anos de idade, Paul voltou a cantar aquelas músicas imortais diante dos olhos dos mortais, dando a eles um espaço na boleia da transcendência. E nada disso mudou nos 34 anos que vieram em seguida. Ouvir, por exemplo, “Let It Be”, em 2023, é algo igualmente especial. Talvez até mais sério.

 

Digo isso porque, repito, perceber a passagem do tempo é a chave para entender Paul e sua importância. Aos 81 anos, Paul é um homem idoso que não tem qualquer problema em admitir os efeitos dos anos em sua vida. Por mais capacidade que tenha de preservar e cuidar de sua saúde, seu corpo já não responde da mesma forma a vários níveis de esforço, mas, mesmo assim, ele continua dando apresentações que ultrapassam as duas horas de duração, com mais de trinta canções no setlist, que envolvem troca de instrumentos, vigor físico e, claro, voz. Outro dia vimos um artigo jornalístico, feito por um ex-crítico de um jornal paulistano, que parecia clamar para si o mérito de detectar a decadência vocal de Paul. É algo evidente. Veja o caso de ontem: Paul entrou no palco do Maracanã à frente de sua ótima banda de apoio, brandindo seu velho baixo Hofner, dos tempos iniciais dos Beatles. A primeira canção que ele tocou foi “Can’t Buy Me Love”, gravada em 1964, há CINQUENTA E NOVE ANOS, cheia de gritos e demonstrações inequívocas de vigor dos músicos. Mas, ali, naquele palco, de algum jeito, idade e tempo transcorrido jogam a favor dele, dando uma autoridade inquestionável para declamar aqueles versos, tocar aquele instrumento. Ali, diante da multidão, Paul se torna maior que a vida. E a voz, amigos, pouco importa nessa hora.

 

O público de 2023 é composto por todas as faixas etárias. Temos sobreviventes do tempo dos Beatles, gente que foi nas primeiras apresentações, gente que levou filhos, netos, esposa, namorada, gente que nunca viu um show de rock e, nesse grupo, inúmeras e felizardas crianças, que nasceram quando Paul já tinha uns setenta anos e que puderam, maiores que a vida, testemunhar uma execução de “Blackbird” ou de “Band On The Run”. Em termos técnicos, o que há pra dizer? As imagens coletadas por Peter Jackson para a feitura de “Get Back”, o magnífico documentário sobre as gravações de “Let It Be”, em 1969, e os últimos dias dos Beatles, forneceu um grande número de imagens impressionantes, exibidas num telão state of the art. Especialmente feliz é o dueto com John Lennon em “I’ve Got A Feeling”, primeira canção do bis. Além dela, John recebe uma outra homenagem, em “Here Today”, faixa de “Tug Of War”, disco que Paul lançou em 1982, sob o impacto da morte do amigo. George Harrison é outro homenageado, com Paul tocando “Something”, clássico do álbum “Abbey Road”. É com ela, que ele engata numa sequência arrebatadora de colossos sonoros, que levará até o fim do show. As pessoas não pareciam acreditar que estavam diante daquela canção, que, é bom lembrar, não foi tocada na primeira passagem do Beatle pelo Maracanã. Ali, 1990, George estava vivo e experimentando uma época de renascimento artístico.

 

A banda, formada por Wix Wickens (teclados, o único a estar presente nas primeiras apresentações brasileiras), Abe Laboriel Jr (bateria), Rusty Anderson (guitarra) e Brian Ray (guitarra, baixo), teve a boa incorporação de um naipe de metais, o Hot City Horns, que deu vida e dimensão a canções já maravilhosas, como “Jet”, “Got To Get Her Into My Life” e “Live And Let Die”, que ainda traz seu arsenal pirotécnico e impressionante. O que dizer desses músicos? São capazes de executar qualquer arranjo para o show. Vão de “Being The Benefit Of Mr Kite” e “Birthday”, da lavra psicodélica dos Beatles a “Dance Tonight” e “New”, de álbuns gravados por Paul nos anos 2010 sem qualquer perda de qualidade. Além disso, há um momento acústico, no qual é resgatada uma canção dos tempos do Quarrymen, o grupo embrionário dos Beatles, “In Spite Of All The Danger”, além de “Love Me Do”, “Blackbird” e uma abençoada “I’ve Just Seen A Face”, originalmente gravada em “Help”, há 58 anos. Tudo funciona. Tudo faz sentido.

