“Crooked Rain, Crooked Rain”, do Pavement, completa 30 anos
Pavement, banda cuja obra está toda situada na década de 1990, cruza 2024 com muitas novidades. Cautionary Tales: Jukebox Classiques, divulgado em março, compila todos os singles lançados. Um documentário está em preparação, dirigido por Alex Ross Perry, que também montou em 2022 um espetáculo teatral baseado na banda exibido em Nova York.
Por aqui, a expectativa está alta às vésperas da apresentação da Pavement em São Paulo. É a segunda vez que aterrissa por aqui. Em 2010 o Brasil esteve no roteiro da turnê do primeiro reencontro dos integrantes: Stephen Malkmus, Scott Kannberg, Mark Ibold, Bob Nastanovich e Steve West.
De seus cinco LPs de estúdio, o mais aclamado é Crooked Rain, Crooked Rain, lançado em fevereiro de 1994. Fãs podem discordar, mas é esse o álbum da Pavement que conseguiu alcançar os maiores postos em listas de melhores dos anos 90.
Nas 12 faixas do álbum, com seus pouco mais de 42 minutos, nossos ouvidos são jogados em várias direções. Preenchendo todos os espaços, “Silence Kid” e “Elevate Me Later” preparam o clima para a ferocidade de “Unfair”. “Cut Your Hair” e “Gold Soundz” têm uma levada new wave. Divulgada em singles e videoclipes, como as duas anteriores, “Range Life” faz um aceno ao country.
“5 – 4 = Unity” é uma versão aloprada de “Take Five”, do Dave Brubeck Quartet. Ainda mais despirocada é “Hit The Plane Down”. “Heaven is a Truck”, com seu delicado órgão, instala uma calmaria, ao passo que “Fillmore Jive” e “Stop Breathin’” correspondem aos momentos de maior densidade sonora.
Se ferocidade e delicadeza podem ser usadas para descrever faixas específicas, servem também para definir o álbum como um todo, em um equilíbrio engenhoso. Outras oposições que são combinadas em Crooked Rain são a precisão e o caos, o melodioso e o dissonante. Certa psicodelia está nas entrelinhas e timbres jazzísticos aparecem aqui e ali. Não faltam nuances.
Na lista de faixas, pulei “Newark Wilder”, a que mais se encaixaria no adjetivo que acabou ficando colada à Pavement: largadona. A banda ficou associada a toda uma cultura do descompromisso, que pode tanto traduzir um modo de fazer música, quanto apontar para uma estética.
A arte do álbum, incluindo sua capa, seria uma confirmação. Colagens e rabiscos geram um resultado que está entre os mais medonhos da história da música pop. A imagem central da capa acena para um dos passatempos durante a gravação do álbum: apostas em corridas de cavalo. Estranhezas não faltam quando se trata de Pavement!
Indie em seu contexto
A Pavement representa para muita gente a quintessência do “indie”, no sentido de um gênero musical. Taí uma palavra cujo conteúdo sonoro varia tanto quanto as faixas de Crooked Rain. De todo modo, busca sinalizar algo alternativo ao mainstream. Numa época em que o grunge se tornara mainstream, sim, a Pavement seria “indie”.
Malkmus, com seu estilo evasivo e sarcástico, com seu figurino desleixado, se tornou um ícone. Com exceção de uma faixa, todas as composições de Crooked Rain são suas.
Em um sentido mais preciso, “indie” tem a ver com a produção musical realizada fora das gravadoras majors. Também nesse caso, a Pavement é um bom exemplo por sua longa relação com a Matador Records.
Criada em 1989, a Matador tornou-se uma das principais gravadoras independentes nos Estados Unidos. Ela foi a casa da Pavement desde seu primeiro álbum, lançado em 1992, até o último, de 1999.
Mas a gravação do álbum de estreia, Slanted and Enchanted, ocorreu antes da assinatura do contrato. Desde 1989, a Pavement vinha divulgando faixas por meio de EPs. Essas faixas foram reunidas em 1993 na coletânea Westing (By Musket and Sextant).
A essa altura, com Ibold e Nastanovich incorporados à banda, as baquetas trocaram de mão. Gary Young, que montara o estúdio Louder Than You Think em Stockton, com quem Malkmus e Kannberg fizeram as gravações anteriores, foi substituído por West, com um estilo mais trepidante.
