Sangue Açúcar Sexo Magia: o álbum de 1991 dos Peppers

 

 

Tem gente que acha que o Red Hot Chili Peppers só existe desde Californication, de 1999. Mas a história dessa banda começa muito antes. Na década de 1980, foram quatro álbuns. Em 1991, ocorre o lançamento de Blood Sugar Sex Magik, catapultando os Peppers para novos patamares. O aniversário de 30 anos desse álbum é mais do que uma boa ocasião para falarmos dele.

 

Os anos 80 foram turbulentos para a banda, culminando na morte por overdose do guitarrista Hillel Slovak. Jack Irons ficou tão abalado que largou as baquetas. À dupla original remanescente, o vocalista Anthony Kiedis e o baixista Flea, juntaram-se John Frusciante e Chad Smith, ainda a tempo de participarem do quarto álbum, Mother’s Milk. O entrosamento produzido em shows e composições resultou em Blood Sugar Sex Magik (BSSM).

 

BSSM foi o início de uma longa parceria dos Peppers com Rick Rubin, que participaria da produção de outros cinco álbuns da banda. O engenheiro foi Brendan O’Brien, que começava uma carreira destacada como produtor. Seu trabalho com a Pearl Jam, a partir de Vs. (1993), abriu portas para muitos outros.

 

Junto com o álbum, foi divulgado um registro em vídeo das gravações, Funky Monks, filmado por Gavin Bowden, que faria alguns dos videoclips para a banda. Outra colaboração envolveu Gus van Sant, que clicou as fotos para a arte de BSSM. Gus Van Sant já havia dirigido Drugstore Cowboy e se destacaria com Gênio Indomável (1997) e Milk (2008).

 

De todas essas participações, certamente a de Rubin foi a mais impactante. Ele já se firmara, junto com sua empresa Def Jam, como um produtor de misturas. Acompanhou os Beastie Boys em sua jornada rumo à fusão de rap e metal, estabelecida com Licenced to Ill (1986). Trabalhando com vários rappers, ajudou a música hip hop a atingir outros patamares de público. Do lado do metal, associou-se à Slayer, produzindo Reign in Blood (1986), um clássico do gênero.

 

Rubin foi fundamental também por sugerir que o quinto álbum dos Peppers fosse gravado fora de um estúdio convencional. Por pouco mais de um mês, em 1991, a banda morou em uma casa nas colinas de Hollywood. The Mansion, como era conhecida, vinha cheia de histórias sobre o mágico Houdini, The Beatles e Jimi Hendrix. E também de assombrações, que fizeram Smith preferir não passar suas noites por lá.

 

Rubin já havia sido convidado pelos Peppers para produzir seu terceiro disco. Mas a fama de festeiros e imaturos seguia os rapazes e isso o fez dizer não. O sim de Rubin diante de nova consulta permitiu que a banda demonstrasse (alguma) seriedade. Permitiu ainda que se dedicassem a recombinar os elementos que já se juntavam desde seu início, que incluíam o rock, o punk, o metal, o rap e o funk.

 

Sex Magik

 

Na capa de BSSM, uma composição com as fotos dos quatro Peppers faz suas línguas se costurarem por meio de grafismos que lembram motivos tribais. As músicas do álbum tem essa característica, de se comunicarem por meio de elementos que compartilham. Aliás, mesmo quando há diferenças expressivas entre as 17 faixas, elas estão coladas por intervalos mínimos.

 

A abertura do álbum pode ser também o começo do nosso percurso. “The Power of Equality” destaca sua levada funk com Kiedis rapeando na maior parte do tempo. A mesma descrição pode se aplicar a “If You Have to Ask”, “Funky Monks” (mais disco) e “Apache Rose Peacock”. Também entraria aí “Mellowship Slinky in B Major”, mas ela começa com um riff de metal… e vamos perceber que o peso várias vezes se combina à guitarra discreta do funk.

 

“The Righteous and the Wicked” tem funk e um solo em estilo metal, mas pode ser descrita como um rock. O mesmo vale para as altamente groovescas, em diferentes andamentos, “Suck my Kiss”, “Give it Away” e “Blood Sugar Sex Magik. “Naked in the Rain” também é rock, mas marcado pelo baixo funk. Já “My Lovely Man” inverte as posições, com um trecho levado por um riff de rock, e o refrão funk. Em “The Greeting Song”, a guitarra assume uma agressividade punk, sem abandonar o funk.

