Fausto Fawcett e seu álbum maldito

 

 

 

Nos últimos anos, Fausto Fawcett voltou às manchetes culturais. Lançou outro livro (Pesadelo Ambicioso, 2022), virou tema de documentário (Fausto Fawcett na Cabeça, 2022) e reativou a parceria com os Robôs Efêmeros (desde 2018).

 

O multiartista Fausto merece uma atenção do tamanho das palavras que lhe dedicou Cacá Diegues. O cineasta o comparou a Jorge Mautner em sua capacidade de aguçar a observação do mundo e o chamou, por conta de seu talento e estilo narrativo, de “Guimarães Rosa urbano”.

 

 

Essas palavras compõem a apresentação de Básico Instinto, o livro de contos que Fawcett lançou em 1992. Na capa estão duas louras. E louras é quase tudo o que se lembra do álbum de 1993 que é tema deste comentário.

 

 

Comparado a seus dois primeiros álbuns (Fausto Fawcett e os Robôs Efêmeros, de 1987, e O Império dos Sentidos, de 1989), Básico Instinto é bem menos celebrado (apesar disso, é o único dos três disponível nas plataformas de streaming). Ocorre que ele não é menos interessante, se soubermos escutá-lo com um olho ligado na literatura do artista e o outro nos rumos que o rock brasileiro estava tomando.

 

 

Louras literárias

As louras não foram uma novidade dos anos 90 na vida de Fausto. Seu nome artístico, assumido bem antes, homenageia a atriz das Panteras, seriado exibido nas TVs brasileiras na década de 70. Kátia Flávia, que protagoniza o grande hit do primeiro álbum, era uma “louraça belzebu”.

 

 

Mas é verdade que a fixação ganha cores mais fortes a partir de Santa Clara Poltergeist, livro publicado em 1990 que conta a saga de Verinha Blumenau (a associação com Vera Fischer é inevitável). A personagem inspirou também um show-performance, que ficou em cartaz durante dois meses de 1992 em um pequeno espaço no Rio.

 

 

Ainda em 1992, estreia outro show, em uma casa mais destacada, com o nome Básico Instinto. Dessa vez o papo era com o cinema, por conta do filme estrelado por Sharon Stone, Instinto Selvagem (no original, Basic Instinct). O livro homônimo de Fawcett foi lançado durante uma das apresentações.

 

 

Por conta do sucesso, o show teve sua temporada carioca prolongada e em 1993 zarpou para outras capitais. Desdobrou-se em um programa de televisão, de sete episódios, transmitido pela Rede Bandeirantes. E só então virou o álbum gravado nos estúdios Mega e Discover e lançado nos meses finais do mesmo ano.

 

 

Básico Instinto, o show, era estrelado por mulheres da estirpe de Farrah Fawcett, Kátia Flávia, Vera Fischer e Sharon Stone. No início, eram quatro: Regina Soares, Kátia Bronstein, Luzia Mayer e Gisele Rosa. Em março de 1993, o elenco é acrescido de Marinara Costa. Meses depois, Luzia é substituída por Luciana Brites. Embora nos shows, que seguiram até o final do ano, o número de louras tenha chegado a oito, cinco fizeram parte da escalação que participa da gravação do álbum.

 

 

Os nomes são importantes não apenas como registro ao trabalho das dançarinas, mas também para entendermos um dos eixos que estrutura o álbum. Vou chamá-lo de “núcleo oba-oba”, em referência ao lugar onde ocorriam os shows de Sargentelli, estrelados por “mulatas”. Sargentelli chega a ser entrevistado em um dos episódios do programa de TV associado a Básico Instinto e Fausto, com seu show, se insere numa – hoje ultrapassada – “tradição das gostosonas”.

 

 

Quatro das onze faixas do álbum são odes às dançarinas, algumas delas também atuando em inserções vocais: “Katia Talismã”, “Gisele”, “Regininha” e “Marinara”. Luciana ganhou uma homenagem apenas em shows posteriores à gravação do álbum. E dá para incluir no mesmo núcleo oba-oba uma quinta faixa, “Pagode da Lourinha”.