 

Faltou canção? Evidente que sim. Paul tem repertório para fazer outros três, quatro shows completamente diferentes. Só para ficar nas ausências mais óbvias, “Yesterday”, “The Long And Winding Road” e “The Fool On The Hill” ficaram de fora. Além delas, um universo de possibilidades, mas, quando chega a hora de “Hey Jude”, épico dos épicos, ajudada por um mural vivo com cartazes simulando o refrão da canção, com seu “nanana”, empunhado por 65 mil pessoas, essas ausências são mero detalhe.

 

Ver, ouvir e lidar com Paul McCartney em 2023 não é fácil. Ele desafia a rapidez do tempo atual. Desafia a percepção artística atual. Incomoda ao convencionalismo disfarçado de modernidade que rege a formação da própria opinião. E, mais que tudo: ele oferece um cantinho para todos na utopia do rock enquanto elemento transformador da sociedade. Todos mesmo: a vovó, a titia, o vovô, o netinho, a netinha, seja quem for, há um espaço na canção de ascendência beatle e na própria ideia do grupo nos dias de hoje. Sempre haverá alguém para dizer que “Ob-Ladi Ob-Lada” é uma “música boba”, “a pior dos Beatles”, assim como também haverá distorções como a recente cobrança feita a Paul num artigo risível de um jornal paulistano sobre não interagir com a música brasileira ao longo dos anos. Mesmo assim, o que ficará na lembrança é o tamanho acachapante do legado musical do homem, de sua importância definitiva para a música popular planetária do século passado, ainda ressoando até hoje. E vimos isso diante dos nossos próprios olhos. Como disse a crítica feita pelo jornal inglês The Independent, por conta da apresentação desta mesma turnê no Festival de Glastonbury, em julho de 2022: temos a sorte e o privilégio de vivermos na mesma época que um cara como Paul McCartney. E ponto final.

 

 

Set List

 

Can’t Buy Me Love

Juniors Farm

Letting Go

She’s A Woman

Got To Get You Into My Life

Come On To Me

Let Me Roll It

Getting Better

Let Em In

My Valentine

1985

Maybe I’m Amazed

I’ve Just Seen A Face

In Spite Of All The Danger

Love Me Do

Dance Tonight

Blackbird

Here Today

New

Lady Madonna

Jet

Mr Kite

Something

Obla Di Obla Da

Band on the Run

Get Back

Let It Be

Live and Let Die

Hey Jude

 

Bis

I’ve Got A Feeling

Birthday

Sgt Pepper reprise/Helter Skelter

Golden Slumbers

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

18 thoughts on “Macca no Maraca 2023 – Maior que a Vida

  • 19 de dezembro de 2023 em 20:36
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    Muito interessante! Concordo com cada palavra. Firmar como algo real e poder dizer para mim mesmo que vi um show de um Beatle é algo simplesmente indescritível!
    Tenho apenas 16 anos, me encaixo na categoria dos “netinhos”, como muito bem dito pelo senhor! Sempre sonhei em cantar Hey Jude com eles e poder realizar isso em 2023 é incontestavelmente incrível. Me entristeço por ser o último ao passo que nem acredito que ele veio aqui!!! Quando vi o anúncio do show no Instagram fui logo implorar para minha mãe para podermos ir, agradeço muito a ela por ter dado duro e bancado 4 ingressos para nós, ela realmente é muito guerreira!
    Enfim, acho que é isso. O mundo pode ter acabado, mas essa sensação de ter visto um show do Paul ninguém jamais nos tirará!

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  • 19 de dezembro de 2023 em 19:41
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    Sua visão do show e do legado de Paul retrata de maneira fidedigna quem Paul MacCartney e no mundo e o que ele representa.

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  • 19 de dezembro de 2023 em 17:58
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    Oi CEL, encantada com seu texto.
    Há nele, além da elegância que exibe, um sentimento, uma compreensão completamente diferente de tudo que li e, até do que senti pelo Paul, pelos Beatles, ao longo de minha vida. Vou reler para apreender toda a clareza que você descreve esse fenômeno que inundou a minha, as nossas vidas!
    Muito obrigada, você é brilhante!