 

Além da magia com os elementos que já faziam parte da sonoridade da banda, BSSM apresenta três músicas que apontavam em outras direções. “Breaking the Girl”, um folk que se apoia em um teclado para a melodia; “I Could Have Lied”, uma balada; “Under the Bridge”, outra balada, mas que explode depois de sua metade. Apesar de se destacarem, as faixas não parecem estranhas no conjunto. Sua conexão com o resto pode recorrer a “Sir Psycho Sexy”, uma música de 8 minutos, rap acompanhado por uma guitarra pastosa, que a deixaria bem à vontade entre outros funks. Mas a composição é entremeada por um trecho disco e por um excurso psicodélico (pense em Pink Floyd…) que volta para fechar a faixa.

 

Estou entre as pessoas que não acentuam as descontinuidades entre BSSM e os quatro álbuns anteriores. É verdade que as quatro faixas citadas traziam novidades; que Flea deixou de estapear o baixo com velocidades dementes; que Kieds desenvolve mais um estilo melodioso de canto. Mas Kieds sempre alternou o rap com outras prosódias; Flea não deixa de dar destaque ao seu baixo em BSSM. E até podemos achar uma semelhança entre “If You Have…” e “Hollywood (Africa)”, esta de 1985. Enfim, os ingredientes não mudam muito; o que há de diferente é a magia de 1991.

 

Se as sonoridades de BSSM estão cheias de magia, as letras de BSSM estão recheadas de sexo. Ou, para usar a expressão que era aplicada aos temas de uma banda brasileira dos anos 80, a DeFalla, sexamor. Boa parte das faixas do álbum dissertam californicamente sobre o assunto, mesmo quando o cenário é New Orleans (“Apache…”) ou quando ele está no meio de outras coisas favoritas (“Mellowship…”). Na verdade, a relação da música dos Peppers com sexo vai além. “Funky Monks” e “Blood Sugar…” não apenas falam sobre sexo. Elas fazem sexo com nossos tímpanos. Elas proporcionam orgasmos musicais.

 

Entramos aqui em terreno minado, pois os Peppers já tiveram que se explicar mais de uma vez por suas letras, videoclipes e algumas situações. Sua celebração da nudez (cantada em “Naked in the Rain”) ficou, desde o início da banda, notória pelas apresentações e imagens em que apareciam trajando apenas uma meia. Ela tem a ver tanto com uma visão “desencanada” do sexo (e potencialmente libertária), quanto com uma reiteração de uma masculinidade viril (e potencialmente sexista).

 

De todo modo, as letras de BSSM vão além do sexamor. “Breaking…” e “I Could Have Lied” tratam de decepções e desencontros em relacionamentos. “Give it Away” elogia as virtudes do desprendimento. “My Lovely Man” é uma homenagem a Slovak. “Under the Bridge”, com sua declaração de amor a Los Angeles, é uma canção sobre a experiência de Kiedis com a heroína, composta no momento em que ele havia se distanciado dela. A palavra “sangue” faz parte de seus versos, o que mostra que nem só magia e sexo frequentavam a vida dos Peppers.

 

Blood Sugar

 

Mas falemos antes do açúcar. BSSM começa doce, por conta do contrato milionário que os Peppers assinaram com a Warner Bros. Embora os quatro álbuns produzidos com a EMI contem uma história de ascensão em termos de vendas e reconhecimentos, a banda preferiu mudar de gravadora. O contrato com a WB não apenas garantia três álbuns novos, mas vinha acompanhado de muitas apostas e investimentos.

 

Foram sete videoclipes de faixas contidas em BSSM – ou, caso de “Soul to Squeeze”, gravadas em suas sessões. Essa música também foi divulgada em formato single, assim como aconteceu com outras cinco faixas de BSSM. Os lançamentos ocorreram entre 1991 e 1993 e trouxeram algumas inéditas, incluindo uma versão para “Search and Destroy”, dos Stooges. A EMI aproveitou o embalo e preparou What Hits!?, de 1992, uma coletânea de faixas dos quatro primeiros álbuns acompanhada por uma compilação dos videoclipes dos anos 80.

 

Nesse período, muita coisa adoça a vida dos Peppers. Em 1992, a banda foi a atração principal da segunda edição do Lollapalooza. No mesmo ano, com indicações para sete prêmios, se apresentou no MTV Video Music Awards. Em 1993, nova apresentação, dessa vez no palco do Grammy Awards, quando também foram premiados. Ainda em 1991, os rapazes haviam aparecido em um comercial de TV, para um tênis da Nike… Em maio de 1993, viraram personagens de um dos episódios d’Os Simpsons.

 

Em alguns meses, BSSM havia sido laureado com o “disco de platina”. O álbum foi “puxado” especialmente por duas de suas faixas. A sacolejante “Give it Away”, com sua abertura arrasadora, e a comovente “Under the Bridge”, que culmina com um coral de vozes. Ambas foram divulgadas como singles e como videoclipes com alta rotação na MTV, inclusive a brasileira. BSSM foi lançado por aqui ainda em 1991, em vinil duplo.

