“Thriller” faz 40 anos como marco da música pop

 

 

 

 

Houve um tempo em que a gente dava discos de presente de Natal e aniversário. Lembram disso? Se sim, e se tiverem a idade adequada (quarenta e muitos/cinquenta e poucos anos), é possível que vocês estejam inseridos no grande contingente de pessoas que ganharam ou deram “Thriller” de presente entre o fim de 1982 e o fim de 1983. Eu estou duplamente na estatística: dei e ganhei o disco e sei de gente fez isso mais de uma vez e isso é totalmente explicável. Naquele tempo, “Thriller” inaugurou uma espécie de música pop interdisciplinar. Era música, mas também era clipe, imagem, cinema, tudo muito maior do que jamais fora. E tudo que veio deste álbum se tornou parâmetro de qualidade máxima e expressão artística insuperável. Michael Jackson era um deus neste tempo, estava em toda parte e a gente queria exatamente que ele fizesse isso. Os amigos roqueiros que me desculpem: não tinha pra nenhuma banda alternativa ou mainstream naquele início de anos 1980. O mundo era dele e só dele.

 

 

É interessante frisar isso porque, naquele início de década, muitos álbuns bons fizeram sucesso. Tivemos a ascensão do Culture Club com “Kissing To Be Clever” e “Colour By Numbers” (1982-1984), o canto de cisne existencial do Police, “Synchronicity” (1983), a coletânea “Greatest Hits”, do Queen (1981), a mutação pop de Bruce Springsteen com “Born In The USA” (1984), sem falar na ascensão/consolidação de artistas no mesmo nicho de Jackson, o pop, como Madonna, Lionel Richie e Prince, todos lançando ótimos álbuns entre 1982-1984. Ou seja, “Thriller” não fez sucesso porque era uma exceção num período estéril, pelo contrário, havia muita concorrência de peso nas paradas de sucesso, mas nada o abalou. Hoje, 40 anos depois disso, é possível olhar com mais nitidez para o processo que desencadeou sua criação e dá pra cravar que seu surgimento era inevitável.

 

 

Michael Jackson já era uma estrela na década de 1970, mas ainda não era uma superestrela, até porque esta nova categoria só surgiria com ele mesmo, alguns anos depois. Ele era, sim, um talento inegável. Cantava como ninguém, dançava como uma versão pop de Fred Astaire, tinha um sex appeal único e, além disso tudo, era um baita compositor. Ainda que já tivesse gravado álbuns solo quando criança, Michael já era um pós-adolescente e precisava expressar essa sua nova versão para o mundo. Naquele tempo, após 1976, o antigo Jackson 5 mudara o nome para The Jacksons e procurava se encontrar em meio ao boom da Disco Music. Ainda que o grupo nunca tenha gravado um álbum voltado para o estilo, ele certamente mergulhou na onda, com canções ótimas, caso específico de “Can You Feel It?”, faixa que abria seu disco de 1978, “Destiny”. Além da canção, o grupo inaugurou uma nova fase nos clipes, com efeitos especiais inusitados e uma divulgação planetária três anos antes da MTV entrar no ar. Aquele clipe mostrava um Michael totalmente novo visualmente, mas foi outra canção que despertou a curiosidade e o desejo do público em vê-lo, ouvi-lo, senti-lo: “Shake Your Body (To The Ground)”. Ali já dava pra ver que o menino já era um homem e não tardaria a ressurgir em forma solo.

 

 

Em 1979 veio a resposta para este desejo. “Off The Wall”, disco que inaugurou essa fase adulta da carreira de Michael, chegou e dominou as paradas de sucesso planetárias. Eu lembro de, aos oito, nove anos, ver o clipe de “Don’t Stop Til’ Get Enough”, canção que abria o álbum, com MJ dançando exuberante em meio a um efeito especial chroma key que se tornou clássico. Minha mãe amava a canção, todos amavam e tentavam dançar como aquele sujeito magro e magnético. Não bastasse este arrasa-quarteirão, “Off The Wall” ainda trouxe outros hits globais, a saber, a faixa-título, a perfeita “Rock With You” (modelo clássico de soft funk pop para o porvir) e outras maravilhas, como, por exemplo, os funkaços “Working Day And Night” e “Get On The Floor” e a lindeza de balada soul pop “I Can’t Help It”, na qual o produtor, Quincy Jones, mostra sua maestria na condução e canalização daquela força da natureza num formato elegante, polido e totalmente inserido na galeria dos maiores intérpretes de todos os tempos.