O estúdio de Stockton, cidade nas proximidades de San Francisco, ainda com a participação de Young, chegou a ser utilizado para gravadas algumas faixas, três das quais foram incluídas no repertório de Crooked Rain. Mas os registros do álbum ocorreram no Random Falls, em Nova York, nos meses de agosto e setembro de 1993. Malkmus havia estudado na costa leste e para ali se mudou o centro de gravidade da banda no início dos anos 90.
Na verdade, foi por capricho que um apartamento na 29ª Avenida se converteu em um estúdio. Nem havia espaço para todos da banda. Malkmus e West gravaram as bases de guitarras e percussão sobre as quais Kannberg e Ibold acrescentaram mais guitarras, órgão e baixo. Nastanovich sequer participou desses registros. A própria Pavement assina a produção.
Muito trabalho foi feito por Bryce Goggin. Ele não apenas foi responsável pela mixagem das faixas do álbum, algo que demorou mais do que a gravação. Ajudou a escolher as 12 músicas que nele entraram – mais de uma dezena de outtakes restaram. Sugeriu incluir o “ensaio” na introdução de “Silence Kid”. E ainda tocou o piano que ouvimos em “Range Life”.
Nas letras de Crooked Rain, não há mensagens diretas. Tampouco autoconfissões torturadas. Ironias estão por toda a parte, como no vídeo de “Gold Soundz”. De acordo com Malkmus, o título do álbum brinca com o Purple Rain de Prince, com uma alteração que produz uma imagem surreal, algo que se repete em vários nomes das faixas.
É um desafio encontrar alguém que explique as letras de Malkmus. Alguns trechos é que ganham destaque. Um exemplo é a guerra civil na quadra de tênis, mencionada em “Stop Breathin’”. Outro é a nova era que chega tarde demais, anunciada em “Newark Wilder”.
Mas um tema recorrente, além da atmosfera suburbana, é a indústria musical. “Elevate me Later” lamenta músicos galanteadores que perambulam com estrelas do cinema. “Cut Your Hair” zomba dos que, após passarem pela barbearia, correm atrás de atenção e fama.
Menos cifrada é “Range Life”, com sua retórica hippie escolhendo Smashing Pumpkins e Stone Temple Pilots como alvo de alfinetadas – em shows, Malkmus mexia na letra para atualizar as referências.
O vídeo dessa música mostra os integrantes andando de ré na direção contrária de pessoas que chegam num festival, profetizando o que aconteceria em agosto de 1995, quando a banda foi hostilizada em uma das apresentações no Lollapalooza.
A cena nos leva de volta ao tema do “indie”. Se é verdade que a Pavement fazia em 1994 um som que destoava de outras bandas que povoavam o “hype do alternativo”, há duas coisas a ponderar: esse som não deixava de fazer parte do contexto da época e processava referências que não eram apenas recentes.
O crítico que resenhou Crooked Rain para a Rolling Stone conseguiu escutar ressonâncias tão variadas quanto Velvet Underground, The Cure e Prince. Os uh-uhs que marcam “Cut Your Hair” remetem a harmonias no estilo The Byrds.
Outra referência antiga é Buddy Holly, cuja melodia em “Everyday” é reproduzida na prosódia de “Silent Kid”, música de abertura que ilustra bem a atmosfera de rock clássico californiano que Malkmus aponta como inspiração para Crooked Rain.
A admiração pelo R.E.M. é confessada na versão para “Camera”, lado B do single de “Cut Your Hair”, e escancarada na letra de “Unseen Power of the Picket Fence”, incluída na coletânea No Alternative (1993) e gravada durante uma sessão de onde também saiu o take de “Heaven is a Truck” registrado no segundo álbum da Pavement.
Em “Hit the Plane Down”, única composição de Kannberg, notamos que o impacto da The Fall ainda se fazia sentir – para o primeiro álbum, confira “Two States”. Outra banda da mesma safra britânica que a Pavement assume como inspiração é a Echo & The Bunnymen.
Aliás, na composição que define Crooked Rain entram não apenas a Califórnia e a costa leste estadunidense, mas também as ilhas britânicas. A Pavement mantinha uma relação diferenciada com a imprensa musical inglesa. E havia caído no gosto de John Peel, que já em 1990 tocara uma música da banda em seu programa na BBC Radio. O contato renderia várias participações nas antológicas Peel Sessions a partir de 1992.
