Vote com Rage Against the Machine

 

Como nos conta Paul Stenning em seu livro, as primeiras camisetas da Rage Against the Machine estampavam manuais de montagem de coqueteis molotov, transcritas d’O Livro de Receitas do Anarquista. Àquela altura, a banda já era parte do cast da Epic, subsidiária da Sony, uma das maiores corporações do planeta. Contraditório?

 

 

A política está no centro da trajetória do quarteto formado por Zach de la Rocha, Tom Morello, Tim Commerford e Brad Wilk. Precisamos, portanto, entender as concepções e formas dessa política e os contextos em que ela se insere. Essa é minha contribuição para as celebrações dos 30 anos do primeiro álbum da banda, lançado em 1992.

 

 

A política dentro da máquina

 

As origens do álbum inaugural da Rage Against the Machine (RATM) estão em uma fita cassete com doze faixas. Ela foi gravada em um estúdio em Los Angeles não muito tempo depois que a banda se formara. Saiu em dezembro de 1991.

 

 

A ideia era comercializar a fita nos próprios shows, sem depender de gravadoras. Ou seja, inicialmente a RATM atuava de uma forma que tinha paralelos na música underground. Nesse caso, a política tinha a ver com o modo de distribuição da música, contornando intermediários na transmissão das mensagens sonoras.

 

 

Ocorre que não foram poucos os ouvidos atraídos por essas mensagens. A fita vendeu rapidinho cinco mil cópias. Várias gravadoras começaram a abordar a banda, com um interesse que logo se converteria em algo mútuo.

 

 

No começo de 1992 a RATM assinou contrato com a Epic incluindo três LPs, tomando o cuidado de inserir cláusulas que garantiam indenizações polpudas caso fosse abandonada pelos patrões. Mais importante: asseguraram total liberdade artística, não só para as criações musicais, mas também para as imagens do álbum e o material de promoção – incluindo as camisetas!

 

 

Para colaborar com os “culpados” (como os integrantes da banda se referiam a si mesmos), a Epic indicou o produtor Garth Richardson, um novato em carreira solo, mas com sólida estirpe musical – seu pai notabilizou-se em parcerias com bandas de estilos variados, muitas no terreno do metal.

 

 

Richardson não teve muito trabalho. Aproveitou sete das doze músicas que estavam na fita cassete, às quais se acrescentaram outras três. As gravações tomaram cerca de 30 dias e outro tanto, entre abril e maio, foi gasto na mixagem. Em novembro de 1992, o álbum foi lançado.

 

 

A capa ressuscitava uma foto premiada. Um monge budista clicado em chamas. A autoimolação foi um protesto contra o governo local. Ocorreu na cidade que pouco tempo depois seria palco do conflito que se tornou conhecido como Guerra do Vietnã.

 

 

Pelas imagens e pelo nome da banda e do álbum, o quarteto apresentava suas armas. Se uma grande gravadora havia topado mostrá-las, para a RATM esse era o caminho para atingir um público maior. A mensagem se desdobrava nas letras, nos videoclipes e nas causas com as quais a banda se envolveria. Protestar, mesmo que o capitalismo ganhasse dinheiro com isso, mesmo que o público não entendesse tudo, era a política abraçada pela banda.

 

 

Procura-se: vocalista socialista que curta Black Sabbath e Public Enemy

 

 

Lá por 1990, o guitarrista Tom Morello postou esse anúncio em algum lugar na Califórnia. Embora não haja certeza de que esse tenha sido o canal por onde Zack de la Rocha o encontrou, a parte sobre o socialismo com certeza teria algum apelo para ele.

 

 

De la Rocha tornou-se o letrista da RATM, mas a ideia de protesto era completamente compartilhada por Morello. Não se tratava de mera “ideologia”; tinha mais a ver com as experiências de vida de cada um deles.

 

 

Morello é filho da união entre uma mulher com formação em história da África e um homem que participou do movimento pela independência do Quênia e se tornou o primeiro embaixador do novo país na ONU. Quando retornou ao Illinois com sua mãe, Tom era uma das poucas crianças não brancas no pedaço. Suas vivências tiveram algum papel na escolha pela Ciência Política como curso de graduação na prestigiada Universidade de Harvard.

 

 

A mãe de Morello tornou-se uma ativista sensível a questões raciais e também envolveu-se no universo da música. Em 1987 ela criou a Parents for Rock and Rap, uma oposição ao Parents Music Resource Center, cujo objetivo era aumentar o controle dos pais sobre o acesso de crianças e adolescentes a música considerada violenta, ou que supostamente fizesse apologia ao uso de drogas ou temas sexuais.

 

 

Já Zack de la Rocha cresceu no outro lado do país, ele também filho de um casamento inter-racial e interrompido. Zack passava mais tempo com sua mãe, uma estudante de antropologia que vivia em uma região afluente e predominantemente branca. Isso era o oposto do lugar onde morava seu pai, filho de mexicanos.