 

 

Mas há outros dois eixos atravessando Básico Instinto. O primeiro faz conexão com temas que marcam momentos anteriores da obra de Fausto. “Santa Clara Poltergeist II” retoma o enredo do livro, que já inspirara uma faixa de O Império dos Sentidos. Pode-se colocar aí “Numa Boate Qualquer”, que encerrava o show “Santa Clara Poltergeist”, além da porno-telegráfica “Sodoma Gomorra”.

 

 

Temos aí o “núcleo ficcional” de Básico Instinto. As letras dialogam com traços das narrativas faustianas, que já foram caracterizadas como um cyberpunk tupiniquim. Copacabana é o cenário privilegiado dessas narrativas, mas elas poderiam ocorrer nos bairros de tantas outras metrópoles periféricas. Suas personagens têm corpos transformados por gambiarras tecnológicas e espirituais, envoltas com tramas que misturam sexo orgânico e maquínico.

 

 

É difícil sintetizar as colagens-reciclagens de Fausto Fawcett, que lembram um Chatgpt alucinado. Fica a sugestão para que sejam experimentadas diretamente, tanto em Santa Clara Poltergeist e Básico Instinto, quanto em Favelost e Pororoca Rave, estes livros publicados no século atual. Vale mencionar que há na capa do álbum uma conjunção de elementos que povoam os textos do escritor. Nas palavras dele, uma “cruceta”, “rútila vulva” sobreposta por uma cruz de São Cipriano.

 

 

Com essas referências, podemos dar outro sentido a versos que percorrem as odes louras. Dois exemplos: “No meu corpo brilha o super kirlian da invisível majestade selvagem do amor imprevisível” (“Kátia Talismã”) e “Seu espírito é espírito, licor de sangue mel / Seu corpo é hóstia loura do amém gostoso” (“Regininha”).

 

 

Nesse quadro, as duas músicas restantes constituem o “núcleo filosófico” de Básico Instinto. A impactante faixa título faz companhia a um dos textos do livro homônimo. Distintamente dos outros contos, esse é um ensaio de ideias: “Reza a lenda filosófica que existem forças caóticas inauguradoras do universo” que “mandam sinais em forma de básicos instintos que transformam as pessoas em vetores de afirmação vital totalmente obsessiva e amoral”.

 

 

“KGLRM” é formada com as iniciais das cinco louras que participam da gravação do álbum. É também a sua explicação: “E o Mefistófeles dizia: faz um show despacho para as louras entidades pinups que são os vetores do teu básico instinto do teu divino demônio pessoal”. Ou seja, mais do que mulheres com nome e sobrenome, as louras são uma ficção faustiana que materializam as mesmas forças que compõem todos os seres fantásticos que percorrem seus escritos.

 

 

Nesse universo faustiano-fáustico, estrelas de filmes pornô – citadas em “Numa Boate Qualquer” – podem conviver com apresentadoras de programas infantis – Xuxa é mencionada em “KGLRM”. Em que universo senão esse seria possível que outra apresentadora de programas infantis gravasse uma letra composta por Fawcett? Refiro-me a “Loura Romântica”, faixa do LP Meu Jeito de Ser (1993), de Angélica.

 

 

Esse embaralhamento, no entanto, corria o risco de ser ofuscado ou mesmo totalmente ocultado pela forma que tomou Básico Instinto, o show. Em Santa Clara Poltergeist, as mulheres se dividiam entre narradoras e dançarinas. As luzes enganavam os sentidos. Já no show das louras, mesmo com as coreografias de uma Débora Colker, o foco centrou-se nitidamente no corpo pouco coberto das louras.

 

 

A contrapartida para o espetáculo explícito do palco era um público de manifestações esmagadoramente masculinas. E o básico instinto era canalizado em entretenimento machista: nesse cenário, parafraseando a faixa-título do álbum, não há filosofia que estanque o sexismo socialmente arraigado.

 

 

Visto assim, o show de Fausto dialoga com uma tendência do início dos anos 90 que ainda demanda uma boa explicação. Nas letras de artistas de rock e pop, mulheres figuram como “puta disfarçada”, aparecem roçando seus corpos no selim, exibem-se como “garota nacional” ou fazem as vezes de “loura burra”.

