Johnny Nash – 1940-2020

 

 

Conhecido mundialmente como o autor e intérprete original do sucesso “I Can See Clearly Now”, de 1972, o cantor norte-americano Johnny Nash – falecido nesta terça-feira aos 80 anos, em Houston, Texas – foi muito além de um “one hit wonder”. Ele protagonizou uma das guinadas artísticas mais surpreendentes da história da música pop ao ser um dos primeiros nomes de fora da Jamaica a abraçar e divulgar o reggae, e em especial a obra de seu amigo Bob Marley, o que eclipsou sua trajetória pregressa de promissor ator-cantor jovem de R&B em seu país.

 

A guinada se deu mais ou menos na virada de 1966 para 1967, quando Nash conheceu Marley cantando com seu grupo numa festa em Kingston, na Jamaica. Foi um encontro que mudou tudo para ambos. E que marcaria um recomeço para o texano, uma nova oportunidade de colocar a carreira artística nos trilhos. Bonito, carismático, de sorriso permanente e voz doce, Nash tinha tudo para ser um superastro. Porém, sua personalidade discreta, reservada, alheia aos holofotes fez com que seu nome sempre se esvaísse logo após alcançar o sucesso.

 

Primeiro houve o Johnny Nash crooner pop adolescente, na segunda metade dos anos 1950, quando o garoto de Houston, filho de um chofer e que começara a cantar em corais de igreja, passou a se dedicar a um repertório de rhythm & blues e standards, que incluía canções como “A Very Special Love” (sucesso anterior na voz de Doris Day) e “A Teenager Sings The Blues”, ou mesmo “The Teen Commandments”, em que dividia os vocais com Paul Anka e George Hamilton IV. Com sua voz suave de tenor, era visto como uma resposta a Johnny Mathis.

 

Experimentando certa popularidade no fim daquela década, Nash logo foi atraído pelas telonas, caminho natural de todo astro pop jovem da época. Em 1959 estrelaria “Take a Giant Step”, filme que teve lançamento protelado pela censura e gerou controvérsia num país ainda a alguns anos do auge dos movimentos pelos Direitos Civis. Nele, Nash interpretava um estudante negro que questionava o ensino racista da história norte-americana. A obra não foi sucesso de crítica, mas sua atuação foi elogiada, e ele seria premiado no festival de Locarno, na Suíça.

 

No início dos anos 1960, Nash ainda dividiria as telas com o também ascendente Dennis Hopper no filme “A Testemunha Chave”, mas logo sua carreira artística começou a patinar. E justo no momento em que o pop jovem e negro da Motown estourava de maneira avassaladora no país, ele parecia já ter saltado do bonde do estrelato. A despeito do sucesso do single “Let’s Move And Groove Together”, que alcançaria o quinto lugar na parada de R&B da Billboard em 1965, Nash tinha como prioridade cuidar do selo JAD Records, que criara com o amigo Danny Sims.

 

E seria o JAD que o levaria à Jamaica: quando a gravadora se encontrava na iminência de ter a falência decretada, Sims convenceu o amigo a se mudar com ele para a ilha, onde atuariam promovendo artistas norte-americanos no país. Acabou acontecendo exatamente o oposto: maravilhado com a sonoridade local, Nash fez amizades e se embrenhou na cena. E de lá emergiu com um single fabuloso, contendo a malemolente “Hold Me Tight” (da própria lavra) no lado A e uma versão para “Cupid”, de Sam Cooke, do outro lado do disquinho. Foi um estouro.

 

Acompanhada por uma dancinha eternizada num proto-videoclip da época e repetida durante as aparições de Nash em programas de televisão, “Hold Me Tight” chegou ao quinto posto da parada pop norte-americana, feito notável para um mercado muito esquemático e segmentado, onde o reggae era um gênero virtualmente desconhecido. Já no Reino Unido, país bem mais familiarizado com o ritmo desde aquela época, o sucesso foi duplo: o lado A repetiu o quinto lugar em setembro de 1968, enquanto “Cupid”, relançada separadamente mais tarde, subiu até o sexto posto.