 

 

Beto de la Rocha foi um artista que nos anos 70 ganhou alguma notoriedade como parte de Los 4, um coletivo de muralistas. O grupo foi importante para a valorização da arte chicana. Embora Zack tenha passado maus pedaços com seu pai, ele e seu coletivo constam entre as inspirações registradas no encarte do álbum de estreia da RATM.

 

 

Nessa lista estão nomes de outros militantes: artistas como o mexicano David Alfaro Siquieros, coletivos indígenas, no caso a Nação Mohawk; ativistas como Huey Newton, que participou dos Panteras Negras.

 

 

Com suas letras, de la Rocha quer se colocar ao lado dessas figuras e de suas lutas. Rage Against the Machine é um álbum que começa com uma “faixa bomba”, tradução literal de “Bombtrack”, e termina com um grito ensandecido por liberdade.

 

 

Ao longo das dez músicas, Zack dispara petardos que conjuram heróis como Martin Luther King e Malcolm X (“Wake Up”) e ao mesmo tempo alvejam símbolos e valores da “terra dos homens livres” (“Know Your Enemy”). Escolas e mídia são retratadas como instrumentos de um “estupro mental de massa” (“Bullet in the Head”). A opressão cultural é exposta (“Take the Power Back” e “Settle for Nothing”). Há uma sucessão de provocações e slogans numa conversa com o ouvinte que eventualmente se converte em chamados urgentes para a ação, capaz de juntar numa frase só Joanesburgo e Los Angeles (“Township Rebellion”).

 

 

O grande destaque do álbum, lançado ao mesmo tempo como single, é “Killing in the Name”. Contrariando o padrão das demais letras, esta é formada pela repetição de poucos versos. Há uma denúncia de injustiças, a constatação do controle e, finalmente, a instigação da revolta.

 

 

De forma muito condensada, a letra articula três dos núcleos recorrentes que preenchem os textos de Zack: forças que são algozes, mentes que estão embotadas e corpos que resistem e reagem. A reação, em “Killing in the Name”, é catártica: “Foda-se, não vou fazer o que você manda!”

 

 

No caso dessa música, a questão racial está em primeiro plano, impulsionada pelo episódio de março de 1991 que meses depois provocaria uma revolta em Los Angeles. Uma câmera registrou o espancamento de Rodney King, homem negro, por um bando de policiais brancos. De la Rocha é genial no jogo de imagens: “Alguns dos que mantêm a ordem são os mesmos que queimam cruzes” liga o passado da Ku Klux Klan com as autoridades do presente; “Aqueles que tiveram a morte a mereceram, por usarem o distintivo brancos escolhidos eles são” expõe a justificativa fascista de mortes injustificáveis.

 

 

“Killing in the Name” não chamou atenção apenas por conta da letra. Aliás, na época, as rádios tinham que executar uma variante sem os “fuck you!”. E houve uma primeira composição apenas instrumental. No cassete de 1991, a voz de Zack já está lá, numa versão mais longa do que aquela que ficou registrada no álbum.

 

 

Killing in the Name” é cheia de variações, uma marca de quase todas as músicas do álbum. No seu núcleo, um groove poderoso, riffs cheios e vocais fortes formam uma combinação furiosa. “Rap metal” ficou estabelecido como o rótulo mais comum para resumir esse som.

 

 

A coisa, na verdade, é muito mais complicada, decantando as influências e trajetórias variadas dos integrantes da banda. O mais experiente era Morello, que já gravara um LP quando participava da Lock Up, bem descrita em um comentário pouco elogioso no YouTube: “Parece como se Red Hot Chili Peppers dos primeiros discos, Faith No More, Living Colour e Spin Doctors tivessem parido um rebento”.

 

 

A essa altura, Morello já se distinguia como guitarrista. Seu virtuosismo aparece nos solos das músicas do RATM. Esse é o lado metaleiro, responsável também pelos riffs poderosos. Mas havia ainda o lado punk, registrado nos agradecimentos do encarte a Joe Strummer (e numa versão de “Clampdown” tocada nos primeiros shows). Junte isso ao hip hop, inspiração para as estripulias e esquisitices de Morello, usando tanto as cordas quanto os captadores da sua guitarra.

 

 

O hip hop também é crucial na formação de Zack de la Rocha e boa parte do que escutamos na RATM é cantado como rap. Mas quando a voz vem grossa, a fonte é o hardcore, onde se situava a banda anterior de Zack. A Inside Out tinha como referências Black Flag e Minor Threat. Zack era ainda capaz de sussurrar, aproveitando os vazios sonoros deixados pelos instrumentos.

 

 

O baterista Brad Wilk idolatrava Keith Moon, certamente estava empapado de John Bonham, mas seu estilo não seria o que é sem as levadas do funk, que aprendeu com David Garibaldi. O funk é ainda fundamental para o baixista Timmy C., ao lado do jazz, algo que também deixa marcas nas guitarras de Morello. Coltrane e Miles estão nos agradecimentos do encarte.

 

 

Outro que está na lista é Chuck D. Sem Public Enemy não existiria RATM! Ao lado de Ice T, sua infusão de guitarras e política no hip hop daria pistas essenciais para a banda californiana. Aliás, é preciso situar o quarteto inter-racial como um passo adiante nas várias tentativas, na passagem entre os oitenta e noventa, de juntar “sons brancos” e “sons negros”. Apesar disso, branca foi a maior parte do público da RATM e seu legado será reclamado por bandas bem menos interessantes e criativas.