 

 

“Off The Wall” ainda reverberou até 1981 nas paradas de sucesso, mas os Jacksons ainda produziriam mais um álbum de estúdio, “Triumph” (1980), que faria muito sucesso e os levaria para uma excursão em vários países. Já havia um conflito entre os irmãos, uma vez que Michael – que nunca fora uma pessoa fácil de lidar – pedia passagem e sua desvinculação do combo dos Jackson era questão de tempo. Mesmo assim, sua participação no álbum, em pleno momento de sucesso mundial de “Off The Wall” só fez turbinar o interesse popular. Como se não bastasse, em 1981 viria o típico “álbum de verão”: “Live”, um disco duplo ao vivo, capturado na recente turnê americana dos Jacksons. Espertamente, o tracklist trazia versões ao vivo dos sucessos de “Off The Wall”, em performances realmente incendiárias e muito bem gravadas. Estão lá versões turboblaster de “Don’t Stop Til’ Get Enough”, “Working Day And Night”, “Rock With You” e da faixa-título, trazendo, literalmente, o melhor de dois mundos.

 

 

Como vimos, entre 1978 e 1981, o mundo recebera produtos poderosos criados pelos irmãos Jackson, em grupo e solo. Esta sequência de discos, singles, aparições, shows, fez com que a chegada de uma obra como “Thriller” fosse a continuação natural, mas ninguém estava preparado para o impacto que ele teria na cultura pop. Mais do que qualquer outro álbum antes dele, “Thriller” definiu seu tempo. Com toda a complexidade daquele início de anos 1980, ele fundiu o pop branco, o soft rock herdeiro dos anos 1970, o funk pós-disco e ainda arriscou – e ganhou – em terrenos ainda não explorados por Michael, como o rock. Seu maior mérito musical foi de oferecer uma mistura branca e negra em proporções equivalentes e harmoniosas, de modo a parecer absolutamente nova. Mais que isso: essa fusão de estilos e influências tinha uma qualidade técnica impressionante, fruto do amadurecimento de Michael e do próprio Quincy Jones como produtor, sem falar na presença de músicos do nível de Greg Philliganes (teclado), Jonathan Moffat (bateria), Rod Temperton (composição), Paulinho da Costa (percussão), o grupo Toto, Eddie Van Halen (guitarra), James Ingram (teclados, composição), Paul McCartney, ou seja, um verdadeiro acontecimento cultural na hora e lugar certos, traduzidos por quem parecia mais capaz naquele momento.

 

 

A faixa com participação de Paul, “The Girl Is Mine”, chegara doze dias antes do lançamento do álbum, como single. Ela já preparou o terreno para algo novo, mas que não soava esquisito na voz de Michael. Um dueto adorável entre o ex-beatle, que vinha da colaboração com Stevie Wonder em “Ebony And Ivory” um ano antes, surgia como rival do nosso herói na disputa pela atenção de uma garota. O arranjo soft rock mostrava que Michael estava partindo do álbum anterior, “Off The Wall”, usando suas bases e aumentando seu alcance. Com o lançamento de “Thriller” em 30 de novembro de 1982, Jackson inundou as telas de TV do mundo, fornecendo material de sobra para a MTV transforma-lo em seu primeiro superastro (e o primeiro negro). A quantidade impressionante de clipes deu material de sobra para o canal a cabo americano. Vieram “Thriller”, “Billie Jean” e “Beat It”, que fundaram a base da linguagem videoclípica pelos anos seguintes. Como singles, estas canções deram as caras no início de 1983, mostrando que Jackson ainda teria fôlego por muitos meses a frente. E foi exatamente o que aconteceu.

 

 

Entre janeiro e novembro, Michael dominava totalmente a atenção da mídia, lançando um single por mês. “Billie Jean” veio em 3 de janeiro; “Beat It” em 14 de fevereiro. “Wanna Be Startin’ Something” chegou em 14 maio, enquanto “Human Nature” deu as caras em 3 de julho. Ainda veríamos o lançamento de “PYT” em 9 de setembro e da faixa-título em 12 de novembro, coroando todo o ano. Das nove canções de “Thriller”, apenas duas – ótimas faixas – não foram single.

