Legião Urbana e o (Re)Descobrimento do Brasil

 

Dezembro de 1993. Onde você estava, leitor? Muito cedo para estar aqui, entre nós? No colégio? Brincando no quintal, no play? Fazendo nada demais? A Legião Urbana estava lançando seu sexto disco, intitulado “O Descobrimento do Brasil”. Dois anos depois do trabalho anterior, “V”, o grupo liderado por Renato Russo vinha com energia renovada para as paradas de sucesso – rádio e MTV -, apostando em clipes, entrevistas e outras formas acessórias – para a época – de divulgação. Não que a música ficasse em segundo plano, pelo contrário: “Descobrimento” é o trabalho mais diverso e ousado da Legião que, apesar de vender quase um milhão de discos, é considerado “fraco” por um monte de gente.

À propósito, voltando ao início do texto, eu estava terminando o segundo período da faculdade de jornalismo e decidira fazer um curso de verão, de locução e dublagem. Como o resultado fora além do esperado, topei fazer uma versão mais aprofundada da coisa, dessa vez numa emissora de rádio FM daqui do Rio, a extinta Universidade FM. Pra quem gosta de rádio, entrar num estúdio pela primeira vez é algo inesquecível e – nota sentimental – quando me vi dentro daquele lugar mágico, a música que estava indo pro ar naquele momento era “Perfeição”, faixa que puxava “O Descobrimento do Brasil”. Esta é uma canção absolutamente diferente de tudo o que a Legião havia gravado até então. Batidas eletrônicas, vocais recitados, citação gloriosa da melodia de “O Bêbado e a Equilibrista” ao fim da faixa, uma nova Legião, enfim.

Quando perguntei a João Barone recentemente sobre “Severino” (em entrevista que você pode ler aqui ), ele se referiu ao álbum dos Paralamas como reflexo de um tempo em que os artistas do rock brasileiro oitentista captavam um clima pesado no ar. Era o tempo pós- impeachment do Collor, de rearranjos, gambiarras e uma grande ressaca politica. Tudo isso turbinado pelo fato de que a geração de Barone e Renato Russo havia atingido a marca dos  30 anos de idade e havia se tornado “séria”. Tal fato foi motivo de detonação indiscriminada de toda essa produção – entre 1991 e 1994 – das bandas da década anterior por parte da crítica especializada. Na época já parecia injusto. Hoje, vinte e tantos anos depois, é patético. “Severino” e “Descobrimento” estão inseridos nesta produção e se tornaram alvo preferencial. Repito: injusto.

A capa de “Descobrimento” já mostra uma enorme diferença em relação a tudo que a Legião havia lançado antes: uma foto do grupo em meio a arranjos de flores – idealizadas pelo trio e pelo fotógrafo Flávio Colker – com os integrantes vestidos a caráter; Renato como um sacerdote, Bonfá como um camponês e Dado como um trovador medieval. O conceito trazia dois caminhos: o grupo “descobrindo o Brasil” daquele tempo, com todas as mazelas e problemas – tristemente atuais – e lidando com a recém-reconquistada sobriedade de Russo, que vinha de um período barra pesada de dependência do álcool, totalmente refletido no clima de “V”, considerado, este sim, o disco mais sombrio da carreira do grupo. “Descobrimento do Brasil” não era sobre isso, pelo contrário, era sobre sair disso, viver novamente e dar de cara com um cenário caótico e triste.

Renato Russo, sabemos todos, era a alma e a razão de existir da Legião Urbana. O que passava por sua mente era o que alimentava as canções do grupo e tudo o que vinha a partir disso. Desta forma, a carga lírica de “Descobrimento” é uma detalhada descrição de como ele lidava com este país e o tempo em que estava, 1993, quase 1994. Enquanto o país vivia o ufanismo de mais uma caminhada para a Copa do Mundo, Russo vinha com a já citada “Perfeição”, cujo verso de abertura era “vamos celebrar a estupidez humana, a estupidez de todas as nações, o meu país e sua corja de assassinos, covardes, estupradores e ladrões”. Estas palavras colocam no chinelo a fúria juvenil de “Geração Coca-Cola”, lançada nove anos antes. Russo vai falando de mitologia grega, estado que não é nação, ignorância total, televisão, epidemias e, um de seus maiores êxitos enquanto poeta: referir-se à história do Brasil como “um passado de absurdos gloriosos”.

