Da Janela Lateral

 

 

Quem não tem suas fases musicais? Eu tive várias. A de ouvir Disco Music, a de ouvir The Police, a de conhecer os discos do Queen, a de ouvir Soul Music, a de ouvir música nacional. Tive e ainda tenho. Por exemplo, há até bem pouco tempo eu estava mergulhado em música eletrônica. Mas quero lembrar de um momento importante na construção do meu gosto musical, responsável, em primeira e última instância, pelo meu próprio caráter e por quem eu sou. Lá por 1986/87, entre os 15 e 16 anos, eu mergulhei na audição da MPB pela primeira vez. Apesar de crescer numa casa com discos de Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gal Costa, entre outros, até então eu não dera a atenção necessária à música feita aqui, exceto pelo rock nacional, à todo vapor naquela época. Talvez as tinturas nacionais de “Selvagem?”, terceiro disco dos Paralamas do Sucesso, tenham ajudado, talvez um grupo de amigos de colégio, os quais se encontravam frequentemente, tenha seu quinhão de responsabilidade, vá saber. O fato é que eu descobri, nesta época, a música do pessoal do Clube da Esquina.

 

Aquela musicalidade fez muito sentido pra mim. Eu passara minha infância entre Rio e Corrêas, distrito de Petrópolis, lá passando quatro meses por ano numa casa com campo, rua de terra, soltando pipa, andando de bicicleta e jogando bola. Era muito diferente do que havia no Rio. Desenvolvi naturalmente uma familiaridade em relação àquelas pessoas e àquela vida mais simples, algo que me marca até hoje. Tenho recordações de fatos acontecidos aos nove, dez anos de idade, sempre em Corrêas, sempre com aquele grupo de amigos que se perdeu com o tempo. De alguma forma, as canções do pessoal do Clube da Esquina, a saber, Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes, Toninho Horta, 14 Bis, entre outros, se comunicava diretamente com este período campestre e pré-adolescente e isso acontece até hoje, 2019. Provavelmente vai ser assim até o fim.

 

Então, em meio aos meus 16 anos, tomando ciência do mundo, das pessoas, da justiça e dos valores que devem – ou deveriam – nortear nossos atos, fui totalmente influenciado por esta produção musical, concebida na década anterior, num país sob a ditadura civil- militar. As letras, as canções, os discos, tudo fazia sentido e me levava para um lugar em que havia cheiro de mato, menos gente na rua, Fuscas e Brasílias nas ruas e uma cordialidade/gentileza natural entre as pessoas. Talvez para um lugar mais justo e ideal, mas disso eu ainda não tenho certeza. Muitas destas canções foram compostas e gravadas por gente que queria mudar o mundo e achava que o faria a partir deste ato. E o que eles desejavam era, justamente, um lugar como o que eu via/sentia ao ouvir tais canções. Posso dizer que, pelo menos, para mim, este mundo melhor e idealizado se materializava ao ouvir estes discos. Dentre eles, lá estava o “Ao Vivo”, de Milton Nascimento. Eu o conhecera numa noite na casa da Fernanda, ponto de encontro das reuniões de amigos do colégio, na qual ouvíamos o acervo de seus pais. Ivan Lins, Milton, Beto Guedes, Boca Livre, vários discos prontos para serem apreciados e, entre eles, o álbum com capa branca, a foto do Milton Nascimento e a inscrição “Ao Vivo”.

 

O Brasil daquele tempo era o do Plano Cruzado, do Sarney, uma espécie de apêndice da mesma ditadura civil-militar de anos antes. Era o país que vira a chance de escolher diretamente um presidente depois de 20 anos escorrer pelo ralo da injustiça histórica, na campanha das Diretas Já. Milton ganhara novo fôlego em sua carreira com este momento, por dois músicas/motivos: “Coração de Estudante”, uma canção composta para o documentário “Jango”, de Silvio Tendler, a primeira produção a trazer a verdade sobre o golpe de 1964, que fora cooptada como tema informal das “Diretas Já”. E, além dela, “Menestrel das Alagoas”, que colou na morte do senador Teotônio Vilela, político vinculado ao movimento, em 1983. Sendo assim, ouvir este disco era também um ato político, mas seu maior significado em minha vida – que permanece até hoje – foi ter me apresentado a uma canção chamada “Paisagem da Janela”.

