Lembrando dos Screaming Trees

 

 

No livro que Arthur Dapieve dedicou ao BRock, há um capítulo intitulado “A Segundona”. Uma forma generosa para agrupar tanto “bandas que tiveram o prestígio da crítica mas nunca foram grandes vendedoras”, quanto “bandas que tiveram boas vendas mas nunca caíram no gosto da crítica”.

Ou seja, tratava-se da segunda divisão do BRock, devidamente valorizada no livro que comenta os rumos tomados pelo rock brasileiro nos anos 80. Como contar essa história sem considerar bandas como Ira!, Kid Abelha & Os Abóboras Selvagens, Capital Inicial, Inocentes, Plebe Rude ou Camisa de Vênus?

 

 

Podemos localizar a Screaming Trees como parte da “segundona” do grunge. Na companhia de outras bandas, como Mudhoney e TAD, a primeira tornada célebre por sua opção pelo underground, a segunda, como várias outras, deixada para trás no furacão que levou algumas poucas para o estrelato.

 

A Screaming Trees teve seus “15 minutos de fama”, exatamente na época da repercussão de Sweet Oblivion, lançado em setembro de 1992. No entanto, perto do volume mastodôntico de vendas alcançado por Nirvana e Pearl Jam, o sucesso da Screaming Trees foi limitado. O que não tira as qualidades de Sweet Oblivion, como foi reconhecido pela crítica. Nem que fosse doce, o esquecimento desse álbum seria uma justiça.

 

Antes de apresentá-lo, porém, não dá para desconsiderar que a banda que o compôs já foi tachada de estranha dentro do ninho do grunge. De fato, a Screaming Trees, para começar, nem de Seattle era. Até aí, nada demais, pois o mesmo se aplica a Nirvana ou ao vocalista da Pearl Jam.

 

Formada em Ellensburg, a uns 150 quilômetros de Seattle, a banda reuniu os irmãos Gary Lee e Van Conner (guitarra e baixo), Mark Pickerel (bateria) e Mark Lanegan (vocal). No ano mesmo de sua criação, 1985, gravaram uma demo tape que serviu de base para o primeiro álbum, de 1986. Vale lembrar que Deep Six, a coletânea considerada uma das ocorrências inaugurais do grunge, é também de 1986.

 

A Screaming Trees comparece anualmente com novos álbuns, entre 1987 e 1989, o que corresponde ao período com a SST Records, a maior gravadora independente dos Estados Unidos. O som do quarteto de Ellensburg não bebia nas principais fontes do grunge, que eram o metal e o punk. Embora não ignorassem esses gêneros, suas inspirações principais vinham de outras referências sessentistas e setentistas, como The Who, Cream e The (Small) Faces. Ao mesmo tempo, havia semelhanças com o estilo de bandas anos-80 como Dinossaur Jr., R.E.M. e The Replacements.

 

Em 1991, vejam só o tamanho da carreira do quarteto, é divulgada uma coletânea com músicas dos três álbuns gravados com a SST, mesmo ano em que é lançado um quarto LP de inéditas. É o início do contrato com a Epic, que só se animaria com a banda depois do estouro da Nirvana no começo do ano seguinte. Uncle Anesthesia, o quarto álbum, não destoava muito dos anteriores. 

 

Seria então uma forçação de barra considerar a Screaming Trees como parte do grunge? Pergunta questionável… Acho que mais inadequado seria entender o grunge como algo homogêneo. Qualquer pessoa que escute com atenção as “bandas de Seattle” sabe das enormes diferenças entre elas.

 

Mas isso não impediu que houvesse uma intensa aproximação e circulação entre essas bandas, Seattle funcionando como o polo de atração para aquelas que haviam se formado em outras cidades do Noroeste estadunidense.

 

Em função dessas relações, pode-se mesmo se dizer que as diferenças entre as bandas foram se reconfigurando com o tempo. Isso vale para Nirvana, Soundgarden, Alice in Chains… No caso da Screaming Trees, Sweet Oblivion, que não abandona as referências anteriores, tem uma sonoridade que sim está mais integrada ao grunge. Não faltam (contém ironia) nem as camisas de flanela na foto que ilustra a contracapa…

 

Isso não significa que a Screaming Trees abrisse mão de um estilo próprio. Sua marca consiste em fazer um rock enérgico, em que o peso do instrumental joga “para o alto”, produzindo um contraste bem sucedido com a voz arrastada e melancólica de Lanegan. Ao assumir as baquetas, Barrett Martin – que já tocara com a Skin Yards, uma das bandas que integram a antológica Deep Six, e irá participar de gravações com Nando Reis em seus melhores dias – contribui para aumentar esse peso.

 

A entrada de Martin no lugar de Pickerel foi importante também por oferecer um lugar para a banda ensaiar com mais regularidade. Já em 1991 rolou uma primeira demo tape com músicas novas. Em março de 1992, o quarteto se reuniu em Nova York com o produtor Don Fleming, que já havia trabalhado com Sonic Youth, Hole e Teenage Fanclub. Relatos convergem em reconhecer que Sweet Oblivion foi, em suas composições, o álbum mais colaborativo da banda.

 

Comecemos a sua escuta com “Nearly Lost You”. Como o restante do álbum, a base e as melodias ficam ao cargo das guitarras de Lee. O contraponto entre a levada da bateria ora afinada com a guitarra, ora com o baixo é outro elemento que a distingue. Lanegan canta uma letra que parece ser sobre relacionamentos, mas, segundo a banda, o que quase se perde nessa história é a cabeça em meio a uma viagem de ácido… O refrão fica “batendo” por muito e muito tempo nos neurônios.

