“Surrender”, escrito por Bono, ajuda a separar criador e criatura

 

 

 

Existe uma anedota, na qual um sujeito fã de rock morre e vai parar no além. Encontra um ídolo, Jimi Hendrix, e vai progressivamente ficando mais maravilhado ao rever cada músico que partiu antes do seu tempo. “Caramba, Elvis! Olha lá, Janis Joplin e Brian Jones! Nossa, Miles Davis e Amy Winehouse!”

 

Até que avista uma figura em couro preto, óculos escuros e cabelo tingido, dançando com gestos exagerados e ensaiados. “Peraí, Bono?! Mas ele não morreu…”. “Não”, interrompe Hendrix, “esse aí é Deus, ele só acha que é o Bono”.

 

 

 

Conheço essa historinha por quase tanto tempo quanto gosto do U2. Passei a acompanhar a banda mais intensamente quando decidiram transformar uma trajetória que buscava uma certa honestidade de discurso, muitos diriam messiânica, em um genial teatro que ironizava, com um megafone, as incongruências do megaestrelato. Era a fase dos discos Achtung Baby (1991), Zooropa (1993) e Pop (1997). Como muitos fãs da minha geração, e os anteriores, que amam a banda desde Boy (1980) e October (1981), me equilibro nos últimos anos entre a admiração – ou raiva – com eventuais novas canções e a dúvida sobre se o grupo ainda tem alguma lenha de qualidade para queimar.

 

 

Provavelmente, as maiores fraturas nessa relação entre Bono, Edge, Adam e Larry, e o seu público, surgiram no momento em que o vocalista passou a levar um pouco mais a sério, aos olhos de muita gente, a piada que abre este texto. Foi lá pelo finzinho dos anos 1990 e por boa parte da década seguinte que Bono se envolveu ativamente no ativismo social, primeiro como parte do grupo do Jubileu 2000, que pleiteava o perdão das dívidas dos países em desenvolvimento, e depois na campanha pela erradicação e combate ao vírus HIV em nações do continente africano.

 

 

Foram momentos divisivos tanto na maneira como o U2 era percebido, como na forma como Bono passou a ser rotulado, desde um modelo inspirador até acusações de demagogia, hipocrisia e egolatria. É uma regra curiosa no mundo pop: falar e cantar sobre fraturas sociais e exclusão atrairá muita gente que partilha dos seus ideais. Cruzar a linha para ações concretas, alardeando em bom volume, já não é tão bem visto.

 

 

Esse processo acabou por fazer de Bono uma das figuras mais execradas da música atualmente. Também não ajuda o fato de ele ter protagonizado, junto com a banda, uma das maiores lambanças do marketing musical, o lançamento do disco Songs Of Innocence (2014), incluído à revelia em todas as discotecas virtuais de usuários da loja da Apple. No termômetro das redes sociais, uma menção ao cantor dispara um número quase igual de comentários favoráveis e detratores. Muitas das vezes, esses últimos ganham a disputa.

 

 

Mas é em Surrender: 40 Músicas, Uma História (edição nacional pela Intrínseca, com tradução de Rogério Galindo), seu livro de memórias lançado no final de 2022, que Bono finalmente encontra um espaço extenso suficiente, muito além das letras das músicas e das entrevistas, para abrir cabeça e coração de uma maneira surpreendente e que soa honesta. Composto por quarenta capítulos, cada um nomeado e precedido por um trecho de uma música do U2, o livro não segue uma sequência cronológica muito rígida, embora tenha uma linha condutora de ponto a outro, e nem se dedica a desvendar segredos ancestrais das músicas e dos bastidores da banda.

 

 

Isso não impede que o fã ardoroso e o ocasional encontrem muitas pepitas por ali, como detalhes de sessões de gravações, os mecanismos das relações da banda com os produtores e o empresário-guardião Paul McGuiness e os questionamentos que levaram a composições de canções emblemáticas. Leia atentamente e terá vislumbres das engrenagens funcionando. Spoiler nada revelador: o guitarrista The Edge é mesmo o cara.

 

 

Nascido Paul Hewson em 1960, em um bairro da classe trabalhadora irlandesa, filho de pais católicos e protestantes em uma Irlanda dividida, Bono construiu com a banda uma trajetória que pode ser resumida por um certo grau de inquietação artística. Praticamente de álbum a álbum, e até a primeira década dos anos 2000, de maneiras mais ou menos intensas, o U2 trazia alguma mudança de direção para sua música. Mantendo essa busca interminável como a espinha do livro, o cantor vai juntando e revelando as peças que o formaram. A raiva após o falecimento da mãe, morta quando ele tinha 14 anos, a difícil relação com seu pai, abrandada somente após alguns anos, a busca por alguma verdade na arte e na música.

 

 

E parece ser ela, a verdade, o centro das coisas que Bono tem a dizer. Ele soa honesto nesses passeios pela memória, inclusive nos relatos das trapalhadas e equívocos que cometeu pelo caminho. Por diversas vezes, se descreveu como a “ambição cega” da banda, e em Surrender descreve os pormenores do que isso significa. São muitos os movimentos em busca de relevância, de fazer a banda transmitir uma essência que parece somente alcançável através da constante destruição e reconstrução da própria natureza. Bono admite como isso pode ser cansativo para as pessoas próximas a ele, para o próprio U2 e também para os fãs. Quando se apercebe dessas confissões, o leitor está fisgado, porque o livro é muito eficiente em fazer o recorte do homem atrás do rockstar, desconfortável e em dúvida sobre o lugar onde está.

