1 9 9 1 – O Tempo Para Titãs, Paralamas, Legião e Engenheiros

 

A História não se dá bem com a Matemática. Pelo menos no que diz respeito à contagem do tempo, muito por causa dele – o tempo – não respeitar contas exatas. Demorou bastante para que estudiosos notassem isso. Um século não tem 100 anos, uma década não tem 10 anos e por aí vai. A História do Tempo Presente, uma modalidade de estudo dos fatos históricos e sua relação entre si e com a própria existência humana, confirmou que é preciso algum tempo para que possamos compreender um evento ou um momento histórico com clareza. A partir disso, dessa compreensão, é possível entender com mais precisão os processos e fatos originados a partir deles e, só assim, aplicar tais conhecimentos à passagem do tempo. Assim é com a própria noção do que é o século 20, ou do que levou o mundo às guerras mundiais, ao fim da experiência do socialismo soviético no governo de países europeus, a partir de 1989, mostrando o caminho para os eventos que ocorrem hoje, agora. Tal método é válido para diversos campos – cultura, sociedade, economia, política – e sua abrangência impressionaria os mais ortodoxos. Por exemplo, dá pra gente falar de rock brasileiro do final dos anos 1980 usando esta visão. Sim, a História serve pra tudo, amigos.

As quatro maiores bandas nacionais daquele tempo chegaram a 1991 com discos inéditos. Entre elas vários pontos em comum: carreiras consolidadas, contratos com grandes gravadoras, integrantes na casa dos 30 anos, um mercado fonográfico em franca recessão por conta do governo Collor, que confiscara as poupanças dos brasileiros, impedindo a circulação de dinheiro. Além disso, a própria desilusão pela vitória de um candidato conservador nas primeiras eleições presidenciais em mais de duas décadas de ditadura civil-militar, justo sob um manto de juventude e modernidade, que só enganou quem não tinha capacidade reflexiva mínima.

Se olharmos para o cenário do rock internacional em 1991, veremos que ele estava em mutação. A ascensão do Nirvana lançando seu segundo disco, “Nevermind”, mostrou que o rock alternativo, de matriz college/punk, germinado na década de 1980, dera frutos rentáveis. A banda vinha liderando um novo grupo de formações que privilegiavam esta interseção punk/metal, a bordo do que a imprensa especializada chamou de grunge. E veremos, na Inglaterra, um cenário ainda indefinido, mas em mutação. Dois anos antes o país fora chacoalhado por bandas que misturavam música eletrônica dançante com rock dos anos 1960, em algo que se chamou de acid rock, especialmente pelo uso de drogas dentro do novo espectro da cultura das raves. Em pouco tempo, uma horda de artistas de música eletrônica surgiria – eles estavam nos subterrâneos nesta época – e, além deles, bandas como Oasis, que responderiam pelo que se chamou de britpop. Uma terceira via ainda se materializava em formações que misturavam funk com rock pesado, na figura de gente como Living Colour, Faith No More e Red Hot Chili Peppers. Ou seja, o rock internacional anglo-americano estava evoluindo.

E aqui? A “evolução” da música nacional, se pensarmos nela como sendo algo novo, vinha sob a forma da lambada e da música sertaneja, únicos estilos – mais o segundo – que sobreviveram ao massacre do confisco das poupanças. Sendo assim, o rock já não simbolizava novidade, pelo menos em termos mercadológicos. Os artistas do segmento também não pareciam muito preocupados com o que era feito lá fora. Viviam outro momento aqui dentro. As gravadoras multinacionais, que haviam apostado – e faturado – no rock oitentista, mesmo temerosas, investiriam polpudas quantias para trazer às prateleiras seus novos discos. Ainda que possamos discutir quais grupos eram protagonistas nesta época, acredito que Paralamas, Titãs, Legião Urbana e Engenheiros do Hawaii simbolizem o consenso sobre esta questão. Seja em número de cópias vendidas, discos lançados, popularidade em rádio e na recém-criada MTV, estas quatro bandas eram as mais representativas da época. Seus discos lançados neste ano de 1991 mostrarão que, para elas, a década de 1980 ainda não tinha acabado. E essa é a chave para entender este ano no rock nacional.

Que discos eram esses? “Os Grãos”, dos Paralamas do Sucesso; “Tudo Ao Mesmo Tempo Agora”, dos Titãs; “V”, da Legião Urbana e “Várias Variáveis”, dos Engenheiros do Hawaii. Cada um a seu jeito, encaminhava o discurso e a produção musical destes grupos para um fim de década tardio, ainda assim desvinculado com o que vinha de fora, totalmente imerso neste Brasil desiludido que se criara. Na época, tanto em público, quanto em crítica, seu desempenho deixou muito a desejar. Os jornalistas musicais da época – desprovidos desta ferramenta de análise histórica – não conseguiram compreender que eles eram fechos de uma década de 1980 que ainda estava em curso para os artistas. Cobraram coerência estética e um certo senso de progresso – hoje desfocado – mas, nada muito além de resenhas mal- humoradas em revistas e jornais da época. Destes quatro, dois foram recebidos com menos virulência: “V” e “Várias Variáveis”.

