“Meu Coco” acena para Brasil que ainda pensa e reflete

 

 

 

Caetano Veloso – Meu Côco

Gênero: MPB

Duração: 43:57 min.
Faixas: 12
Produção: Lucas Nunes
Gravadora: Sony

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

“Meu Coco”, o novíssimo álbum de Caetano Veloso, é emocionante. A razão é simples, ainda que triste: ele nos lembra que é possível existir um Brasil reflexivo, eloquente, culto e perceptivo de sua própria natureza. Em tempos de burrismo crônico, é quase um milagre ver um sujeito de 79 anos emergir de um hiato de 11 anos, com tanta força e desejo criativos. Se há um traço marcante nesta nova criação caetânica é esta vontade irresistível de falar e ser ouvido, tudo com muito cuidado e atenção. Dá pra ver o misto de álbum concebido antes e durante a pandemia, limitado em raio de ação, mas amplo em soluções e virtudes estéticas. “Meu Coco” é um pequeno bálsamo, um documento que relata e pensa o Brasil de 2021 sem que seja preciso mergulhar no poço de lama e chorume. É uma pequena peça de sociologia musical, elegante e sincero. É moderno sem ser forçado; belo sem ser pedante; tradicional sem ser conservador.

 

Caetano enviou uma carta aberta junto com o lançamento do álbum, detalhando o processo criativo – que começou com a faixa-título – e como ele foi afetado pela chegada da covid-19. Ouvindo o feixe de 12 canções, a gente não consegue notar algum dano mais significativo que a pandemia tenha causado. Porém, “Meu Coco” é um documento de seu tempo. Caetano adora fazer as suas análises conjunturais em forma de música e este álbum traz, pelo menos, três. A já citada faixa-título, o single “Anjos Tronchos” e a inesperada “Enzo Gabriel”, batizada a partir de uma pesquisa nos registros oficiais de nascimentos no país entre 2018 e 2019, com o nome mais escolhido por pais e mães para batizar seus filhos. “Meu Coco”, a canção, é a mais lírica destas três canções. Fala da etnia brasileira, da mistura do povo, de como isso é o nosso trunfo para existir e como é, ao mesmo tempo, a nossa ruína nas mãos erradas. “Anjos Tronchos” é um olhar para o mundo sob o ponto de vista da tecnologia e como ela é monopólio nas mãos de corporações maiores que governos. E como também elas são criações individuais, os tais “anjos do Vale do Silício”, na Califórnia. Lembrando o próprio Caetano de 1991, “americanos são tipicamente americanos”.

 

“Meu Coco” tem algumas discretas autorreferências. “Gilgal”, uma das mais belas faixas do álbum, tem seu título extraído de um verso de “Este Amor”, faixa presente no ótimo álbum “Estrangeiro”, de 1989. Ela é percussiva, lenta e faz um inventário dos grandes nomes da música brasileira, de Jorge Ben a Pixinguinha, de Milton Nascimento a Jorge Veiga e João Gilberto, sem falar no título, que alude a Gilberto Gil e Gal Costa. Tudo é Caetano, ele é parte dessa herança também, sabe disso e assume este papel de porta-voz, que lhe cai tão bem. “Sem Samba Não Dá” também entra neste grupo de canções que fazem a tal análise de conjuntura. É uma celebração ao samba, do mesmo jeito que fez “Desde Que O Samba É Samba”, de “Tropicália 2”. A letra fala do estilo musical como uma identidade tão brasileira que seria impossível viver aqui sem ele/ela. Há menção a vários artistas sertanejos e pop brasileiro recentes e a estilos musicais como sambanejo e pagobrejo, todo mundo num grande Brasil. Faz sentido até.

 

“Meu Coco” ainda tem a presença de Carminho, que divide com Caetano a interpretação de “Você-Você”, um belo fado tropical, apropriado a este levantamento de identidade e herança. Mas o disco tem dois momentos tão preciosos que podem ser inseridos na galeria de grandes canções do velho compositor baiano: “Ciclâmen do Líbano”, que é uma faixa em câmera lenta, com violão hipnótico e uma letra que viaja em metáforas e citações sobre o amor como sentimento quase autônomo. O arranjo evolui para o uso de cordas, pensadas e executadas por Jaques Morelembaum, num momento de beleza emocionante. A outra canção irrepreensível é “Não Vou Deixar”, que tem andamento meio samba-reggae À meia-voz e um engajamento/indignação muito bonito, sobre a descaracterização que o país sofreu nos últimos anos: “Não vou deixar, não vou deixar você esculachar com a nossa história//É muito amor, é muita luta, é muito gozo, é muita dor e muita glória” ou “Apesar de você dizer que acabou//Que o sonho não tem mais cor//Eu grito e repito: eu não vou”. Tudo isso com outro arranjo lindo e que evolui em direção a dois interlúdios: um com cello e cordas, novamente com Morelembaum e outro, eletrônico, inesperado, entre o lo-fi e o improviso. Bravo.

 

 

“Meu Coco” abre os braços para quem ainda acredita que o país é mais do que os noticiários nos mostram. Que há espaço para sermos modernos por aqui sem que precisemos ser chineses ou americanos. É um disco-manifesto que se ergue no meio do vozerio empobrecido da música brasileira mainstream. Precisávamos disso há tempos.

 

Ouça primeiro: “Meu Coco”, “Anjos Tronchos”, “Não Vou Deixar”, “GilGal”, “Ciclâmen do Líbano”

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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