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  • 19 de dezembro de 2023 em 15:06
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    CEL que pessoa que soube verbalizar meus pensamentos sobre Paul e os Beatles em geral Falou tudo com propriedade Sou desta época nasci em 1952Amo Amo os Beatles Parabéns pelo texto maravilhoso e doce de ler

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  • 19 de dezembro de 2023 em 14:51
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    Maravilhoso artigo !!! Termos o privilégio de assistir ao show do Paul, com 81 anos e esbanjando carisma, não é pra muitos !!!

    Que sorte a nossa !!!

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  • 19 de dezembro de 2023 em 12:19
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    Tudo que foi dito por você nao poderia ser melhor , estou feliz de ter vivido tudo que os Beatles representaram, apesar da voz não ter tanto poder , não importa porque o carisma a força que ele tem supera tudo isso e ver pessoas de todas as gerações vibrando foi incrivel. Assisti de minha casa no meu telão e pude vibrar , cantar, gritar , sorrir e chorar ao mesmo tempo. Amei!!!

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  • 18 de dezembro de 2023 em 20:07
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    A mais ou menos vinte e poucos anos, foi ínaugurádo um museu dos beatles, apos algum tempo foi fechado, por falta de visitantes! isto na inglaterra!

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  • 18 de dezembro de 2023 em 18:28
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    Texto excelente que expressa todas as nossas idéias e sentimentos de um homem extraordinário, ídolo da minha adolescência, que consegue manter a fama e o carinho do seu público por mais de 60 anos.

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  • 18 de dezembro de 2023 em 17:30
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    Excelente descrição da apresentação de Paul no Maraca, me senti como se estivesse novamente nos anos 60/70 e até 80.

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  • 18 de dezembro de 2023 em 16:59
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    reportagem de milhões, quanto ao Paul ter que interagir com a música Brasileira não vejo necessidade .

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  • 18 de dezembro de 2023 em 07:33
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    Voce definiu meus sentimentos sobre o show e sobretudo Paul !!! Fui ao longo da vida em 3 shows desse mito sendo o ultimo no dia 10 em Sao Paulo !!! Num dia de sonhos, transcedencia,magica a potencia vocal é um detalhe irrelevante e compensada pela presença de palco!!! Desde que me conheco por gente fico emocionada com os beatles e transbordo de amor ao constatar com toda autoridade que lhe compete que o ” pai ta on” e sempre estara!!! Obrigada Paul, te amo !!!

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  • 18 de dezembro de 2023 em 06:17
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    Gostei muito do seu texto.

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  • 18 de dezembro de 2023 em 00:58
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    Adorei, você foi muito sensível.
    Escreveu muito bem, verdadeiro, visceral!
    O show da minha vida, e foi no Couto Pereira.

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  • 18 de dezembro de 2023 em 00:32
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    O baixo que Paul usa atualmente, é uma cópia daquele dos primórdios, usado em Hamburgo e no Cavern. O original “se perdeu” nos estudios Abbey Road após as gravações do disco homônimo em 1969. Paul e Hoefner atualmente tentam localizar o instrumento…

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  • 17 de dezembro de 2023 em 23:21
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    Tenho 7 shows em pista premium desse mito.
    Ontem vi pela tv, tomando um espumante, com a mesma sensação da grandeza….
    Acho que o colunista foi extremamente preciso.
    Monumento da história da arte.
    Paul é o responsável por manter essa chama dos Beatles tão acesa…..
    Bem isso.
    Tive o privilégio de viver (E VER) Paul McCartney……

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  • 17 de dezembro de 2023 em 19:14
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    Um texto espetacular de quem entende profundamente o que é a Beatlemania e toda a sua história.
    Gostei muito de ler.
    Parabéns!

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  • 17 de dezembro de 2023 em 17:36
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    Tenho 62, assisti vários shows de Paul e sempre me sinto um menino maravilhado pelps fab 4. Em verdade a alma não envelhece , em que pese o corpo ir na direção contrária. Vida longa Paul, seu artigo está sensacional, don’t worry!

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