Seventeen Seconds que duram 40 Anos

 

 

 

Lá por 1985, The Cure passou a frequentar as ondas de FM no Brasil com duas faixas: “Inbetween Days” e “Close to Me”. A banda inglesa vinha rotulada como “dark”, mas nessas músicas, se ignorássemos as letras, ela soava até animada. Para o dark (ou gótico) fazer sentido, era necessário cavar mais fundo, seguindo as pistas de outras faixas de The Head on the Door (álbum de onde vêm “Inbetween Days” e “Close to Me”) ou fazendo alguma arqueologia no material compilado em Concert (1984) e em Standing on a Beach (1986). E nessa escavação vamos encontrar algo bem diferente daquela superbanda que fez os primeiros shows no Brasil em 1987.

 

Pois foi com Seventeen Seconds, álbum de 1980 a ser comentado aqui, que a The Cure começou a soar gótica. Antes de Seventeen, a banda havia lançado três singles e um LP. O conjunto dessas e outras músicas apontava em várias direções, constituindo uma espécie de amostra algo disparatada de alguns dos rumos diversos que tomava o pós-punk britânico.

 

Formada em 1976 (embora o nome The Cure tenha sido adotado apenas dois anos depois), em uma pequena cidade nos arredores da capital inglesa, a banda decolou quando uma fita demo chamou a atenção de Chris Parry. Parry era do staff da Polydor e em 1978 convida os jovens do trio – Robert Smith (guitarra e vocais), Michael Dempsey (baixo) e Laurence “Lol” Tolhurst (bateria) – para inaugurar um novo selo, o Fiction.

 

Ao entrar em estúdio em 1980, a banda estava decidida a dar outro rumo ao seu som. Dempsey havia sido substituído por Simon Gallup, que veio acompanhado por Matthieu Hartley (teclados). Em 1979, Smith tinha brevemente se juntado, como músico de apoio, à Siouxsie and the Banshees, que ele admirava, ao lado de Buzzcocks, Wire e Alex Harvey.

 

Para Seventeen, o guitarrista inspirou-se em referências que iam além desses nomes do punk e pós-punk britânico. Seu ouvido ficou colado nas faixas de Low, de David Bowie e em uma fita cassete com quatro músicas: “Madame George”, de Van Morrison; “Fruit Tree”, de Nick Drake; “Gayaneh Ballet Suite No. 1. Adagio”, que estava na trilha sonora de 2001: Uma Odisseia no Espaço; “All Along the Watchtower” na versão de Jimi Hendrix (cuja “Fox Lady” entrara no primeiro álbum da The Cure). É impressionante como a sonoridade de Seventeen tem pouco a ver com esses antecedentes, mais uma prova dos caminhos imprevisíveis por onde seguem as inspirações.

 

O fato é que o quarteto conseguiu chegar a um outro lugar, confirmando a efervescência criativa do pós-punk britânico. Algumas pistas já haviam sido deixadas por músicas de Three Imaginary Boys, como a faixa título e “Accuracy”, “Another Day” e a parte calma de “10:15 Saturday Night”. Percebemos também diferenças no material que compõe Seventeen, pois “Play for Today” e “M” poderiam ter feito parte de lançamentos anteriores.

 

Mas o tom geral é definitivamente distinto desses registros. Smith compôs a base das músicas usando uma bateria eletrônica e um tecladinho. Tolhurst mantinha a simplicidade nas levadas e batidas. A justificativa para Gallup passar a participar banda era, além da camaradagem etílica, a “secura” de seu baixo. Hartley tinha sido “proibido” por Smith de passar de duas notas para cada música. Mike Hedges, que já trabalhara no álbum de estreia, entendeu as demandas de Smith, com quem dividiu a produção.

 

A proposta sonora de Seventeen Seconds é sugerida desde o início por “A Reflection”, instrumental que junta delicadeza e mal-estar. “Secrets”, “In your House” e “At Night” têm construções parecidas, com uma monotonia insistente modulada por poucas evoluções. “Three” começa quase experimental, desconstruída, levando à breve “The Final Sound”, apenas um piano, que avança tropegamente até ser bruscamente interrompido. “Seventeen Seconds”, faixa final, tem andamentos variados, a parte final retomando a inicial, até não se sustentar mais.

