A quase morte do The Cure

 

 

A banda quase terminou. Foi o que aconteceu após a primeira e única turnê de divulgação do quarto álbum da The Cure, Pornography.

 

Após um show na França, uma discussão que poderia ser banal sobre as contas do bar acabou em socos entre Robert Smith e Simon Gallup. O terceiro componente da banda, Lol Tolhurst, só percebeu a gravidade da situação ao saber que seus companheiros haviam voltado para casa.

 

A turnê foi retomada – quando Smith contou para seu pai o que acontecera, a resposta foi: “Meu filho, as pessoas já pagaram os ingressos…”. Mas parece que o estrago era irreparável. Após a apresentação final na Bélgica em junho de 1982, Smith e Gallup não se falaram por 18 meses.

 

O que deu errado? Há tantos pontos frágeis na maioria das bandas de rock, de modo que talvez a verdadeira questão seja o que as torna capazes de durar tanto tempo. “O que deu errado?” é só mesmo um pretexto para uma conversa sem conclusões.

 

É fato que a identidade construída a partir de Seventeen Seconds (1980) veio acompanhada de um maior protagonismo de Smith dentro da banda. Pornography confirma isso, considerando os destaques conferidos às letras e às guitarras nas composições. No estúdio, o vocalista-guitarrista também teve uma mão mais forte na produção.

 

Pois esse band leader era ao mesmo tempo assolado por tentações que o puxavam para outros destinos. A tentação atendia pelo nome de Steven Severin, baixista da Siouxie and the Banshees. A banda da “rainha do gelo” tinha um problema crônico com guitarristas e Smith chegou a cobrir ausências em 1979.

 

Smith e Severin ficaram próximos. Em dezembro de 1981, quando o repertório da The Cure já incorporara faixas que estariam em Pornography, Severin abriu os shows com o projeto 13:13, em companhia de Lydia Lunch.

 

Mais adiante, em 1983, eles estariam juntos em The Glove, outro projeto, assim como na performance de uma música de Pornography para uma apresentação de balé. Em 1982, Severin, ele mesmo confessou, soprava no ouvido de Smith convites para que ele se tornasse um titular dos Banshees, mas a colaboração ficou restrita a participações em shows e à gravação de singles e do álbum Hyaena (1984).

 

Havia outras tensões na The Cure em 1982. A trilha definida por Seventeen Seconds levou a banda a explorar temas e sonoridades que flertavam com a morbidez – ou mergulhavam nela. O impiedoso Faith (1981) traz faixas com nomes tão alegres quanto “The Drowning Man” e “The Funeral Party”…

 

Na época de Pornography, o trio começou a usar maquiagens que, com o calor dos palcos, borravam seus rostos. Efeito semelhante foi obtido na capa do álbum. Mais disso no único vídeo da época: máscaras assustadoras escondem os músicos, que por segundos aparecem enforcados no jardim…

 

Pois bem, na banda essa faceta convivia com outra bem diferente. Escutar os registros de shows de 1982 nos faz perceber que a maior excitação do público ocorria na hora do “bis”, quando o trio recorria a músicas mais antigas, da época em que não sabia bem o que queria ser. É revelador que o único single derivado de Pornography, “The Hanging Garden”, tenha como lado B uma versão ao vivo para “Killing an Arab”, música de 1978.

 

O fato de a turnê do álbum ter começado antes do seu lançamento não contribuiu muito para a receptividade do público. De todo modo, com “Killing an Arab” e “10:15 Saturday Night” vinha à tona um lado mais rock’n’roll da banda, algo que os modelitos usados por Gallup pareciam confirmar.

 

Em uma entrevista à revista New Music Express no final de 1981, Smith, no momento em que está compondo as músicas de Pornography, fala sobre a busca por um hedonismo… O título da matéria é “A Cure For Fun Fun Fun”. Vamos colocar na mesma conta a pilha de embalagens de cerveja que se formou no estúdio durante as gravações.

 

Portanto, existia esse lado “rock’n’roll” na The Cure de 1982, o que torna complicado rotulações simples como a de “banda gótica”. Mas ele está completamente ausente das músicas de Pornography. Nada é divertido nelas e sua engenhosidade se alimenta de outras inspirações.