 

A música já estava pronta quando foi incluída na trilha sonora do filme que acompanhou a celebração do grunge, Singles (1992). Seu videoclipe inclui uma aparição do cartaz desse filme. A ironia é que “Nearly Lost You”, também lançada em formato single, acabou ofuscando Sweet Oblivion, muita gente se contentando em conhecer a banda por sua presença na trilha sonora do filme ou pelo videoclipe exibido (bastante) na programação da MTV.

 

A faixa está ensanduichada entre outras duas maravilhas do álbum. A abre-alas “Shadow of the Season” começa com um duo de guitarras, destacando a melodia quase oriental. A bateria vai preparando a passagem para a entrada do vocal rouco e aveludado. Logo a música ganha corpo – e nossos ouvidos. Há um equilíbrio raro entre ataques furiosos e provocações pop.

 

A terceira faixa de Sweet Oblivion é “Dollar Bill”, que também foi lançada como single. Sua dinâmica já foi comparada à de “You Can’t Always Get What You Want”, dos Stones. Não precisamos saber para quem ou sobre o quê Lanegan está cantando, mas quando ele se despede (“goodbye mama…”) no mesmo momento em que a música cresce, estamos junto.

 

“More or Less” menciona um rio em que a água corre devagar, tudo a ver com a guitarra e o vocal arrastados. Em “Butterfly”, a banda volta a andar mais rápida, com um refrão prá lá de pop. “For Celebrations Past” é outro exemplo de ataque sonoro em combinação com momentos mais melódicos.

 

Sweet Oblivion traz mais cinco faixas, que na versão em vinil estão distribuídas no lado B: “The Secret Kind”, “Winter Song”, “Troubled Times”, “No One Knows” e “Julie Paradise”. O efeito não é tão forte quanto o proporcionado pelas anteriores, altamente grudentas. Em alguns momentos, temos a impressão de já termos ouvido algo semelhante – e melhor – do outro lado da bolacha.

 

O álbum teve uma reedição em 2019, que generosamente inclui faixas que originalmente acompanham os singles. Incluem duas versões que escancaram referências da banda, sobretudo dos irmãos Conner: “Song of a Baker”, da Small Faces, mais óbvia, assim como a The Who que ressoa em “No One Knows”; “Tomorrow’s Dreams”, da Black Sabbath, mostrando que a distância entre a Screaming Trees e o metal não era intransponível. Vale notar que Chris Cornell, da metalíssima (no quadro do grunge) Soundgarden, co-produzira o álbum anterior… Essas versões e demais canções dos singles são faixas que fazem boa companhia ao “lado B” de Sweet Oblivion.

 

Não me entendam mal: o lado B de Sweet Oblivion não é ruim. Se fosse, o álbum não seria tão bem avaliado por críticos e publicações musicais. É que o lado A está para além de qualquer média. O quinto LP da Screaming Tress só tem duas coisas a oferecer: do bom e do ótimo. Registre-se a contribuição de Andy Wallace na mixagem, o mesmo que colocara suas mãos no acabamento de Nevermind.

 

Há muita especulação sobre as razões que levaram a seu menor sucesso comercial, já que Sweet Oblivion está repleto de boas e ótimas faixas. A Epic já tinha encontrado na Pearl Jam sua mina de ouro. A Screaming Trees promoveu seu álbum à sombra da Alice in Chains, artista do cast da Columbia, pertencente, como a Epic, à Sony. Ficou parecendo que a gravadora reservava para a banda um segundo plano.

 

Nos palcos, Lanegan estava longe de ser um Eddie Vedder. Agarrava-se ao pedestal de seu microfone, como um Jim Morrison em seus momentos mais calmos. Já Lee era o mais animado, com direito a voadas de mão ao estilo de Pete Townshend.

 

Para Lanegan, que detestava comparações com Morrison, o pedestal era providencial. Em geral ele estava “sob efeito”, o que, aliás, contribuía para reproduzir a sonoridade das gravações, registradas, como ele confessa em suas memórias, com sua voz alterada por álcool ou heroína. Ou de ressaca.

 

Em um dos principais festivais europeus, um Lanegan embriagado, irritado com problemas no som do palco, destruiu equipamentos e machucou uma pessoa do público. Por isso, a banda perdeu a chance de participar de outros festivais, com exceção de Reading ‘92, graças a uma imposição da Nirvana.

 

Cobain e Lanegan eram amigos, amizade em parte mantida pela heroína, mesma razão que aproximava Lanegan de Layne Staley, vocalista da Alice in Chains. É quase um milagre que Lanegan não tenha sofrido o mesmo fim que seus camaradas.

 

Lendo suas memórias, tem-se a impressão de que a principal preocupação de Lanegan naqueles anos era garantir a próxima dose. Em seguida, vinha a obsessão em tornar sua obra solo uma perfeição. Sweet Oblivion apareceu entre o primeiro e o segundo álbuns de Lanegan, ambos lançados pela Sub Pop, em 1990 e 1994.

 

Os parceiros da Screaming Trees pouco aparecem no livro. Quando a banda voltou aos estúdios no final de 1993 para registrar novas canções e assim aproveitar o hype do grunge, o material resultante não foi suficiente. Dust só foi divulgado em 1996, quando os tempos eram outros. Em 2000, a banda encerrou os trabalhos, com suas últimas composições lançadas em um álbum de 2011.

 

Enfim, tentando encontrar uma resposta para o que explica o menor sucesso da Screaming Trees, ficamos com a sensação de que Sweet Oblivion resultou de uma improbabilidade na biografia da banda. Talvez. Isso só torna mais justa a celebração das qualidades que esse álbum tem.

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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