 

 

“Thriller” faixa a faixa

 

1 – “Wanna Be Startin’ Something” – a abertura do álbum parecia continuar do mesmo ponto onde “Don’t Stop Til Get Enough” parara. Um funkão endiabrado e potencialmente perfeito, que deve ser ouvido com fones para se perceber o trabalho impressionante de Paulinho da Costa no meio das baterias eletrônicas e programação, usando de cuíca a chocalho. A citação a “Samba Makossa”, usada sem a autorização do autor, o jazzista camaronês Manu Dibango, rendeu um processo judicial.

 

2 – “Baby Be Mine” – uma lindeza pop soul, no melhor estilo Quincy Jones de produção, com melodia polida, arranjo maravilhoso e cheio de detalhes, sem falar na ótima interpretação de Michael, que era, sim, um baita cantor.

 

3 – “The Girl Is Mine” – o dueto com Paul é uma lindeza sem par. Os dois se alfinetam e se atacam pela atenção de uma garota em meio a um ranjo soft funk rock, cheio de detalhes construídos pelos craques no estúdio.

 

4 – “Thriller” – a faixa-título é um marco sonoro em seu próprio terreno, ainda que me pareça bombástica demais. É um clássico do pop intergalático, com narração aterrorizante do ator inglês Vincent Price e um instrumental cheio de detalhes fluidos.

 

5 – “Beat It” – a canção que tem Eddie Van Halen nas guitarras, tem um arranjo pop eletro-rock que dá inveja a qualquer um que tente fazer isso hoje em dia. Os riffs constantes são muito bacanas, a performance vocal de Michael se altera para um modo mais energético e mauzão, algo que não lhe cai muito bem, mas agrada ao fã mais afoito.

 

6 – “Billie Jean” – talvez o grande momento do álbum, minha preferida pessoal durante muito tempo. O arranjo é perfeito, lindo, exuberante, com detalhes sensacionais, especialmente o uso de cordas subindo a tensão da canção e a interpretação de Michael sobre um caso verídico, no qual uma fã lhe escreveu várias cartas dizendo que ele era o pai de uma criança.

 

7 – “Human Nature” – uma das gravações mais belas da carreira de Jackson, “Human Nature” foi incluída no álbum na última hora. A execução do arranjo e a composição da canção são creditados na conta do grupo americano Toto, que estava nas paradas de sucesso na época, por conta de seu disco “Toto IV”, que tinha, entre outros sucessos, “Africa” e “Rosanna”. Uma das melhores performances vocais de Jackson.

 

8 – “PYT (Pretty Young Thing)” – minha preferida do álbum nos últimos anos, e um funkão à moda Motown da época. Tem eletrônica nos adoráveis timbres de baixo e sintetizador, uma melodia matadora, um refrão perfeito, tudo se encaixando. Ação do músico e cantor James Ingram na autoria e arranjo.

 

9 – “Baby Be Mine” – um baladão clássico da velha escola, mostrando que Michael sabia exatamente de onde vinha e dando a certeza que “Thriller” era, sim, um álbum que tinha suas conexões claras no pop soul negro setentista, buscando uma aproximação com novos sons e, especialmente, com a audiência branca.

 

 

Por conta deste quadragésimo aniversário, a Sony e o espólio de Michael Jackson colocaram no mercado uma versão tripla do álbum, oferecendo, além das nove canções originais e remasterizadas, dez lados-B e rascunhos que ficaram de fora do disco e que, até agora, só haviam surgido em versões menores e péssimas. É especialmente legal ouvir “Starlight”, a canção que viria a se chamar “Thriller”, bem como as ótimas “Got The Hot”, “The Toy” e “Who Do You Know”. Fechando o pacote, 14 faixas entre remixes, versões alternativas e tudo mais que um fã pode querer.

 

 

Por mais que seja legal a lembrança, “Thriller” não precisa deste tipo de lançamento para mostrar seu valor. As nove canções originais compõem um mosaico perfeito do que poderia ser o pop em 1982, mas revela a dimensão maior que a vida que seu criador ganhou. Em canções irresistíveis como “Billie Jean” e a própria “Wanna Be Starting Something” é possível ver uma pessoa em início de paranoia, lidando com as pressões e o medo da vida e da fama. É possível dizer que “Thriller” encerra uma segunda fase na carreira de Michael (a primeira vai até “Destiny”, seu disco de 1978) e abre sua última fase, na qual a música começaria a perder terreno para outras questões, sobretudo no plano pessoal. Em “Thriller”, no entanto, Michael Jackson foi absolutamente perfeito. Perfeito.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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