Um abraço pro Tom Verlaine

 

 

Ao contrário da maioria de fãs brasileiros de Tom Verlaine e de sua banda, Television, meu primeiro contato com sua obra se deu de forma diferente. Não foi ouvindo “See No Evil”, “Venus” ou “Marquee Moon”, ambas faixas mais conhecidas do primeiro álbum de estreai do Television, lançado em 1977. Também não foi ouvindo “Days”, do álbum seguinte do grupo, “Adventure”, do ano seguinte. Tampouco foi ouvindo “Kingdom Come”, de sua autoria, presente em seu primeiro álbum solo, de 1979, na versão cantada por David Bowie – que gravaria uma releitura dela em “Scary Monsters”, do ano seguinte. Nada disso. Quem me apresentou a obra de Verlaine foi … Herbert Vianna.

 

 

Está lá: no primeiro álbum solo do Paralama, “Ê Batumaré”, lançado em 1992, repousa uma bela e oblíqua cover de “The Scientist Writes A Letter”, composta e gravada por Verlaine em 1987, parte integrante de seu álbum “Flash Light”. É um dos trabalhos “esquecidos” do mestre, mas que Vianna certamente ouviu, provavelmente no mesmo tempo do lançamento, algo bem raro no Brasil do fim dos anos 1980,  deserto de álbuns importados, com indústria de CDs incipiente e tateando numa penumbra informativa sobre música que dava pena. Só estava disponível no mercado a revista Bizz, que, cumprindo seu papel informativo, deu destaque para a estreia do Television, “Marquee Moon” na seção Discoteca Básica em maio de 1987, com um texto escrito por Celso Pucci.

 

 

 

 

A coincidência do lançamento de “Flash Light” e o texto de Pucci serem do mesmo ano talvez dê uma pista de que, mesmo em meio ao superpoprock dos anos 1980, no qual Madonna, Phil Collins, Michael Jackson, U2 e até um surpreendente Peter Gabriel davam as cartas, os velhos ídolos, dos mais conhecidos aos mais low profile, continuavam produtivos, à espera dos anos 1990, que conferiria valor a muitos deles, de Brian Wilson, Mutantes e Abba, passando até por Alex Chilton, só para citar alguns. O fato é que Verlaine falava por meio de discípulos, especialmente gente como Sonic Youth, que havia assimilado sua influência de melodia, existencialismo e ataque punk, devidamente contidos na simbiose quase esquisita, quase genial de sua voz e guitarra.

 

 

Uma primeira audição na obra dos Paralamas não apontaria essa presença de Verlaine na sonoridade da banda, mas, em “Ê, Batumaré”, o disco experimental e “independente” de Herbert, havia espaço para praticamente tudo, uma vez que estava livre do compromisso com o sucesso. Sendo assim, havia desde influências de João Cabral de Melo Neto e Zé Ramalho à então vigente Rio-92, tudo isso num Brasil pós-impeachment de fernando collor. Neste contexto, cabe, sim, uma releitura de Tom Verlaine e a canção escolhida, “The Scientist Writes A Letter” é a prova dessa falta de compromisso com o sucesso por parte de Herbert.

 

 

 

A letra é seca e duríssima, mostrando uma carta de despedida desprovida de qualquer sentimento, enviada por um cientista para alguém que parece ser uma ex-esposa, uma ex-amiga ou até uma filha, cujo nome é Júlia. A versão de Vianna omite este nome, mas o original a cita explicitamente, dizendo que este sujeito, um cientista, está em algum lugar, com outros, fazendo “coisas de cientista”, e reclama do frio, pedindo que lhe seja enviado um casaco. Enquanto faz este pedido, ele relata que a temperatura está muito baixa, que as árvores estão com as copas cobertas de neve e até chega a avisar que estas palavras escritas serão as últimas que enviará para a destinatária. Ao fim, um solo esfuziante, incandescente, meio David Gilmour, meio qualquer coisa celestial.

 

 

A versão de Herbert procura manter o tom desolador do original, conseguindo um resultado bastante digno. Claro que a voz dele não tem qualquer semelhança com o registro peculiar de Tom, algo entre o lamento e o desespero quase gritado, mas, foi com ela que descobri quem era Tom Verlaine, assim que tive chance, fui atrás do que tinha feito. A próxima parada foi a duplinha de discos do Television, “Marquee Moon” e “Adventure”, mas aí já é uma outra história.

 

 

A morte de Tom e essas lembranças de um passado que já não é mais recente – o álbum de Herbert foi lançado há incríveis 32 anos – são provas inequívocas do transcorrer do tempo. Se há até poucos anos, éramos meros espectadores disso, protegidos por uma juventude que era fugidia, mas que ignorávamos, agora somos quase-velhos vendo nossos ídolos e referências sendo tragados pela morte. Tudo bem que uma parte de nós sabe que suas obras ficam como legado para quem permanece, porém, nós, quase-velhos, ainda damos valor à presença, à permanência física, sei lá, à tangibilidade. Que Tom Verlaine e outro monstro da guitarra Jeff Beck, sigam conosco, de alguma forma. Quanto ao êxodo do século 20, precisamos nos preparar porque ele nos levou Pelé, Erasmo Carlos, Gal Costa, David Crosby, Vivienne Westwood, Jeff Beck e Tom Verlaine, entre outros, nos últimos dois meses. E vem mais por aí.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

2 thoughts on “Um abraço pro Tom Verlaine

  • 29 de janeiro de 2023 em 18:34
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    Incrível que essa história narrada por Tom Verlaine coincide um pouco com algo da biografia de David Gilmour: num documentário que se encontra no YouTube, produzido por uma TV inglesa, David conta que seus pais eram professores universitários e, na sua adolescência, ambos deixaram os filhos aos cuidados de familiares (tios, avós), para seguirem carreira acadêmica nos EUA! O próprio David lamenta que sua relação com os pais foi muito fria e pouco afetiva daí em diante!

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    • 30 de janeiro de 2023 em 01:03
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      Rapaz, que coincidência, hein? Obrigado pela informaçao.

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