Vestido de Flor e cores da vida

 

 

Livros chamam a nossa atenção pelos mais diferentes motivos: a capa bonita, uma sinopse chamativa, o nome do autor querido como destaque na lombada. Mas essas pequenas aparências podem decepcionar, e as que se tornam marcantes de verdade são as obras que chegam de mansinho e enlaçam a nossa leitura com as cores e os fios de memória que nos trouxeram até os tempos atuais, com um pouco de saudade e muito de agradecimento.

 

Finalmente li “Vestido de Flor”, o livro escrito em 2006 por Carlos Eduardo Lima e espero que a abertura desse texto faça jus ao meu sorriso desde o prefácio e o seu início, que me levou direto para os anos 90, quando assaltava a o guarda-roupa dos meus irmãos atrás das suas camisas de flanela.

 

Tudo começa em 1998, com uma Flora menina, uniforme de escola, recebendo em casa o presente de um admirador secreto, a fita cassete amarela com apenas uma música gravada, uma tal canção dos tempos verbais desorganizados e sentimentos tímidos. Quem teria se apaixonado pela menina com nome de natureza?

 

Eu, que nunca recebi uma fita cassete gravada, mas que tinha uma amarela que vivia no aparelho de som, cujo lado A começava com “Wish you were here”,  do Bee Gees, estava com o livro nas mãos, na fila da segunda dose da vacinação contra uma pandemia com a qual nunca sonharíamos naqueles anos em que poucas coisas nos assustavam, quando a Flora de 24 anos encontra Bernardo no Rio de Janeiro, depois de um e-mail que levou ao que hoje chamaríamos, no nosso cinismo e na falsa pose de muito fortes nas coisas do coração, de um blind date destinado ao fracasso.

 

Talvez tanta dureza não tenha passado pelos meus olhos porque as cores do vestido com que Flora invadiu os dias de Bernardo em forma de arco-íris eram as mesmas daquele que eu amava usar com a jaqueta de sarja bege da minha mãe para ir aos cinemas Rosário e Rio Branco, esse que ficava na mesma praça por onde eu passava apressada ao voltar da escola onde cursei o Ensino Médio, de alto- falantes desligados desde a época em que meus pais tinham 16 anos, realidade um pouco diferente da Pato Branco da Flora estudante de Edificações.

 

Bernardo jamais, em toda a sua vida nesse mundo, esquecerá do momento em que viu Flora pela primeira vez. Talvez ele decida batizar uma filha com o nome dela. Talvez pinte um quadro. Talvez apenas lembre da visão colorida da moça de pele clara, cabelos castanhos alourados, olhos azuis e vestido de flor com estampas em vermelho, laranja e amarelo.

 

Bernardo, crítico musical, moço do coração ferido por um casamento desfeito, parte do impacto visual e romântico de sua primeira visão de Flora e a conduz por um Rio de Janeiro encantador, cenário desse encontro de sorrisos e confissões, inseguranças e entregas. De braços dados que oferecem conforto inesperado, de caminhada pela praia, beijo gelado pela maresia e aquecido pela expectativa.

 

“Antes do fim do beijo, Bernardo, que estava com as duas mãos no rosto de Flora, encostou sua testa na dela, se afastou um pouco para olhar os seus olhos. Deu-lhe um pequeno beijo no nariz e outro na testa. E se afastou sorrindo, mais por dentro que por fora. Era o seu jeito e ele não pensou em mais nada.”

 

Quando me falou pela primeira vez sobre o livro, CEL brincou, sabendo que eu sou fã do Nick Hornby, sobre as semelhanças entre “Vestido de Flor” e “Alta Fidelidade”, mas não citou que seu livro vai mais além: ao fugir de uma escrita que o próprio Nick chama de “cabecismo”, ele escreveu de maneira singela um verdadeiro tratado sobre os sentimentos possíveis para todos nós, meninas e meninos que já passamos uma tarde trancados nos nossos quartos ouvindo músicas que acalmassem nossos corações apaixonados antes que o mundo tentasse nos endurecer com a ilusão de que o amor não vale a pena.

 

Flora e Bernardo, tão diferentes, em sua jornada curta e delicada, são a definição que Thiago Pereira Alberto tem da nossa subjetividade no seu livro Vida Pop: representação e reconhecimento da cultura pop em ficções de Nick Hornby (coincidência, será):

 

“A subjetividade é o que particulariza o ser, está interiorizada, mas é modelada a partir de suas relações sociais. O que tomamos como subjetividade aqui é, em suma a autoconsciência do sujeito constituída a partir das conexões entre seu self interior e o mundo da vida, o exterior”

 

É lembrando da pluralidade das nossas existências e sentimentos que o choro da despedida na porta do prédio onde Flora se hospedou não se torna exagerado. Que a sua negação a uma visita de Bernardo não parece cruel. Cada um deles se construiu de uma forma e é isso que dá tamanha beleza a essa mistura.

 

“Vestido de Flor” nos conduz a um final lindo de um jeito sem pressa, como se pegando nossa mão do jeito com que Bernardo dá a mão para Flora durante os passeios que lhe mostrarão que o amor por aquele que chega muitas vezes nada mais é que amor que fica, o por nós mesmos.

 

É um livro visual, palpável, tem cheiro de café, de pasta de dente com flocos refrescantes e Malziber com limão. Leva a gente a ouvir “Clube da Esquina” e Elvis Costello para escrever texto novo e a lembrar o quanto é feliz pelos amores vividos, os banhos de mar e os filmes assistidos nas salas de cinema de portas que davam para ruas movimentadas ou não.

 

Ele fala de nostalgia sem negar a beleza do futuro.

Debora Consíglio

Beatlemaniaca, viciada em canetas Stabillo e post-it é professora pra viver e escreve pra não enlouquecer. Desde pequena movida a livros,filmes e música,devota fiel da palavras. Se antes tinha vergonha das próprias ideias hoje não se limita,se espalha, se expressa.

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