Mas “Perfeição” era só a ponta do iceberg. As faixas do disco guardam momentos preciosos e multifacetados. O segundo single, a faixa-título, já vinha por um outro caminho, totalmente diferente. Era uma celebração ao afeto, ao amor e à dureza que um casal jovem enfrentava na época para iniciar uma vida a dois. Em meio à letra, figuras abstratas, falas, lembranças dos tempos de colégio e um clima bucólico que vai crescendo à medida que a canção avança. Pouca gente notou, mas o arranjo desta faixa é igualmente ousado: teclado, bateria eletrônica, bandolins e o resultado é uma sonoridade opaca, estranha, mas paradoxalmente acolhedora. Outro acerto do grupo em estúdio e uma prova contundente de sua evolução no artesanato de arranjos, composição e afins.

As outras faixas são mais convencionais, ainda que guardem detalhes preciosos. “Do Espírito” é um rockão enguitarrado, ao qual a imprensa da época referiu-se como “o grunge da Legião”, motivo de vergonha alheia que permanece até hoje. Os instrumentais – que a banda vinha inserindo desde o álbum anterior – são representados por “O Passeio da Boa Vista”, com ar renascentista. Outras canções ainda soam distantes do que poderíamos chamar de “som Legião”: “A Fonte”, oscila teclados com guitarrices e vocais processados; Os Anjos” soa como um rascunho de canção – certamente uma das mais fracas do álbum – enquanto a trinca “Um Dia Perfeito” (linda e triste, com o verso cortante “quase morri há menos de 32 horas atrás e hoje a gente tá na varanda de um dia perfeito”), “Love In The Afternoon” – dedicada aos mitos do rock que se foram cedo demais – e a soberba “La Nuova Gioventu”, que fecha o disco, com o assalto de guitarras pós-punk que a Legião sempre ofereceu aqui e ali, mas sempre com amor: “Com você por perto, gostava mais de mim”.

Qualquer análise do álbum é imprecisa se deixar de lado três canções “convencionais” que se tornaram hinos dos fãs do grupo: “29”, “Giz” e “Vamos Fazer Um Filme”. A primeira, cheia de figuras contendo o número 29, fala de suicídio, prisões, odisseias e até do retorno de Saturno – cuja órbita dura 29 anos em torno do Sol – surge como favorita de fãs dedicados; “Giz” é a  preferida de Renato Russo em toda a carreira, é uma lindeza infanto-juvenil com figuras de poesia sobre sol desenhado na calçada depois da chuva e outras imagens de pureza e amor. A terceira, sobre união, otimismo e força contra os “bastardos que querem te colocar pra baixo”, é uma pequena aula de doçura e reconhecimento. Versos como “E hoje em dia, como é que se diz eu te amo?” ou “a única maneira de imaginar a minha vida é enxergá-la como um musical dos anos 30” só mostram o quanto Renato Russo foi um ponto fora da curva dos compositores e letristas da música brasileira em todos os tempos.

Engajado, musical, consciente, exuberante e multifacetado. Este é “O Descobrimento do Brasil”, talvez um disco complexo demais para ser entendido em seu tempo. Como os fatos mais importantes da história, diga-se de passagem. Vamos redescobri-lo, pois.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

3 thoughts on “Legião Urbana e o (Re)Descobrimento do Brasil

  • 28 de março de 2019 em 17:19
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    Á época, considerei um álbum muito irregular. Com o passar do tempo, tornou-se um dos meus preferidos da Legião! Além das guitarradas, transbordam bandolins, teclados e sonoridades que estavam latentes na Legião, e aqui foram definitivamente assumidas. Que repertório!

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  • 28 de março de 2019 em 14:42
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    Nada mais justo que este texto de Sábias palavras, buriladas com toda a pompa e circunstância, para depois de 1/4 de século promover a justiça e desmistificar tão subestimada obra.
    Parabéns, Mestre CEL 🙂

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  • 28 de março de 2019 em 12:04
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    Lindão!
    Tomara que mais pessoas, após ler este texto superlegal, escutem com atenção o disco.

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