 

 

Em favor de Fawcett, saliente-se que suas louras nunca são burras. Ao contrário, nas letras e sobretudo em seus textos, as mulheres são personagens cheias de poderes e agências, com corpos transmutados e transmutantes. Como Clara Poltergeist: “Santa que cura com sexo, loura que cura com sangue”.

 

 

Houve quem criticasse o álbum Básico Instinto por estar desfalcado das imagens do show. Deveria ser um DVD, etc. Não acho. Prefiro pensar que o melhor complemento para as músicas do álbum está nos livros de Fawcett.

 

 

O corpo invadido do rock

Em Básico Instinto, Fausto deixa de estar cercado pelos Robôs Efêmeros, como ocorre nos dois primeiros álbuns. Dos parceiros anteriores, resta Carlos Laufer, guitarrista que acompanha Fawcett desde suas performances do início dos anos 80. Agora Laufer é parte, junto com as cinco louras, da Falange Moulin Rouge.

 

 

De acordo com os créditos do álbum, faziam ainda parte da Falange o baixista Dé, que em 1990 havia deixado a Barão Vermelho, e Paulo Futura, que de início era o DJ residente da Mistura Fina, casa onde estreou o show. Algum tempo depois, ele é integrado à banda, contribuindo com scratches e samples variados.

 

 

Figuram como convidados músicos que, na verdade, participaram dos shows iniciais: João Barone, baterista da Paralamas, e Dado Villa Lobos, guitarrista da Legião Urbana, que já colaborara no show Santa Clara Poltergeist.

 

 

Constam ainda como convidados, entre outros: o percussionista Eduardo Lyra, que também tocava com a Paralamas, o guitarrista Billy Brandão, parceiro de Paulinho Moska, e o tecladista Marcelo de Alexandre, este um antigo companheiro de Fausto.

 

 

A “marca Paralamas” é reforçada com o trabalho de Carlos Savalla na produção, ao lado de Laufer e Dé. Vale lembrar que Herbert Vianna foi o produtor do segundo álbum de Fausto, assumindo boa parte dos instrumentos.

 

 

Contas feitas, percebemos que a Falange Moulin Rouge mobilizou figuras de algumas das principais bandas do BRock! E quando pensamos em notar que os Titãs ficaram faltando, alguém vai lembrar que Charles Gavin substituiu Barone em parte da turnê.

 

 

Sendo assim, Básico Instinto nos oferece a chance de refletir sobre as transformações que se operavam tomando como ponto de partida o rock nacional dos anos 80. Além da Falange, Fausto estava contribuindo para essas transformações por meio de suas parcerias com Fernanda Abreu, egressa da Blitz. Fernanda havia colaborado em uma faixa do primeiro álbum de Fausto. Em 1992, ganhou muito destaque “Rio 40 graus”, música do segundo disco de Fernanda com participação de Fausto na letra e nos vocais.

 

 

Adotando esse ponto de vista, como pôr em palavras o que escutamos em Básico Instinto? Uma primeira constatação é que a música deixa de soar como acompanhamento dos raps faustianos, algo que, com bastante simplificação, poderíamos notar de várias faixas dos dois primeiros álbuns. Sobre a proposta incutida no álbum de 93, a principal dica está em “KGLRM”, que termina anunciando: “Essa é a Falange Moulin Rouge apresentando seu teatro de revista samba funk”.

 

 

A música a que mais se aplica essa descrição é “Marinara”, que alterna um funk suingado com um sambão requebrante. Mais para o funk, temos “Katia Talismã”, encorpado por metais, e “Regininha”, com samples da voz de James Brown. Duas das três faixas que constam apenas do formato CD, “Te Adoro Mas Não Tô a Fim” e “Groove”, seguem nessa onda, a mesma em que navega “Santa Clara Poltergeist II”, diferenciada por uma guitarra reggae.

 

 

“Básico Instinto” e “KGLRM”, faixas do núcleo filosófico, estão para esse lado também, mas com guitarras cheias e distorcidas, produzindo um som envenenado, totalmente em sintonia com o vermelho-pombagira que domina a arte do álbum.