 

“A Forest” é o destaque do álbum. Foi lançado como single, que entrou na parada britânica para esse formato, e veio a ser incluído na coletânea Standing on a Beach. Mereceu um videoclipe, o primeiro da banda, que inclui imagens de sua estreia na TV britânica. Tornou-se um must nos shows, ganhando registro em Concert. Mas está bem encaixado em Seventeen Seconds, embora suas variações atinjam um grau maior. A letra é sobre alguém perdido na floresta, irremediavelmente. Há outras frustrações, desencontros e absurdos nas composições de Smith. As inspirações literárias emergem na regularidade das estrofes e em citações (“At Night” remete a um livro de Kafka).

 

O som em todo o álbum é esquálido e abafado. Não há peso e, no entanto, nada ali é leve. Cada instrumento é nítido (o que, no caso da bateria, foi obtido por técnicas específicas de captação), mas nenhum deles se sobressai, incluindo a voz introvertida de Smith. Tudo se junta para formar uma atmosfera única, mesmo que ela permita dissonâncias aqui e ali. A capa e contracapa expressam bem o resultado, uma foto totalmente sem foco, acompanhada de retratos dos quatro músicos, suas faces desfiguradas.

 

As 10 músicas de Seventeen Seconds foram gravadas em menos de duas semanas no Morgan Studios, Londres. Além de ser um marco no som da banda, que com ele ganhava personalidade, é também um marco na sua profissionalização. Em 1980, após gravar o álbum, a The Cure fez 80 shows em nada menos que 13 países. O resultado vai ser reconhecido como uma contribuição fundamental para o gótico, ao lado dos trabalhos de Siouxsie and the Banshees e Bauhaus. Apesar disso, a recordação de músicos e técnicos é de “festa” no estúdio.

 

De fato, a banda tinha facetas que destoavam da rotulação como “gótica”. Nas apresentações, não havia a teatralidade e a maquiagem que Siouxsie e Bauhaus estavam desenvolvendo. Nada anunciava o visual que a banda assumiria alguns anos depois – e manteria, mesmo ao mudar sua sonoridade. Comparadas às de outras bandas góticas, as letras de Smith eram mais contidas. Ao lado disso, os setlists de 1980 incluíam músicas dos anos anteriores, o que contribuía para quebrar a atmosfera produzida por Seventeen. É importante notar que no mesmo ano é lançada Boys don’t Cry, uma espécie de coletânea com a maior parte das faixas de Three Imaginary Boys acrescidas dos singles “Killing an Arab”, “Jumping Someone Else’s Train”, a música título e a que a acompanhava originalmente, “Plastic Passion”. Boys don’t Cry não saiu na Europa, mas sim nos Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia (terra de Parry), países onde a banda se apresentou em 1980.

 

Mas quanto mais as músicas de Seventeen Seconds eram executadas, mais o seu clima penetrava o ânimo da banda. O impacto de Closer e da morte do vocalista da Joy Division foi enorme para Smith, que declarou algo como: “eu achei que precisaria estar morto para compor algo tão forte quanto aquilo”. O resultado, com as contribuições de aditivos químicos poderosos, foi Faith, o álbum de 1981 que consolidou e aprofundou a sonoridade forjada em 1980. Antes disso, Hartley já havia jogado a toalha, reduzindo a banda a um trio. O mesmo aconteceria com Hedges, que deixa de produzir a The Cure depois de Faith.

 

A Náusea é o título de um livro de Sartre, associado à literatura existencialista também cultivada por Camus, autor da predileção de Robert Smith (inspiração para “Killing an Arab” e “M”). Pois parece haver uma náusea ao longo de Seventeen Seconds, aprofundada em Faith, sintoma de um mal-estar que vai ser vomitado em Pornography, de 1982, auge da fase gótica da The Cure. A violência em Pornography parece ter funcionado como uma catarse, pois, em vez de entregar os pontos, a banda encontra outros rumos, que a levariam a uma longa, criativa e exitosa carreira.

 

A escuta de Seventeen Seconds ganha com essa perspectiva de/do futuro. Sua fortuna crítica cresceu ao longo dos anos e é uma pena que nunca tenha ganhado uma edição nacional em CD. O álbum envelheceu bem. É possível render-se a sua atmosfera, é possível fruí-la, sem se deixar dominar pela pulsão de morte. É possível encontrar ali algo de eros (“You’ll fall in love with somebody else again tonight”) desviando do excesso de tânatos. É possível dançar com “Play for Today”, faixa que continuaria a frequentar os setlists da banda por muito tempo. E basta seguir (comece com o registro em Concert) as performances de “A Forest” – ao que parece, a música mais tocada até hoje nos shows – para perceber, nas suas variações, o quanto de energia havia naquela The Cure de 1980. Em 2018, a banda, com Smith e Gallup, comemorou seus 40 anos em duas apresentações no Hyde Park, Londres. Continua viva.

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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