Beleza pop em excesso

 

 

 

Sei que sou bonito: é o que parecem dizer, mesmo em situações de fragilidade, os olhos de Michael Hutchence para as câmeras que registram as imagens reunidas em Mistify. O documentário de Richard Lowenstein, lançado em 2019 e agora disponível no Brasil em plataformas de streaming, é uma montagem engenhosa de depoimentos e filmagens de várias fontes. É um must para os fãs do INXS e para quem se interessa por histórias de rock stars.

 

O documentário acompanha vários momentos da biografia de Michael Hutchence, desde sua infância até os últimos instantes de seus 37 anos. Padece de um problema comum em narrativas de vida cujo propósito é explicar a morte. Drogas (inclusive as prescritas), mulheres famosas e dilemas familiares ganham destaque – e lembramos de outras pessoas para quem as benesses do estrelato se tornaram armadilhas. Em meio a isso, despontam os pendores literários e talentos do músico como videomaker.

 

O INXS não é o assunto central do filme, embora alguns dos parceiros de banda de Michael Hutchence apareçam bastante, em imagens e depoimentos. Há uma passagem interessante sobre o projeto paralelo do vocalista, talvez uma busca paradoxal pelo anonimato, certamente uma tentativa de arranjar espaço para além da banda.

 

De todo modo, o documentário nos leva a pensar sobre a trajetória do INXS. A morte do vocalista ocorre em sua terra natal, durante a turnê de um álbum recém-lançado. Seja qual tenham sido as razões que levaram Michael Hutchence a terminar com a vida em um quarto de hotel na Austrália, fazer shows e promover um novo álbum não foram motivos suficientes para manter a aposta na vida.

 

Contudo, Elegantly Wasted, lançado em 1997, é um álbum que não faz feio. Em suas faixas o pop rock revela-se acima da média do que rolava nesse gênero no final do século XX. Mais: em minha modesta opinião, o conjunto era mais interessante do que a banda havia conseguido em seus dois álbuns anteriores, Welcome to Wherever You Are (1992) e Full Moon, Dirty Hearts (1993).

 

No entanto, nada que o INXS fez na década de 90 se compara com o conjunto de sua obra nos anos 80. Kick, de 1987, chegava a ser irritante por acumular uma sucessão de hits. Das doze faixas, ao menos cinco estavam nesse patamar: “New Sensation”, “Devil Inside”, “Need You Tonight”, “Never Tear Us Apart” e “Mystify” (esta lembrada no título do documentário). “Guns in the Sky”, “Mediate” e “Calling All Nations” vêm logo atrás, não muito longe das primeiras.

 

Listen like Thieves, de 1985, é mais heterogêneo, mostrando uma banda já com uma longa estrada (estava em seu quinto álbum) e ao mesmo tempo ainda afetada por influências variadas. Em algumas faixas, há um peso nas guitarras que depois vai ser abandonado. “This Time” continua a ser um primor do pop. Em “What you need”, que continua ótima, a distorção convive com os riffs “funk de branco” que apontavam para a direção que vários dos hits de Kick lapidariam.

 

Seguindo a linha do tempo, temos X, de 1990. O conjunto não é grande coisa. Mas destaco duas faixas. “Suicide Blonde” é outro “funk branco”, espécie de síntese do que foi feito em Kick e Listen like Thieves. A música é possivelmente uma referência ao relacionamento de Hutchence com Kylie Minogue, que contribui substancialmente para o documentário. “Disappear” é outro primor, metade tecno (retrô), metade (quase) industrial, mais em sintonia com os rumos sugeridos pela década que começava.

 

A questão é que a banda não conseguiu dar continuidade a essa trilha. Não se reinventou nos anos 90 – como fizeram, por exemplo, U2 (aliás, Bono é um dos personagens do documentário, em discretas participações) e Depeche Mode. Apesar de Elegantly Wasted estar, repito, acima da média, isso ainda significava ficar muito abaixo das alturas que o INXS frequentou graças a seus feitos dos anos 80. A banda foi então capaz de mostrar tanto o que o pop derivado do rock era capaz de atingir quanto os seus limites. Talvez a beleza do passado tenha projetado uma sombra mais forte do que a luz que o futuro parecia prometer para Michael Hutchence em 1997.

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

3 thoughts on “Beleza pop em excesso

  • 24 de maio de 2020 em 19:49
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    Gostei bastante do documentário. Percebo algo bem comum com certas pessoas extremamente sensíveis não suportarem lidar com a realidade, ela os sugam.
    Foi ótimo perceber a qualidade da banda, que eu acho ter sido subestimada demais. Espero que o documentário possa permitir a novos ouvintes conhecer a banda.
    Apesar dos problemas que percebo do documentário, principalmente a voz off e a montagem que me incomodaram bastante, o magnetismo e a força artística de Michael Hutchence valem muito a pena.

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    • 1 de junho de 2020 em 20:35
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      Acabei de assistir…
      Ainda tento ter o cabelo do hutch… um rock star na essência.
      O doc é legal, apesar do tom melancólico. Acrescenta as sequelas de um acidente como motor da mudança de personalidade da personagem principal. Fato que desconhecia.
      Michael Hutchence era o INXS! Após a sua partida houve a tentativa do incrível Terence Trent D’arby e nada aconteceu.
      Vi a dica do filme aqui. Muito Obrigado!

      Resposta

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