Nos shows, Nastovitch atuava como percussionista, com um kit bastante básico. Sendo o mais largado no palco, nos faz lembrar de Bez na Happy Mondays, embora o integrante da Pavement contribuísse, assim como Kannberg, para os vocais e eventualmente assumisse uma segunda e simplificada bateria.
Continuemos com as referências. É difícil não lembrar de Dinosaur Jr. quando entra o vocal de “Silence Kid”, assim como em outros momentos de Crooked Rain, que ainda ressoa bandas como The Replacements, Weezer e Teenage Fanclub.
Destacaria a influência da Sonic Youth, reforçada por colaborações diretas. Thurston Moore e Kim Gordon dirigiram dois videoclipes de faixas do álbum de estreia da Pavement e o primeiro participa do documentário de Lance Bangs sobre a banda, Slow Century (2002).
Afinal, a Pavement é desde sua origem uma guitar band – ela começa com dois guitarristas, Malkmus e Kannberg. A combinação dos sons de duas versões do mesmo instrumento – muitas vezes lembrando o que fazem Moore e Lee Ranaldo na Sonic Youth – responde por boa parte da dinâmica da banda.
Escutemos o jogo de guitarras depois de 2’15” em “Stop Breathin’”, com suas desafinações propositais, culminando com o ataque furioso. Escutemos o frenesi que irrompe na metade de “Cut Your Hair”. Nos dois casos e em outros momentos, ouvimos algo da Sonic Youth.
O que estou querendo dizer, desfilando várias referências (e sem esgotar todas as possíveis), é que a Pavement se torna a quintessência do “indie” não por ser “diferente de tudo”, mas por conseguir plasmar singularmente vetores antigos e contemporâneos, mantendo o equilíbrio entre o underground e o mainstream, a dissonância e o pop.
Caberia um contraste com a Nirvana? Afinal, a banda de Seattle buscou os mesmos equilíbrios e beneficiou-se da atenção dirigida a sons barulhentos e sujos na virada para os anos 90. No entanto, aceitou adentrar o traiçoeiro mundo das grandes gravadoras, conquistando uma escala de visibilidade e repercussão que se revelou pesada demais para seu guitarrista.
A Pavement que gravara a joia pop que é “In the Mouth a Desert”, do primeiro álbum, não sofrera as mesmas tentações? Elas não se manifestam no interesse suscitado por “Cut Your Hair”, a canção mais pop de Crooked Rain? Destacada na lista de músicas alternativas da Billboard no primeiro semestre de 1994, ela levou a banda para o programa de TV de Jay Leno e o espirituoso videoclipe teve boa rotação na MTV.
O fato é que o quinteto, mesmo fazendo muitos shows, não alçou maiores voos e nunca conquistaria a mesma atenção depois de Crooked Rain. Lançou mais três álbuns até se desfazer em 1999. Note-se que nas sessões de gravação do segundo álbum apareceram os primeiros takes de quatro músicas que estariam no repertório do terceiro, o que só confirma a importância daquele período para a banda.
Houve mais interesse sobre a Pavement depois que parou de produzir material inédito, uma ironia que no seu caso não seria descabida. É, de todo modo, um justo reconhecimento pela criatividade que a destacou como ícone do “indie”.
A própria Nirvana não demonstra isso quando parecia olhar em direção semelhante à trilhada pela Pavement? Confira “Gallons of Rubbing Alcohol Flow Through the Strip”, espécie de jam que foi divulgada como faixa oculta em algumas edições de In Utero. Aliás, ela foi gravada no Brasil (início de 1993) e originalmente batizada como “I’ll Take You Down to the Pavement”…
Nota 1. Aproveito para mencionar duas bandas, entre as muitas que foram influenciadas pela Pavement. São pouco conhecidas no Brasil. A primeira é a estadunidense The Thermals, que atuou entre 2002 e 2018. Chequem The Body, the Blood, the Machine, álbum de 2006. A outra é a holandesa Canshaker Pie. Os rapazes lançaram um álbum homônimo em 2016, produzido por Malkmus.
Nota 2. Em 2004, Crooked Rain foi relançado em edição com muitos extras: lados B de singles, as gravações com Gary Young no começo de 1993, outtakes do Random Falls Studio, a Peel Session de fevereiro de 1994, etc.
Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).