 

Ela surge majestosa como terceira faixa do antigo “um lado”, o lado A do velho vinil, com selo trazendo imagem da lua. O “outro lado” – ou lado B – ostentava a imagem da Terra – coisas dos tempos do vinil que realmente fazem falta. Pois bem, “Paisagem…” é perfeita sob todos os aspectos. Seu andamento mais rápido, seu instrumental pop, os vocais de Milton nas raias da elegância e, sobretudo, a magistral letra de Fernando Brant, que falava de uma série de imagens que brotavam em sua mente a partir do momento que tinha de descanso em seu quarto em Belo Horizonte. Quem nunca fechou a porta do quarto e olhou para a paisagem da janela, em paz, seguro, e, a partir daí, soltou sua mente sobre o mundo? Pois é. Brant escreveu a letra da gravação original que foi feita em 1972, para o próprio álbum “Clube da Esquina”. Quem a musicou foi o pós-adolescente Lô Borges, com 19 anos na época do lançamento. Brant já tinha 25 anos, muito mais adulto que o jovem Salomão Filho. Anos mais tarde eu tomei conhecimento desta gravação original, contida no “Clube”, até hoje um dos meus três discos preferidos gravados no Brasil em todos os tempos.

 

A mágica de “Paisagem da Janela” tem desdobramentos. A letra original, de 1972, tem o verso “Você não QUER acreditar, mas isso é tão normal”, enquanto a versão de Milton, gravada ao vivo, no Palácio das Convenções do Anhembi, em 1983, fala em “Você não QUIS acreditar”, o que, para mim, faz muito mais sentido. Se pensarmos que “Paisagem … ” é uma canção sobre reminiscências da infância, tempo de segurança no nosso quarto, a salvo do mundo, faz muito mais sentido que as imagens e divagações que Brant fala – cavaleiro marginal, cores, cemitérios, igrejas, sinais de glória – sejam fatos contados para alguém no pretérito perfeito, ou seja, no passado. Eu te contei, você não acreditou, ou melhor, não quis acreditar. Funciona melhor do que contar tais fatos e descrever tais imagens no presente, agora, eu te conto, você não acredita, ou melhor, não quer acreditar. Puristas haverão de discordar, preferindo o original, mas eu jamais cantei “você não QUER”, sempre “você não QUIS”. Coisa minha.

 

A música brasileira tem várias versões da canção. Beto Guedes a registrou em 1984, em seu disco “Viagem das Mãos”. Elba Ramalho também tem uma interpretação interessante da canção, gravada em 1995. Flávio Venturini, André Mehmari, Michelle Leal, entre outros, já a gravaram ao longo do tempo. O próprio Lô Borges, um dos autores, a registrou gloriosamente ao vivo em 2017, em meio ao DVD de sua apresentação “Tênis Clube”, no Circo Voador, na qual revisitou o repertório de seu primeiro disco solo, o “Disco do Tênis” e de suas composições do “Clube da Esquina”, ambos de 1972. Ainda que o arranjo original, com aquele infalível dedilhado de guitarras em progressão seja irresistível para meu coração, ainda prefiro, entre todas estas, a gravação ao vivo de Milton, em 1983.

 

Hoje em dia, burro velho, as canções desse pessoal ainda significam muito para mim. E, sim, ainda são portos seguros em que tudo é possível, inclusive os desejos interpretados originalmente por mim, ainda menino: um mundo mais justo, igual, fraterno, harmonioso, nem que ele só seja possível quando olhado da janela lateral do quarto de dormir.

 

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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