O quinto disco da Legião Urbana é um obra angustiada e extremamente pessoal. Jamais poderia se esperar dele algum tipo de conexão com influências vindas do exterior ou algo assim. Renato Russo, o compositor e cérebro do grupo, passava por graves momentos de decepção amorosa e entrega ao álcool e outros tipos de drogas. Sua poesia romântica/existencial refletiu fortemente este período, devidamente exorcizado ao longo das canções do álbum. O single “O Teatro dos Vampiros” já espelhava a situação do país à época com o verso “Vamos sair, mas não temos mais dinheiro, os meus amigos todos estão procurando emprego”, incrustado numa letra triste com instrumental folk pop e uso de teclados – uma marca adquirida ao longo dos últimos anos. Além dessa sintonia com o país, “Teatro” ainda trazia dizeres como “sempre precisei de um pouco de atenção, acho que não sei quem sou, só sei do que não gosto”. Mais adiante, uma das canções mais tristes já registradas pelo grupo – “Vento No Litoral” – e um outro single, menos intenso, “O Mundo Anda Tão Complicado”, que fala de amenidades da vida cotidiana a dois, mas entrega a realidade no fim: “quero ouvir uma canção de amor, que fale da minha situação, de quem deixou a segurança de seu mundo por amor”. Também em “V” está a canção mais longa da banda, “Metal Contra As Nuvens”, lenta, reflexiva, dolorida, confirmando a depressão e a tristeza como molas mestras do álbum. Fãs da banda o idolatram até hoje.

 

 

Os Engenheiros do Hawaii chegavam ao sexto disco, quinto de material inédito. Construíram sua carreira no peito e na raça, com um rock cheio de tiques e taques literários e sonoridade folk rock que também pegava emprestado cacoetes de referências como The Smiths e The Cure. O disco anterior, lançado em 1990, “O Papa É Pop” havia levado o grupo de Humberto Gessinger ao megaestrelato nacional com canções que ultrapassavam as referências dos trabalhos iniciais. Sendo assim, “Várias Variáveis” era um retorno a este início da carreira, o “verde” da “trilogia da bandeira gaúcha” que o grupo dizia existir, sendo “A Revolta dos Dândis” (1987) e “Ouça O Que Eu Digo Não Ouça Ninguém” (1988), o amarelo e o vermelho, respectivamente. Surpreendentemente, a crítica pegou leve com “Várias…”, especialmente após o massacre que impusera ao “Papa”. Bons singles como “Piano Bar” e “Muros e Grades” tiveram bom desempenho nas rádios e a regravação de “Herdeiro da Pampa Pobre”, com Gaúcho da Fronteira, contribuíram para que o disco tivesse um desempenho satisfatório. Ainda assim, as autorreferências – um traço marcante do grupo – e as sonoridades perpetradas por Gessinger e cia. mostravam que era um trabalho totalmente desconectado do que era feito na época.

 

 

Esta tolerância com Legião e Engenheiros não se repetiu com Paralamas e Titãs, muito pelo contrário. “Os Grãos” e “Tudo Ao Mesmo Tempo Agora” foram massacrados e se constituíram em álbuns com sucesso e admiração restritos aos fãs dos grupos. É possível entender tal descontentamento, uma vez que estes dois discos representam, sim, rupturas com o que as bandas vinham fazendo até então. Os Titãs eram artistas do primeiríssimo escalão da Warner, responsáveis por uma sequência de quatro discos que representavam uma espécie de modernidade constante no rock nacional, a saber, “Cabeça Dinossauro” (1986), “Jesus Não Tem Dentes No País Dos Banguelas” (1987), “Go Back” (1988) e “O Blesq Blom” (1990), todos com a produção de Liminha, que ajudara a dar direcionamento ao som do grupo. Pois Liminha era a ausência mais sentida em “Tudo Ao Mesmo Tempo Agora”, que surgia auto-produzido pelo grupo. Os oito músicos tiveram meses de gravação sustentados pela gravadora, verba para todas as ideias possíveis, equipamentos modernos e o resultado é um trabalho que só é elogiado por quem quer ser diferente. As canções soam mal gravadas, apostam numa visceralidade pós-adolescente cheia de letras escatológicas e instrumental de rock garageiro tardio e desfocado. Saem de cena os samplers e teclados de Liminha, colocados a serviço da sonoridade do grupo, entram guitarras, baixo e bateria, sendo que os Titãs nunca foram ótimos instrumentistas. Dentre as faixas, só me recordo de ouvir “Não É Por Não Falar” em alguma rádio FM da época. Não por acaso, este foi o álbum de menor vendagem do grupo até então. Não era uma entrada nos anos 1990, era um retorno a, sei lá, 1983.