 

A turnê de BSSM passou pelo Brasil, a primeira de muitas visitas. Foi em janeiro de 1993, na noite do Hollywood Rock que se iniciava com a apresentação da DeFalla, uma banda com referências semelhantes às dos Peppers. Edu K rendeu-lhes homenagem entrando no palco com apenas uma meia sobre o corpo. No Rio de Janeiro, os Peppers, além de incluírem covers de funks clássicos, tiveram a companhia, por alguns minutos, da bateria da Mangueira.

 

Mas nem tudo foi doce na vida da banda. Frusciante, que tinha apenas 21 anos ao gravar BSSM, jogou a toalha já em maio de 1992, quando a turnê passava pelo Japão. Ele não se sentia preparado para a fama que os Peppers estavam alcançando e se debatia com o uso de heroína. Voltaria em 1998 para reencontrar os parceiros. Assim, quem assistiu os shows no Brasil não pode conhecer Frusciante, e sim Arik Marshall, que no mesmo ano cederia o posto para Dave Navarro.

 

Se o sangue de Frusciante contou na sua decisão de deixar a banda, sangue havia também na Los Angeles contemporânea ao álbum e ao sucesso dos Peppers. Em março de 1991, ocorreu um episódio de brutalidade policial que vitimizou um homem negro. Ainda estávamos longe do Black Lives Matter, mas quando o julgamento absolveu três dos quatro policiais, a cidade dos anjos literalmente pegou fogo. Isso, que ocorreu em abril de 1992, ficou conhecido como “a batalha de Los Angeles”.

 

Até onde sei, não há conexões diretas entre essa história e a música dos Peppers. Mas BSSM abre com “The Power of Equality”, cuja letra denuncia os supremacistas e outros fanáticos. O tom político reaparece em “The Righteous and the Wicked”, que junta lamento social e ambiental, e termina citando Marvin Gaye. Na primeira música, há menção a Public Enemy.

 

As referências a artistas negros são várias em BSSM: Bob Marley, James Brown, Count Basie, The Meters, Louis Armstrong… Cabe agora mencionar a última faixa do álbum: uma versão para “They’re Red Hot”, clássico do bluesman Robert Johnson. Em Mother’s Milk, os Peppers haviam soltado uma versão de “Fire”, de Jimi Hendrix. O guitarrista de Seattle volta a ser homenageado em duas faixas bônus de BSSM, “Little Miss Lover” e “Castles Made of Sand”.

 

A presença fundamental da música negra na sonoridade dos Peppers é evidente, desde o início da banda. Kieds aprende a rapear com Grandmaster Flash and the Furious Five. Flea, antes de curtir rock, era um amante do jazz, sua inspiração para aprender a tocar trompete. Jack Sherman, o guitarrista que esteve com a banda no primeiro álbum, apresentou aos parceiros as músicas das bandas de George Clinton, que então foi convidado para produzir Freaky Styley. Clinton voltou a aparecer ao lado dos Peppers em sua apresentação na noite do Grammy.

 

Na ocasião, Flea reclamou por “Give it Away” ter sido indicada na categoria “hard rock”: “se não fôssemos brancos, a música seria classificada como funk”. O fato é que a audiência dos Peppers era basicamente branca. Isso não anula outro fato: a banda contribuiu para lembrar essa audiência de onde vinha a música que estavam curtindo.

 

O que nos leva a outro fato ainda: a divulgação de BSSM surfou na onda do grunge. Pearl Jam e Nirvana abriram para shows dos Peppers em 1991. O Lollapalloza de 1992 tinha, além dos Peppers, Pearl Jam e Soundgarden.

 

Havia imensas diferenças entre os Peppers e o “som de Seattle”. Eles tinham mais afinidade com a Jane’s Addiction, e não é à toa que Dave Navarro participa de ambas as bandas. Ao mesmo tempo, é possível ver uma aproximação com o grunge. É que parte da magia de BSSM consistiu em apostar no básico: quase todas as faixas contam apenas com baixo, bateria e guitarra, renunciando aos naipes de metais, contornando os teclados e pouco utilizando os timbres hard rock.

 

Essa opção expressa-se na estética de BSSM, com sua capa de poucas cores e as fotos em preto-e-branco no encarte. Com seu som de 1991, os Peppers se distanciavam de parentes como Living Colour e Faith No More. E o nu metal de bandas como Korn e Lymp Bizkit, embora bastante influenciado pelo quarteto de Los Angeles, não manteve o tom ensolarado do álbum feito em suas colinas. BSSM destaca-se com sua singularidade. E continua memorável.

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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