 

 

Ataques sonoros

Embora faça sentido colocar Pornography em continuidade com Seventeen Seconds e Faith, há diferenças gritantes. Se os primeiros são contidos e esquálidos, o álbum de 1982 é brutal e encorpado.

 

Uma das razões para isso foi a troca de mãos na produção. No lugar de Mike Hedges entra Phil Thornalley, um novato criado nos estúdios RAK, para onde a banda rumou. Foram três semanas de trabalho no início de 1982, apenas os quatro com outro jovem engenheiro de som.

 

Thornalley vinha de uma escola que não apreciava os vazios. As dimensões da sala principal do RAK favoreciam isso. O resultado é uma banda que soa bem diferente da que gravou os álbuns anteriores.

 

Em se tratando de preenchimentos, esse papel é cumprido, com saliência e dramaticidade, pelos teclados em várias faixas. Outro instrumento que se destaca é a bateria. Houve mudanças no equipamento, mas o principal responsável são os métodos de gravação.

 

Também o jeito de tocar de Tolhurst passa por alterações, com muito uso dos tambores mais graves, em andamentos tribais, marciais ou fúnebres. Algo, contudo, se reitera: como nos álbuns anteriores, as levadas praticamente não têm variação. Nesse aspecto, o uso de uma bateria eletrônica estaria plenamente justificado, como ocorre na faixa de abertura. A atmosfera, no entanto, não seria a mesma.

 

Essa atmosfera é antecipada na faixa que acompanha o single que destaca “Charlotte Sometimes”, de julho de 1981. Ela se chama “Splintered in her Head”. Sua batida tribal e o clima claustrofóbico jogam pistas sobre o que preencheria Pornography.

 

O baixo de Gallup contribui pouco para as melodias. Seu papel é mais rítmico, em compasso ou em contraponto com a bateria. A exceção é “Cold”, na qual Gallup se esmera combinando as cordas com um teclado acionado pelos pés.

 

Essa é a única das oito faixas em que a guitarra não aparece. Nas demais ela reina. Sangrenta em “One Hundred Years”, fantasmagórica em “Short Term Effect”, melodiosa em “The Hanging Garden”, “Siamese Twins” e “The Figurehead”, viajante em “A Strange Day, embrulhada, enfim, em “Pornography”.

 

Em várias faixas, há um recorrente jogo engenhoso entre guitarra e voz. A guitarra está em destaque na parte instrumental; ela silencia ou se torna discreta quando a voz entra. Essa voz nunca é abafada, como ocorre em faixas dos dois álbuns anteriores. Ela é saliente e incisiva.

 

Em uma entrevista para a revista Mojo, em agosto de 2003, Smith afirmou sobre 1982: “Olhando para trás, o que estávamos fazendo não me agradava. Achei que deveríamos buscar outra coisa, não em termos de sucesso, mas que deveríamos fazer música que estivesse no mesmo nível das sinfonias de Mahler, não música pop.”

 

Curiosamente, várias coisas em Pornography se parecem com pequenas sinfonias. As construções que incluem costuras de teclados, guitarras e vocais sobre a base fornecida pela bateria e o baixo podem ser ouvidas assim. Não deixa de ser pop (aliás, o álbum foi o de maior êxito comercial na trajetória da banda até então), mas certamente distancia-se das fórmulas do rock’n’roll. Não por acaso, não há solos de guitarra.

 

 

Imagens desconcertantes

As letras de Pornography são parte essencial do álbum. Smith é seu compositor. Não é simples dizer sobre o que tratam. Mas um desassossego está evidente. Uma nostalgia de outros tempos, mesmo futuros. O deslocamento como desejo ou como angústia. Desencontros entre pessoas.

 

Há um pequeno zoológico nas letras, com vários animais atravessando o caminho dos humanos ou servindo de espelho para eles. Isso é parte da violência do álbum.

 

Smith aperfeiçoa o uso de imagens, abusando das alusões. Elas valem não pelo que explicam ou revelam, mas por seu desconcerto, desarranjos que lembram trechos de sonho.