 

 

Antes de irmos para o lado do samba, notemos que “Numa Boate Qualquer” e “Sodoma Gomorra” são um ponto de intersecção com timbres e gêneros que estão presentes no segundo álbum, que flerta com a música eletrônica.

 

 

O samba não é uma novidade no trajeto de Fausto – vide “Juliette”, do primeiro álbum. Mas vem bem reforçado em Básico Instinto. “Gisele” é generosa na malemolência. “Básico Instinto” ganha, no formato CD, uma versão “forró”, mas que soa mais como um batuque hare krishna.

 

 

O destaque vai para “Pagode da Lourinha”, que entrega os instrumentos para o Grupo Raça, então preparando seu quinto LP. O Raça era um dos expoentes do gênero que, ao lado do sertanejo e do axé, ganhava terreno sobre o rock. Fazendo ao mesmo tempo homenagem e paródia, Fausto alia-se ao “inimigo” para invocar igualmente “a velha guarda” e “a nova guarda” “de qualquer escola”.

 

 

A letra ainda faz saudações a vários sambistas, incluindo na lista Jorge Benjor e Tim Maia.  Escolas de samba figuram também em “Marinara”, enquanto que “Gisele” cita um trecho do samba enredo da Padre Miguel do desfile carioca de 1992.

 

 

Faz então sentido interpretar o “samba funk” como slogan publicitário para misturas mais amplas. Outros elementos, o rap, o rock’n’roll e o swing, são mencionados em “Katia Talismã”. Como sabemos, são as misturas que vão definir a cara do rock brasileiro nos anos 90.

 

 

Aliás, Básico Instinto é um dos primeiros lançamentos do selo Chaos (Sony Music), que esteve entre os divulgadores da nova safra de bandas. Dele fizeram parte Skank e Chico Science e Nação Zumbi.

 

 

Além disso, pelo programa de TV associado ao álbum, que incluía alguns shows gravados no Teatro Rival, passaram nomes que ganhariam destaque nos anos seguintes, como B Negão (então com a banda Juliete) e Pedro Luís (ao lado de Arícia Mess). Muito antes, os Robôs Efêmeros já haviam contado com participações de Nelson Meirelles e Marcelo Lobato, fundadores d’O Rappa.

 

 

Básico Instinto conjura músicas cheias de energia, ectoplasma e ziriguidum, que soam bem até hoje. Mesmo se o considerarmos datado, é justo vê-lo como os seres mediúnicos que povoam a literatura faustiana.  Afinal, o álbum canaliza forças, tal como espíritos desencapados, que serão essenciais para a configuração do rock dos anos 90.

 

 

* Este texto é dedicado a Fred M, parceiro que me apresentou a faceta escritor de Fausto Fawcett.

 

 

 

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

4 thoughts on “Fausto Fawcett e seu álbum maldito

  • 31 de agosto de 2023 em 03:45
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    Adoro o trabalho do Fausto Fawcett e estava ansioso por este álbum há muito tempo! A maneira como ele consegue fundir diferentes estilos musicais de forma única e autêntica é simplesmente incrível. As letras provocativas e o desenvolvimento das melodias são cativantes. Parabéns pelo artigo, Celula Pop! CGPTOnline.

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  • 24 de agosto de 2023 em 05:13
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    As colagens de Fausto Fawcett exibem uma semelhança caótica com um ChatGPT alucinante. Recomenda-se o envolvimento direto com obras como “Santa Clara Poltergeist”, “Favelost” e “Pororoca Rave” deste século. A imagem da capa do álbum, uma “cruceta” e uma “vulva rutilante” cortada por uma cruz de São Cipriano, reflete os motivos textuais do escritor.

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  • 6 de julho de 2023 em 06:22
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    Excelente artigo! É ótimo ver uma análise aprofundada sobre o álbum “Maldito” de Fausto Fawcett. Apreciei especialmente a forma como abordaram as letras ousadas e provocadoras presentes no trabalho. É refrescante ver artistas que desafiam os limites e criam algo genuinamente fora do comum. Parabéns ao site por destacar e valorizar essa obra tão peculiar. GPTOnline

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