Vocês não estão prontos para Nico Paulo
Nico Paulo – Nico Paulo
36′, 10 faixas
(Forward Music)
“Eu sou uma cantora na mesma tradição de Gal Costa, Feist, Nico e Victoria Legrand”. Esta é a impressionante Nico Paulo tentando se definir e ao seu trabalho para um público que me parece embrutecido demais para se defrontar com tamanha beleza. O primeiro álbum da canadense-portuguesa é assombroso, impressionante e ainda comporta outros mil adjetivos e superlativos. Confesso que me deparei com Nico pensando que ela era um homem. Tudo bem, essas confusões acontecem e a gente disfarça com uma piscadela rápida. Daí vem a foto da capa de seu primeiro disco, homônimo, que a mostra numa paisagem ensolarada, idílica, em que a alegria parece dar o tom maior. Apenas a foto, nem a presença de seu nome estampado, ou seja, o que se vê é uma artista assumindo a forma de sua arte ou vice-versa. Pode ser típico da juventude, uma escolha, um conceito, jamais uma jogada de marketing. A música que Nico oferece ao público está, certamente, acima desses conceitos mercadológicos. Minha ingenuidade resistente ao tempo e às quedas da vida ainda insiste em acreditar nessas coisas, sendo assim, vamos desse jeito.
Nicole Maria Morgado Paulo é natural da região da Leiria, centro de Portugal. Além de musicista, ela é artista plástica e parece ter um conceito muito claro em sua obra. Ela diz que suas canções abraçam ideias abstratas como água, tempo, família e flores, algo que nos põe a pensar na dureza do exercício de olhar tais coisas com percepção para levá-las além de seus sentidos estritos. Se pensarmos bem, essas quatro instâncias povoam a maioria das nossas vidas, de diferentes formas. Exercitar esse raciocínio, mais do que “viajar”, é quase uma imposição feita ao ouvinte pela beleza das canções de Nico. É tudo tão gentil, suave, delicado e belo, que a gente – eu, pelo menos – precisa entender de onde, de que mundo, de que dimensão vem algo tão desconcertantemente bonito. É mais do que amor, experiência de vida, pensamentos coincidentes, de alguma forma, na mente e no coração desta jovem artista portuguesa habita este mundo lindo, e Nico é capaz de expressá-lo bem o bastante, pelo menos, a ponto de nos envolver nele e isso, mais que música, é quase uma dádiva.
Ouvindo as dez faixas do álbum, o resultado é acachapante. Não há um único deslize, um erro, um exagero. As melodias são perfeitas, solenes, que geram arranjos muito elaborados e cuidadosos, cortesia de Nico e dos produtores Joshua Van Tassel e Tim Baker, que também acompanham a moça em estúdio. É bom que se diga: Nico não abre mão de um instrumental de banda, com um desenho “convencional”, mas que rende maravilhas nas mãos de gente com esta visão de beleza. Em alguns momentos mais impetuosos, lembra os irlandeses do The Frames, mas, onde eles são bombásticos, Nico é sutil como uma palpitação no peito, como um arrepio na alma. Sua música estabelece uma conexão direta com os centros sentimentais do cérebro ou, sei lá, do coração. Cada uma das dez canções oferece detalhes em quantidade suficiente para várias audições dedicadas. Uma para se emocionar, outra para se deliciar com o arranjo, uma terceira para entender, uma quarta para ficar perplexo e por aí vai. Se há um “fardo” no disco de Nico é que ele não é superficial. Não dá pra entrar e sair de mansinho, dar uma rapidinha. É coisa séria. Sempre.
Recomendar canções? Sinceramente, é um expediente que gosto de usar em textos como este, mas, no caso de “Nico Paulo”, o álbum, me parece sem sentido. A cantora e compositora portuguesa oferece um feixe, um ramalhete de canções num tempo total de trinta e seis minutos e meio. Desde a introdução de sonho que é “Intro, Dream”, até o fim, com os últimos acordes de “Read My Mind”, a música se coloca como uma jornada irresistível. Mas dá pra observar alguns detalhes interessantes. “Time”, a segunda faixa, parece uma filha perdida das criações de Joni Mitchell em discos como “Count And Spark” ou “Hejira”, mas devidamente focadas na beleza das coisas em seus detalhes: “Time was never easy on me”, diz Nico, humana, perplexa diante do transcorrer dos minutos. Quem nunca? “Now Or Never” é desconcertante em sua simplicidade de olhar sobre o amor (“Kiss me now or never/Hold me close or let me go/I just wanna feel your love again/I would almost give you everything”) e sua letra se torna um elemento quase secundário em meio ao turbilhão gentil de instrumentos e vocais de apoio que vão surgindo, implacáveis, adornando a melodia. “Learning My Ways” é mais um acerto impressionante, dessa vez com a voz de Nico parecendo demais com a de k.d lang, outra cantora fenomenal. E ainda tem os teclados em redemoinho que vão surgindo em meio ao transcorrer de “Lock Me Inside” ou a apoteose final com “Lovers On The Street”, é tudo muito belo.
Nico Paulo, a cantora, é o maior achado deste 2023, desde já. E seu disco de estreia já leva nota máxima aqui pelo peito aberto, pela simplicidade que gera complexidade, pela generosidade e pela coragem de fazer algo tão impressionantemente belo em tempos em que o feio, o mau e o comercial dão as cartas. Nico nos oferece um paraíso perdido, finalmente reencontrado. Coisa que não acontece sempre, aliás, quase nunca. Não perca esse sonho.
Ouça primeiro: tudo.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.
Muito obrigado pela indicação dessa obra que está me elevando como tempos não sentia.
Mais um excelente texto, meu caro Cel.
Um forte abraço!!!!
Putz!!!, assombroso de lindo, obrigado!!!!