 

Aqui uma compilação de algumas delas, em traduções pobres:

 

“E minha cabeça escancara, um som como um tigre se debatendo na água” (“One Hundred Years”)

 

“Um rosto de carvão morde minha mão” (“Short Term Effect”)

 

“Halos da lua contagiantes dão às minhas mãos a forma de anjos” (“The Hanging Garden”)

 

“Dançando no meu bolso vermes comem minha pele” (“Siamese Twins”)

 

“Um grito rasga minhas roupas enquanto estatuetas pressionam com aranhas dentro delas” (“The Figurehead”)

 

“Me dê seus olhos e eu poderei ver o homem cego beijando minhas mãos” (“A Strange Day”)

 

“Eu estava frio quando murmurava palavras e me arrastava através do espelho”. (“Cold”)

 

“Vou ver você se afogar no chuveiro empurrando minha vida nos seus olhos abertos” (“Pornography”).

 

A última faixa empresta seu nome ao álbum – ou vice-versa. Literalmente, a pornografia envolve sempre o sexo, e assim ficaria completa a clássica trilogia. No caso das drogas, as imagens que povoam as letras se beneficiaram não apenas do álcool, mas de cocaína e ácido.

 

Mas assim como há pouco rock’n’roll na The Cure de 1982, o sexo nada tem a ver com diversão. Está mais do lado das angústias e inseguranças. A pornografia não tem sentido literal.

 

No início da faixa, escutamos vozes distorcidas. Elas foram captadas de um debate na televisão sobre pornografia. Thornalley emprestou a técnica – batizada de found sounds (algo como sons fortuitos) – da produção de My Life in the Bush of Ghosts, antológico álbum de David Byrne e Brian Eno.

 

De todo modo, essa relação com a TV é um dos poucos ganchos do álbum com a “realidade”. A outra está na faixa de abertura (“One Hundred Years”), cujas imagens, sem destoar do que predomina nas demais letras, remetem a cenários de guerra.

 

Desde o início de suas composições, Smith busca inspiração em livros. Apesar do título infeliz, “Killing an Arab” vem de um romance de Camus. “Charlotte Sometimes” é o nome de um livro da escritora Penelope Farmer.

 

Segundo Jeff Apter, na época da criação das músicas de Pornography, Smith entretinha-se com livros sobre distúrbios mentais. O resultado é um álbum que começa com a guerra e termina na pornografia.

 

Philippe Gonin faz aproximações entre trechos de “Siamese Twins” e frases de poemas de Baudelaire e Lautréamont, escritores que, junto com Rimbaud, influenciaram o surrealismo.

 

Em “Short Term Effect”, Smith canta: “O tempo é doce, desorganiza e desmonta tudo”. Na já citada entrevista à NME, o compositor alude a uma ideia que os surrealistas emprestam exatamente de Rimbaud: o desregramento dos sentidos.

 

Os livros abriram para Smith um outro nível da realidade, esse que o surrealismo queria atingir com a ajuda dos sonhos. Os sons claustrofóbicos do álbum tragaram a banda para profundezas infernais ou para atmosferas lunares. No final de “Pornography”, atroz exercício, escutamos: “Preciso lutar contra esse mal-estar, encontrar uma cura”.

 

 

Vida após a quase-morte

Pornography nunca foi lançado no Brasil. Só tivemos acesso, antes da internet, a pequenos pedaços do álbum: “The Hanging Garden” está presente na coletânea Standing on a Beach e volta a aparecer no ao vivo Concert, nesse caso junto com “One Hundred Years”, ainda mais avassaladora.

 

Por vias tortas, essa restrição escreve a história que a banda queria contar. Pornography acabou passando uma linha nas contas da The Cure. Sem Gallup, Smith e Tolhurst achariam caminhos bem menos pesados para seguir adiante, sempre sobre a rede de proteção oferecida pela Fiction, gravadora fundada pelo empresário da banda.

 

Isso não significa que Pornography foi renegado. Toda vez que a The Cure soou mais densa, cabem créditos ao álbum de 1982. Em novembro de 2002, a banda rendeu homenagem às músicas de Pornography, em show com o repertório adicional de Disintegration (1989) e Bloodflowers (2000). Agora a linha servia para costurar diferentes fases da banda.

 

Em 2005, foi lançada uma nova edição de Pornography, com faixas extras, versões demo e registros de shows, incluindo duas músicas da fatídica apresentação na Bélgica. Essa edição traz também a composição elaborada para abrir os shows da turnê, a desconcertante “Airlock”.

 

Quarenta anos depois, ficou fácil sorver Pornography, de uma talagada só. Fácil, no sentido do acesso. Pois é remédio forte. Citando o surrealista Breton: aí, a beleza é convulsiva.

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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