 

 

Os gigantes que ajudaram Bono a montar sua mitologia pessoal são referendados, a poesia de W.B. Yeats, a criação seminal de Bob Dylan e David Bowie, este transbordando durante a fase noventista da banda. E aquele outro cara, Jesus, e a religião cristã. A espiritualidade costura Surrender e pode surpreender muita gente a desconfiança que Bono demonstra em relação às religiões como instituições. Embora a fé cristã tenha quase separado a banda entre o primeiro e o segundo discos, Bono se mostra mais próximo da reflexão religiosa em si, algo como um cristianismo primordial, do que da presença organizada da religião.

 

 

Ele dedica palavras sempre carinhosas aos amigos, companheiros de banda e parentes, e longas passagens para sua relação com a esposa de quarenta anos, praticamente o mesmo tempo de carreira do U2, Ali Stewart, que conheceu ainda na escola. São divagações sobre o amor e os relacionamentos que não diferem muito das que eu e você temos todos os dias, mostrando um sujeito em busca de núcleos emocionais, centros de estabilidade para equilibrar as insatisfações que o seguem constantemente.

 

 

O ativismo político talvez seja no livro um dos aspectos que oferecem maiores surpresas para os leitores, oferecendo histórias de bastidores que são mais desconhecidas do que aquelas da carreira musical. É também onde Bono mais abraça as críticas à sua atuação, reconhecendo o papel de “homem branco salvador” que assumiu inadvertidamente, e fala do pragmatismo nas relações com políticos e empresários que eram, para o jovem idealista dublinense da década de 1960, o rosto do inimigo.

 

 

Demonstra também o que aprendeu com esse processo, quando troca a noção de que os países ricos são os principais responsáveis por corrigir as desigualdades do mundo, pela ideia que aprendeu através de um ditado senegalês, algo como “quando for cortar o cabelo de um homem, certifique-se de que ele esteja presente”. Talvez isso explique porque hoje o cantor prefere exercer a advocacy das causas sociais mais através das organizações que ajudou a fundar, com membros vindos de países e culturas diversas, do que utilizando ativamente a sua imagem e a da banda nas campanhas.

 

 

Por essa época foi gravado e lançado o disco How To Dismantle An Atomic Bomb (2004), cujo papel como retrato desse período de ativismo intenso passou meio batido. Enquanto a temática política parece gasta em canções como Love And Peace Or Else, outras faixas, como Miracle Drug e Crumbs From Your Table, ganham muito em contexto com a leitura das memórias.

 

 

Surrender começa com a quase morte de Bono, com a descoberta de um problema congênito no coração que o levou a uma cirurgia de emergência em 2016. O turbilhão emocional que o acompanhou desde a juventude parece acalmado após esse episódio, embora ele só fale sobre isso nos últimos trechos do livro, que são mais expressionistas, narrando com certo lirismo momentos com a banda no palco e o seu próprio nascimento.

 

 

Sendo o motor emocional do U2 e, confirmamos agora, o grande responsável pelas guinadas estéticas da carreira, essa talvez inédita calmaria que ele parece sentir deixa bastante curiosidade sobre os próximos passos da banda, na sua quadragésima década de trabalho. O que virá de um U2 talvez livre do peso de se provar sempre a maior banda de rock em atividade? Quem sabe essa autoimposição finalmente abandonada permita Bono e a banda ousarem mais, ousarem novamente, algo pelo qual muito fãs anseiam já a alguns álbuns.

 

 

E para quem se desencantou em alguma medida com o U2 e com Bono, o livro funciona para reacender essa relação. Ele permite furar a camada de infalível e gigantesco que o grupo criou sobre si, e revela o seu cantor como um cara que parece mesmo acreditar no que faz, e em fazer com honestidade. É claro que uma banda desse porte, com estratégias de marketing milionárias e vorazes não está mais no mesmo patamar de gana e ingenuidade que um grupo de garotos atrás do primeiro sucesso, mas o que atraiu tanta gente na trajetória de Bono e do U2, tanto amor trocado, parece que não foi em vão.

 

 

Em tempo: este texto estava escrito quando o U2 anunciou o lançamento do seu novo trabalho para 17 de março de 2023. Songs Of Surrender trará quarenta canções do repertório dos caras “reimaginadas e regravadas”, algumas com novas letras, uma espécie de companhia para as memórias do cantor. Não é bem o que esperávamos a respeito de novos movimentos vindos da banda. O material divulgado até agora mostra versões semi-acústicas pálidas em comparação com as faixas originais, sugando a urgência das canções. Esperamos que seja um último movimento dessa fase de reflexões. Ou mesmo uma forma de manter a banda ativa enquanto o baterista Larry Mullen Jr. se submete a operações para corrigir problemas de saúde que o impedem, no momento, de tocar ao vivo.

Fabio Luiz Oliveira

Fabio Luiz Oliveira é historiador e crítico da Arte não praticante. Professor da rede pública do Rio de Janeiro. Escritor sem sucesso, espanta o mofo de seus textos em secandoafonte.wordpress.com

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