A escolha pela morte

 

A abertura dos shoppings no Rio e em São Paulo, ocorrida ontem, mostra que uma escolha foi feita na pandemia de covid-19. Após meses de uma queda de braço inacreditável entre as esferas do Executivo – federal, estadual e municipal – que gerou um cenário de caos e morte, o Brasil reafirma a sua postura diante da crise, que é, nada mais, nada menos que, fingir que nada acontece. Desde o início da pandemia, nunca foram tão altos e graves os números de casos e mortes, sem mencionar a constante subnotificação, que já se tornou uma tradição nacional. As pessoas optaram pela negação do fato, pela pura e simples presunção de que está tudo bem, que o “novo normal” vai impedir o pior. A partir disso, a postura desleixada e nada empática durante o isolamento vai, aos poucos, se transformando em picos altíssimos de não-empatia. Outros estados e cidades reabriram parte do comércio também.

 

As filas nos shopping-centers comprovam isso. O que estas pessoas têm tanto para consumir num lugar como este? O que lhes faltou durante estes dois, três meses que justifica as aglomerações e filas registradas ontem? Hordas em desespero para reafirmar sua condição de consumidoras na sociedade? Querendo, como disse uma amiga minha no Instagram, comprar uma almofada de lantejoula na Riachuelo? Tomar uma casquinha no McDonald’s? Comer um hamburguer artesanal com cerveja importada? O consumo dos nada-essenciais, dos signos representativos da condição pura e simples de consumidor, esta instância tão inerente ao neoliberalismo, que diferencia as pessoas aos olhos … de quem pensa assim. E só. Esta é a razão.

 

Sim, porque, a meu ver, estas pessoas nos shoppings conduzem um balé da morte, mas nada solene ou sofrido, como se não lhes restasse outra opção a não ser o risco de vida por víveres. É uma dança escolhida, na qual governos e cidadãos – de bem – bailam à beira do precipício, caindo em seguida, rumo a uma morte nada honrosa. É a escolha cega pelo direito de ficar doente em nome de um milkshake crocante, de um frasco de perfume em promoção no Boticário. Ou na Natura.

 

A gente costumava ouvir na faculdade que o consumo é um dos signos do neoliberalismo. Que ele é um índice de aceitação e existência em sociedade, para muita gente. Este consumo não inclui o essencial, é justamente na opção pelo supérfluo que está a perversidade da coisa. A partir daí, surge o ato que, em última instância, dá mais valor a um hamburguer do que a uma vida humana.

 

Notem bem que eu não havia falado até agora em carência de testes para covid-19, em leitos de UTI, em governo federal, em nada disso. As pessoas que estão nos shoppings, com máscaras no queixo, são as mesmas que foram aos mercados estocar papel higiênico ou que aplaudiram profissionais de saúde na sacada de suas casas. É gente que não tem – porque não compreende tal sentimento – qualquer empatia. Que acha que a sociedade existe para lhes servir e ponto final.

 

Se o país fizesse uma opção pela quarentena, com seriedade, cuidado e união, teríamos atravessado o pior e talvez estivéssemos próximos de uma normalidade. Mas, em vez disso, negligenciamos a situação, achamos que “tudo ia se acertar”, que “ia passar”, e outros slogans. Daí veio o “novo normal” e uma série de improvisos, roubos, erros, confusões. O preço vem sendo pago diariamente, aos milhares. E ainda vai piorar.

 

Dados de consultorias internacionais apontam que, se nada for feito, o Brasil vai ser o país com mais mortos no mundo já em julho, daqui menos de 20 dias. E quem se importa, né?

 

Fiquem em casa. O perigo está lá fora, forte como nunca.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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