 

 

“Os Grãos” chegava às lojas com a responsabilidade de dar sequência à musicalidade plural dos Paralamas. Desde “Selvagem?” (1986), o grupo abraçara uma diversidade sonora que se manifestara de diferentes formas nos álbuns seguintes, “Bora Bora” (1988) e “Big Bang” (1989), com intensidade e qualidade diferentes. O que se ouviu não foi uma continuidade explícita desse som misturado e amplo, mas um trabalho mais introspectivo, “próximo da MPB”, como disse a crítica na época. E nada era mais imperdoável para esta crítica paulista da época do que fazer “MPB”. Bem, “Os Grãos” não é um disco de MPB, longe disso, mas é um trabalho menos expansivo, que aposta em sutilezas instrumentais e se vale da sensibilidade de Herbert Vianna como letrista – mais que os outros discos até então lançados pelo grupo. Bi e Barone, a maior cozinha do rock nacional, ficam em segundo planos em muitas canções, o que prejudica inegavelmente o álbum. Nos momentos em que eles participam, “Os Grãos” brilha: os singles “Trac Trac” e “Tendo A Lua”, ainda que desprovidos de qualquer tempero caribenho ou africano, são boas gravações pop rock, nas quais o grupo funciona a todo vapor. Fora o proto-axé “Carro Velho”, “Os Grãos” é um disco de baladas existenciais e românticas. Muitas delas são belas e mereciam melhor tratamento, caso de “A Outra Rota”, uma lindeza de letra e arranjo belos, “Trinta Anos” e “Vai Valer”. A faixa-título é um bom exemplo de colagem de samples, mostrando que os Paralamas talvez fossem o grupo mais sintonizado com seu tempo àquela época. O mesmo Liminha, que fizera tanta falta aos Titãs, pilotou o estúdio para “Os Grãos”, mostrando que a banda desejava exatamente passar esta impressão a fãs e ouvintes em geral.

 

 

Uma olhada para este 1991 das grandes bandas do rock brasileiro dos anos 1980 mostra que, de fato, para estes quatro grupos, esta década só agora estava a caminho do fim. Quando lançaram seus novos trabalhos, dois, três anos após, o próprio país já entrara nos anos 1990 e, a partir disso, uma nova fornada de bandas e artistas chegara com propostas e sonoridades diferentes. O tempo havia passado para Titãs, Legião, Paralamas e Engenheiros, que – cada uma à sua maneira, cada um por seu motivo e destino – foram perdendo importância à medida que se tornaram mais maduros e conscientes de suas carreiras e influências. Claro, ficaram os fãs, os admiradores e os saudosos de tempos idos e, além deles, os historiadores dispostos a revirar esses baús existenciais/musicais em nome de um entendimento maior das coisas.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

3 thoughts on “1 9 9 1 – O Tempo Para Titãs, Paralamas, Legião e Engenheiros

  • 23 de abril de 2019 em 17:13
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    Que beleza de texto! Esses quase 30 anos ajudaram a colocar os 4 álbuns em perspectiva. Alguns sobreviveram ao teste do tempo, outros nem tanto (eu realmente não lembrava de nenhuma música do álbum dos Titãs pelo nome). Todo resgate ao belíssimo Os Grãos é merecido. Ainda considero “Não Adianta” uma das músicas mais bonitas dos Paralamas.

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  • 22 de abril de 2019 em 20:19
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    Tenho a impressão que aqueles samplers, teclados e efeitos que colocaram os Titãs à frente de outras bandas nos fins dos 80, hoje os tornaram bem datados… Dentre as bandas citadas, àquela época os Titãs eram a que eu mais gostava. Hoje, no entanto, ao ouvir aqueles álbuns sinto que a sonoridade ficou muito desgastada. Não sinto o mesmo em relação à Legião ou Paralamas.

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    • 23 de abril de 2019 em 17:24
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      Rapaz, faz sentido. Acho que a sonoridade do folk – de Legião – não se modificou muito ao longo dos anos. O uso de samplers pelos Titãs nos anos 80, sim, ficou bem datado, enquanto que Os Grãos, bem, eu não sei dizer, acho que também é datado, mas há algo universal e que funciona hoje, sim.

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