 

 

Fiquemos com a RATM onde dialogam todas essas influências (havia espaço até para o reggae, como mostra “Mindset’s A Threat”, faixa incluída no cassete de 1991), na configuração power-trio que faz questão de dispensar “samples, teclados e sintetizadores”. As dez faixas do álbum de estreia são o resultado explosivo desse caldeirão.

 

 

Mais política nas imagens

 

As vendas do primeiro LP disparam apenas na segunda metade de 1993, impulsionadas pela participação da banda, desde o ano anterior, em festivais na Europa e na terceira edição do então itinerante Lollapalooza. Em 1993, foram nada menos do que 165 shows e, ao final dos meses iniciais de 1994, a marca dos 3 milhões de exemplares havia sido superada.

 

 

1993 foi o auge do grunge. Embora o som da RATM resultasse de uma síntese diferente da que ocorreu em torno de Seattle, o formato power-trio contribuiu para que percorresse o mesmo público. As aproximações iam além: o álbum foi gravado, em sua maior parte, no mesmo estúdio de onde saiu Nevermind, o Sound City. E a mixagem esteve nas mãos de Andy Wallace, também responsável pelo álbum da Nirvana.

 

 

Seria interessante comparar a RATM com a Pearl Jam, talvez a banda do grunge com mais afinidades políticas. Mas a veia ativista da RATM era muito mais incisiva. Isso aparecia em dois dos quatro vídeos que acompanham o primeiro álbum. Ao passo que “Killing in the Name” e “Bullet in the Head” mostram a banda em palcos, “Freedom” e “Bombtrack” beneficiam-se de uma edição caprichada nas mãos de Peter Christopherson, um dos integrantes da performática e alternativíssima Throbbing Gristle.

 

 

O vídeo de “Freedom” presta apoio a Leonard Peltier, líder indígena cuja condenação pela morte de agentes do FBI era questionada. Em “Bombtrack”, frases e imagens sobre a resistência camponesa no Peru contracenam com a banda tocando dentro de uma jaula, uma referência à prisão sensacionalista do líder do Sendero Luminoso. Na capa do EP dessa faixa figurava uma das icônicas fotos de Che Guevara, imagem que também frequentava os shows da banda.

 

 

Em 1994, a RATM organizou concertos em apoio à causa de Peltier. No ano anterior, participou de shows da Liga Anti-Nazi na Inglaterra e da campanha (a favor da legalidade do aborto) Rock For Choice nos EUA. Em 1995, vemos a primeira manifestação pública em prol de Mumia Abu-Jamal, ativista e jornalista condenado pela morte de policiais. Os apoiadores de Abu-Jamal pediam um novo julgamento.

 

 

Ainda em 1993, a banda fez um protesto durante sua apresentação em um dos shows do Lollapalooza. Em vez de tocarem suas músicas, os quatro jovens ficaram peladaços durante 20 minutos, com as bocas tapadas por fitas e compondo com inscrições em seus peitos a sigla do Parents Music Resource Center. Denunciavam os riscos de censura (ou do silêncio recusado em “Fistful of Steel”) vindos da organização.

 

 

Com o tempo, apareceriam discordâncias entre Zack de la Rocha e Tom Morello acerca da relação com a política. O primeiro entendo-a mais como o envolvimento direto com pessoas e coletivos; o segundo como o apoio artístico a causas. Mas isso nunca anulou compromissos básicos, explícitos nas letras, vídeos e manifestações da banda até sua primeira dissolução em 2000.

 

 

O álbum de estreia foi lançado no dia das eleições presidenciais nos Estados Unidos em 1992. Bush pai tentava o segundo mandato, o que daria continuidade à permanência dos Republicanos no poder desde Reagan em 1981. Além de promover a guerra para defender os interesses petroleiros no Kuwait, Bush liderou a negociação do Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio (ou NAFTA), um acordo que estaria entre os motivos para o levante zapatista em 1994.

 

 

Bush não ganhou a eleição e o zapatismo passou a ser uma das forças motivadoras na continuidade do trabalho da RATM. Zack de la Rocha esteve várias vezes em Chiapas e a bandeira do EZLN foi adotada pela banda.

 

 

Embora a RATM não tenha mantido o mesmo impacto com Evil Empire (1996), voltaria a se destacar com The Battle of Los Angeles (1999). Junto com músicas do álbum de estreia, esse é o material para a turnê atual da banda, que, se justiça existe, aportará em um Brasil sob nova direção.

 

 

Nota: Este texto é uma homenagens a bandas como Legião Urbana, Titãs, Paralamas, Inocentes, Mercenárias, IRA!, Replicantes e Plebe Rude. Sua música influenciou em minha opção política na primeira eleição presidencial no Brasil desde o fim da ditadura. Em 2022, meu voto irá para o mesmo candidato de 1989. “No more lies, we gotta take the power back!”

 

 

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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