Trinta anos da paixão segundo Peter Gabriel

 

No dia em que escrevo este texto, cinco de junho de 2019, o álbum Passion, de Peter Gabriel, completa trinta anos de seu lançamento comercial. O referido álbum contém a música que Gabriel preparou para The Last Temptation of Christ, filme de Martin Scorsese baseado em livro do escritor grego Nikos Kazantzakis que enfureceu cristãos no mundo todo porque ousou cogitar como seria o Jesus Cristo humano, casado e com filhos (o filme teve o mesmo efeito sobre os cristãos que o livro). Esta é uma das mais influentes trilhas sonoras das últimas três décadas. A quantidade de obras cinematográficas, séries de TV e propagandas que reproduziram e ainda reproduzem a sonoridade e os conceitos da banda sonora do polêmico filme do Scorsese em três décadas é incontável.

 

Houve um considerável intervalo de tempo entre o lançamento do filme nos cinemas, que aconteceu no dia 12 de agosto de 1988, e a publicação da trilha sonora em disco. A música que se ouve durante a exibição do filme não é exatamente a mesma que está no LP duplo, no CD ou na fita cassete editados em 1989. Gabriel tratou de burilá-la para que ela funcionasse independentemente do filme a que está umbilicalmente ligada. O que ouvimos em Passion é, em palavras rápidas, a mistura de sons atmosféricos e “futuristas” feitos por sintetizadores com ritmos étnicos, alguns deles existentes há séculos, que foi praticada por Peter Gabriel a partir do terceiro disco solo dele (de 1980, o famoso álbum que tem a cara derretida na capa).

 

A polêmica sobre apropriação cultural, ferida em carne viva dos estudos recentes sobre intercâmbios culturais entre países, acompanha desde sempre a trilha de The Last Temptation of Christ. Em Passion, Gabriel lança mão de referências musicais do folclore de países terceiro-mundistas para evocar a época remota em que Cristo viveu (ou teria vivido, pois há quem duvide, com algum grau de legitimidade conferido pela análise de indícios históricos, que tal homem tenha mesmo existido). Por conta da severa discussão sobre apropriação cultural, Passion não é universalmente reconhecido como obra-prima: embora largamente admirado, há quem diga que Gabriel roubou o som e as ideias de outros músicos para atender à demanda de Scorsese. Além do óbvio comentário sobre imperialismo, gerado pelo uso dos ritmos e da música de países africanos, asiáticos e latino-americanos por um abastado roqueiro inglês, há quem afirme que o ex-vocalista do Genesis tomou para si – sem pedir licença – conceitos e práticas musicais desenvolvidos anteriormente por artistas como Brian Eno e como os do selo ECM (gravadora de jazz fusion muito popular nos anos 1970).

 

Jon Hassell, compositor e trompetista dedicado desde sempre à pesquisa das possibilidades de fusão dos sons étnicos com expressões musicais contemporâneas, foi um dos que acusaram Gabriel de oportunismo e de assenhoreamento indevido das ideias e criações alheias. Em 1980, Hassell lançou, em parceria com Brian Eno, Fourth World Vol. 1: Possible Musics, álbum que funde música eletrônica com percussão africana (e brasileira, pois o saudoso Naná Vasconcelos participou do disco). Trata-se de um belo trabalho de música pop experimental que, diga-se, informou Gabriel: pelo menos duas faixas de Passion soam como se tivessem sido compostas e gravadas tendo como molde as composições que figuram no disco de Jon Hassell e de Brian Eno. Plágio? Não. Influência evidente? Com certeza.

 

O fato curioso é que Jon Hassell participou, com seu trompete, da faixa título da trilha urdida pelo Gabriel para o filme do Scorsese. Passion, o tema, é o coração da música concebida por Gabriel para o filme, pois sonoriza a dolorosa sequência da crucificação. É uma gravação de beleza singular e pungente e de grande dramaticidade, que conta com a participação de músicos excepcionais como o percussionista brasileiro Djalma Corrêa e os cantores Baaba Maal e Nusrat Fateh Ali Khan (esse tinha uma voz sagrada).

