A beleza absoluta de The Delines

 

 

The Delines – Ocean Drift

Gênero: Soul, country, folk

Duração: 40:42 min
Faixas: 11
Produção: John Morgan Askew
Gravadora: El Cortez

5 out of 5 stars (5 / 5)

 

 

Um dos primeiros textos a ir pro ar na Célula Pop foi a resenha do disco anterior dos Delines, “The Imperial”, lançado no fim de 2018. Lembro de ouvir na época e ficar extasiado com a beleza da música do grupo de Portland, com a delicadeza não-bundona de seus arranjos e com a pujança dos instrumentais. Tudo em “The Imperial” era bom gosto e verdade, uma música que tinha dívidas em partes iguais com a soul music da virada dos anos 1960/70 e com o que se chamou de “countrypolitan”, a música country da cidade, banhada de sentimento e inadequação e não totalmente country como, por exemplo, a de Johnny Cash ou similar. A coisa pendia muito mais para Dusty Springfield, Glen Campbell e Bobby Gentry, logo, muito mais sentimental, doce e luxuriante em termos instrumentais. Mas o que The Delines fazem passa bem longe da mera admiração/influência desses ramos da música popular americana e vai muito além, como prova com louvor este belo, perfeito “The Sea Drift”.

 

Com a presença do guitarrista e letrista Willy Vlautin, que compõe verdadeiras histórias completas encaixadas perfeitamente em canções de três, quatro minutos, e da cantora impressionante Amy Boone, o grupo ergue músicas que formam contextos e situações familiares, num nível de detalhamento que dá características literárias aos contos que Amy vai cantando, acompanhada pela banda, que tem, além do casal, o tecladista e trompetista Cory Gray, o baixista Fred Trujillo e o baterista Sean Oldham. Gray ainda tem a manha de fazer os arranjos de cordas e metais que as canções exibem com orgulho e contribuir decisivamente para que a obra dos Delines – composta também pelo primeiro disco, “The Colfax”, de 2014 – seja quase única no cenário atual. Lembra um pouco o que fazia o Lambchop, banda liderada por Kurt Wagner, formada nos anos 1990, mas as coisas aqui acontecem com zero acenos ao rock alternativo, algo que Wagner e sua turma gostavam de fazer.

 

A abertura com “Little Earl” já dá o tom do álbum. Vlautin descreve uma viagem de carro noturna, em que o personagem que tá título à canção vai dirigindo o carro para levar o irmão a um socorro médico. Enquanto não chega, Earl vai pensando na vida, no que fez, no que aconteceu poucos minutos antes de pegar o carro e o que meses, anos antes em sua vida. Sabemos, ao fim da música, o que há dentro do carro, detalhes do interior, da postura de Earl ao volante e muito mais detalhes. A partir daí, o disco assume um ar cinematográfico belíssimo, todo em tons escuros e desiludidos, com uma espécie de tristeza gostosa de se ter, num painel em que os personagens surgem como quem entra num bar prestes a fechar. Os semblantes, os olhares, a banda que toca num canto do salão, tudo está contemplado na narrativa que a banda constroi, surgindo de maneira natural e quase inevitável.

 

Não bastasse o talento descritivo, paradoxalmente poético, de Vlautin, os músicos são excelentes. As levadas de bateria são precisas e fortes, os metais evocam o melhor dos arranjos do fim dos anos 1960, com uma naturalidade que dá inveja a quem tenta emular esses sons. As guitarras são elegantes, apenas pontuam ou conduzem os instrumentais, nos quais a voz de Amy é a estrela absoluta. As letras cantadas com sua voz assumem um tom ainda mais interessante. Além da faixa de abertura, “Kid Codeine”, “Drowning In Plain Sight” e a impressionante, descomunal “This Ain’t No Getaway”, formam um conjunto tão sólido de beleza e dor sentida, experimentada, que é impossível não se impressionar com o talento desses caras.

 

The Delines cometeram o primeiro disco 5 estrelas de 2022. O segundo a ganhar a cotação máxima aqui da Célula Pop. Ouça e se apaixone pelo mundo sofrido, belo e doloroso, desiludido que “The Sea Drift” te oferece. Você não vai querer outra coisa por muito, muito tempo. Uma beleza descomunal.

 

Ouça primeiro: todo o disco.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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