Tristeza na quebrada
Acho que esta é a tradução mais perfeita para “Inner City Blues”. Poderia ser “periferia”, “perifa”, “gueto”, “vizinhança”, “comunidade” ou algo que demonstrasse uma parte da cidade em que more uma população afro-descendente. Se Marvin Gaye fosse brasileiro e estivesse refletindo hoje sobre a discriminação racial, provavelmente usaria um desses termos aí. Portanto, tradução intuitiva feita, vamos ao motivo do texto. É bem simples: racismo é intolerável sob qualquer aspecto. Não há raça superior, cultura superior, nada disso. O homem é um bicho inteligente, capaz de produzir signos, sentidos e significados de acordo com o meio em que vive. Assim foi com as civilizações ao longo do tempo. Algumas sucumbiram mais cedo, outras mais tarde, mas a cultura produzida por elas é fruto do tempo em que estiveram presentes no planeta. Logo, tudo isso importa, basta ter uma visão um pouco mais ampla. E este é o problema.
O atentado contra Jacob Blake, em Wisconsin, no qual foi atingido sete vezes por um policial de Kenosha, cidade do estado americano, é mais uma dessas evidências de que o racismo é um traço identitário no s Estados Unidos. Sempre foi, ainda não deixou de ser e esta luta é de todos os povos negros ao redor do mundo. É um traço da diáspora negra o enfrentamento dessa abominação. Por trás do racismo está o medo/desespero de perder privilégios de classe, algo cuja existência já foi provada de diferentes formas. Os brancos têm privilégios às custas do racismo. Isto se traduz no estudo, no trabalho, na possibilidade de sucesso pessoal, coletivo, tudo. E está em várias partes do planeta, como um traço da luta de classes que forma o esqueleto do preconceito racial.
Como se não bastasse a tragédia, ontem um supremacista de 17 anos matou duas pessoas e feriu uma em meio a uma manifestação na mesma Kenosha. Suspeita-se de atuação coordenada entre a polícia e as milícias brancas. Sim, milícias supremacistas. Algo soa familiar aqui? Sim, onde o governo se ausenta, o poder paralelo e desprovido de fundamento legal atua. Qualquer semelhança não é coincidência.
Para prestar solidariedade ou, sei lá, para integrar a fila de pessoas indignadas com o racismo, faço questão de abrir espaço aqui na Célula Pop para marcar nossa posição de total repulsa ao racismo e toda forma de preconceito, de natureza. Tive uma mãe de criação era da cor da noite, talvez tenha sido a criatura mais doce, afetuosa e carinhosa que já conheci. Pra mim é absolutamente inconcebível o racismo. Apenas reflita sobre a infinidade de manifestações culturais de origem negra que permeiam o cotidiano de países como os EUA e o Brasil. Se você for um racista, sua capacidade de enxergar já é inexistente de saída, mas garanto que você desfruta de muita herança negra na comida, na música, nas artes. E faz isso sem saber, ignorante que é.
VIDAS NEGRAS IMPORTAM.
Pra lembrar disso e convidar todos à reflexão, deixo aqui o link para ouvir “Inner City Blues”, canção que Marvin Gaye compôs em 1971, faixa de encerramento de seu soberbo álbum “What’s Going On”, no qual ele abandona seu formato prévio de música e embarca numa jornadade questionadora daquele mundo de Guerra do Vietnã, homem na Lua e tudo mais. E de gente negra nos guetos sofrendo numa sociedade racista, que usufruía de privilégios negados à sua totalidade. É a tristeza na quebrada, na favela, no quilombo.
E isso tem que acabar.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.