 

Será que Jon Hassell devolveu o dinheiro que recebeu pela sessão de gravação de Passion? Por que deveria, se trabalhou para recebê-lo? Talvez a crítica aberta de Hassell a Gabriel tenha a ver com algo que aconteceu entre os dois enquanto estavam juntos. Tudo isso é especulação. O fato é que a noção de invenção na música pop é bastante fluída. Claro que a noção de autoria persiste, sobretudo do ponto de vista jurídico. Gabriel assina a trilha de The Last Temptation of Christ como principal autor, mesmo usando música preexistente e, talvez, incorporando no resultado final algumas contribuições criativas dos músicos que convocou para as sessões de gravação (Miles Davis e outros líderes de bandas de jazz não titubeavam na hora de assumir a autoria de composições resultantes de improvisações coletivas no estúdio). Dividir generosamente créditos com colaboradores é prática bastante rara em um meio como o da música pop, que valoriza o culto aos indivíduos.

 

Não há como impedir a miscigenação cultural e musical (isso nem é desejável) resultante da superafluência de informação. Músicos populares copiam uns aos outros em um sistema que se alimenta de si mesmo (“Pop Will Eat Itself”, lembram disso?) e de tudo mais que estiver ao seu alcance. Assim são os processos da cultura industrial, com todas as contradições e benefícios que isso pode implicar.

 

A cultura pop (e a arte como um todo?) parece ser um daqueles terrenos pantanosos em que os fins, quando relevantes do ponto de vista estético ou social, justificam os meios. Às vezes, na esfera pop, a cópia pode ser mais bem-sucedida que o original, tanto da perspectiva comercial quanto da estética (não me peçam para dar exemplos agora, eu poderia encher várias páginas com eles). Este fato não exime artistas e agentes culturais da responsabilidade moral ou legal por seus delitos criativos. Porém, muitas das “invenções” pop creditadas a artistas ou agentes específicos têm origens difusas: quem “inventou” o punk inglês? Foi o Malcolm McLaren? Claro que não, embora várias ações espertas (conceituais?) e, sim, oportunistas de McLaren como empresário dos Sex Pistols tenham contribuído decisivamente para a difusão planetária do punk inglês. As conseqüências (positivas e negativas) dessa difusão podem ser vistas e sentidas ainda hoje, mais de três décadas depois do lançamento de Never Mind The Bollocks, Here’s The Sex Pistols.

 

Não é justo dizer que Peter Gabriel “inventou” o mix de eletrônica com ritmos étnicos, mas é certo que ele foi (ainda é) um dos mais bem-sucedidos proponentes dessa fusão. Passion, a trilha de The Last Temptation of Christ, é, talvez, o mais conspícuo de todos os produtos dessa linha de investigação musical, o disco que cristalizou a tendência, que a tirou do underground, deu-lhe visibilidade e revelou as suas melhores possibilidades criativas.

 

A despeito de toda polêmica que gerou e continua a gerar, Passion é um álbum belo e único. Produto de diferentes fontes de inspiração, algumas assumidas por Gabriel no álbum “irmão” de Passion, a coletânea Passion Sources, que reúne gravações que influenciaram o compositor na formulação da banda sonora do filme de Scorsese, o disco que completa trinta anos hoje é uma obra de referência que informa compositores populares de todo o mundo e contribui para a continuidade do processo de troca cultural a que deve sua própria existência. Esse prestígio tem efeitos negativos também: desde que foi lançado em 1989, Passion tem servido de modelo para discos de new age criados por músicos que, por diferentes razões, não procuram entender a origem das fontes e buscam anular a tensão interna da música proposta por Gabriel e, por isso, reduzem tudo a uma superfície sonora prazerosa e inócua. A razão para essa abordagem superficial da música talvez resida na acessibilidade de algumas melodias que encontramos em Passion – Gabriel é, antes de tudo, um artífice pop. Passion é, afinal, um álbum pop ousado, abrangente, desafiador (para ouvidos não acostumados com música étnica) que não perdeu força nestes trinta anos em que circula livremente pelo mundo.

 

Zeca Azevedo

Zeca Azevedo é. Por enquanto.

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