O legado iluminado do afrobeat

 

Femi Kuti, Made Kuti – Legacy +

Gênero: Afrobeat

Duração: 88 min.
Faixas: 18
Produção:
Gravadora: Partisan Records

5 out of 5 stars (5 / 5)

 

 

 

Certos lançamentos são tão importantes, tão definidores, que deveriam ser chancelados por algum organismo internacional e ter seu acesso garantido por alguma lei. Este é o caso de “Legagy +”, um disco duplo que traz dois descendentes diretos de Fela Kuti, o homem que definiu as fronteiras do que a gente entende por afrobeat. Femi Kuti e Made Kuti (pai e filho) e filho e neto de Fela, respectivamente, são os participantes deste trabalho, um álbum duplo, com um disco para cada um. São duas visões importantes e atuais do que significa a música africana no mundo, ela que é tão constantemente confundida como algo alegre e feliz, mas que, em meio à dança, ao ritmo e ao batuque, na verdade, está chamando as pessoas para as constantes lutas por justiça, igualdade e respeito. Este é o caso explícito e inapelável dos dois volumes de “Legagy+”, e eles o fazem de maneiras distintas e com referenciais que dialogam através do tempo, das formas de expressão e outros detalhes. É tudo tão sublime que fica difícil não se emocionar.

 

Femi Kuti é o protagonista do primeiro disco, que tem o, digamos, subtítulo de “Stop The Hate”. A música aqui é referencial do que Fela consagrou ao longo dos anos 1970, quando peitou o regime militar nigeriano nas ruas, chamando os soldados de zumbis e pagando caro por isso. Mas sua marca ficou para sempre na música e se inseriu naquele rótulo engajado, o “agitprop”. Femi vai pelo mesmo caminho, inclusive estético, usando as batidas clássicas do afrobeat – assombradas por Tony Allen – e uma muralha de saxofones e demais instrumentos similares. E, além disso, guitarras que se misturam e brincam de ciscar no terreiro. As letras são encrespadas, atacando o sistema, o estado que, quando quer, é o mais eficiente dos criminosos violadores de direitos e, seus braços – polícia, políticos, corruptos…Os títulos entregam. “As We Struggle Every Day”, “Stop The Hate”, “Land Grab”, “You Can’t Fight Corruption With Corruption” (muito indicada para o Brasil atual) e até um libelo antiprivatização de dar lágrima nos olhos, chamado “Privatisation”, com os versos lapidares “eles dizem que privatizar é o único jeito de viver, então eles criam companhias privadas e roubam nosso dinheiro e nosso país”. É tão simples que é muito, muito belo. E Femi faz tudo isso com musicalidade estelar, não há um único décimo de segundo mal pensado ou mal executado ao longo do álbum.

 

Made, por sua vez, ainda que esteja totalmente vinculado ao referencial do afrobeat, insere uma pegada muito mais contemporânea em sua música, abrindo espaço para influências que vão do jazz ao hip hop, mostrando que as mãos e contramãos da diáspora atuam como fluxos de informação em sua música. Já na primeira canção, “Free Your Mind”, envolta num arranjo exuberante, ele vem, com uma voz grave: “Free your mind and set your soul free”. É uma visão, digamos, mais conciliatória das questões abordadas pela herança sonora da qual descende, mas, não dá pra negar, mais sintonizada com as abordagens de hoje. “Your Enemy” e “Blood”, por exemplo, apresentam essa flexibilização nas matrizes mais rígidas do som, com ótimos resultados, conservando metais e andamento, mas inserindo passagens instrumentais e alguma alternância de clima. Em “Blood”, especialmente, fica evidente o poder da voz de Made, ainda que ela pareça mais baixa que a do pai. A própria canção é uma aula de como mexer com o terreno sagrado do afrobeat com criatividade e respeito.

 

Ainda que o disco de Made Kuti abra espaço para tonalidades que vão além da música que Fela ergueu, ambos, Femi e Made, estão totalmente vinculados a esta tradição. Estes dois álbuns, unidos num só, são um diamante bruto de música, observação e triunfo sobre engrenagens muito viciadas. Eles servem, de diferentes formas, como faróis de orientação sobre a importância do engajamento nas artes, algo que pode – e deve – ser feito sem abdicar de outras características, mas com a habilidade de misturar, ressignificar, reformatar. O som que sai de “Legacy +” é uma trilha sonora moderníssima de alguém adquirindo consciência e, a partir disso, se preparando para entender o mundo um pouco melhor, através de escolhas corretas. Ouvir essas dezoito canções é abraçar uma postura e colocá-la em prática.

Não percam de jeito nenhum.

Ouça primeiro: “Pá, Pá, Pá”, “Stop The Hate”, “Privatisation”, “Blood”, “Free Your mind”, “Higher You’ll Find”

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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