 

 

Apresentando ao público mundial o reggae em suas diferentes vertentes, como o rocksteady e o mais “romântico”, por assim dizer, lovers’ rock, “Hold Me Tight” ainda alcançaria o topo da parada canadense e reverberaria até no Brasil. E com Nash emprestando sua sensibilidade soul/R&B ao subgênero do ritmo jamaicano, era difícil resistir ao apelo do cantor texano. Mas ainda havia outras novidades no LP vindo na esteira do compacto e que levava o mesmo nome de seu novo sucesso, lançado internacionalmente ainda naquele ano de 1968.

 

No álbum, dividindo o vinil com “Hold Me Tight”, “Cupid” e uma quase etérea regravação de “Groovin’”, sucesso então recente dos Young Rascals, havia duas composições (“Love” e “You Got To Change Your Ways”) de outro artista que ajudara Nash a entrar em contato com a cena local: um certo Peter Tosh. Ao longo de 1969, Nash teria outro hit no Top 10 britânico (“You Got Soul” chegaria ao sexto lugar em fevereiro) e mais LPs com seu nome seriam lançados – incluindo um curioso álbum natalino gravado na Jamaica e outro em dueto com Kim Weston.

 

Já no ano seguinte, ele retomaria brevemente sua carreira cinematográfica de maneira inusitada: protagonizando na Suécia o filme “Vill så gärna tro”, em que interpretava um professor de balé norte-americano por quem uma aeromoça sueca (papel de Christina Schollin) se apaixonava. Para pontear esse romance inter-racial, uma trilha sonora igualmente curiosa composta em parte por Nash e Bob Marley – arrastado pelo amigo para compor, gravar e excursionar pela Escandinávia – e que trazia arranjos de cordas de Fred Jordan sobre uma base reggae.

 

Lançado no fim de 1971, o filme teve repercussão discreta e críticas desfavoráveis mesmo na Suécia e permaneceu como apenas um elemento pitoresco na carreira do cantor-ator texano. Mas aquela travessia do Atlântico se tornaria fundamental quando, de Estocolmo, Johnny, Bob e toda a trupe seguiram para Londres. Nash gravaria um álbum para a CBS, do qual tomariam parte músicos jamaicanos e alguns integrantes do combo escocês de r&b/funk Average White Band. E Marley, abordado por Chris Blackwell, assinaria contrato com a gravadora Island.

 

Na Suécia, Nash rascunhara uma canção que tomaria forma definitiva nas sessões londrinas. Uma composição que cairia como um bálsamo naquele turbulento início dos anos 1970, em meio a tensões políticas, conflitos de toda ordem, desastres naturais e a grande ressaca do sonho hippie. Mas que, diz a lenda, teria sido motivada por uma cirurgia de catarata feita pelo cantor texano. Era “I Can See Clearly Now”, faixa que batizaria o novo álbum e que escalaria a parada norte-americana até ocupar o primeiro lugar por todo o mês de novembro de 1972.

 

O primeiro compacto extraído do álbum, porém, era uma canção de Bob Marley eternizada mais adiante na interpretação de seu autor, mas que recebeu um tratamento não menos que brilhante da parte de Nash. A gravação do texano para a sensual “Stir It Up” na versão editada em single no início de 1972 é um épico, quase um “wall of sound” reggaeiro pelo rebuscamento do arranjo (com percussão, flautas, metais e cordas pairando sobre o quarteto guitarra-baixo-teclado-bateria) e também pelo vocal impregnado de alma (soul) de Johnny Nash.

 

 

Décima-terceira colocada na parada britânica de singles no fim de abril de 1972, “Stir It Up” era também a faixa que abria o álbum e uma das quatro composições de Bob Marley incluídas. Uma era a parceria com Nash “You Poured Sugar On Me”. As outras, só dele, eram a delicada “Guava Jelly” e “Comma Comma”. Embora estourasse primeiro no Reino Unido, permanecendo por cinco semanas no Top 10 entre julho e agosto, “I Can See Clearly Now” alcançou posição inferior na parada inglesa em comparação com a norte-americana, ao estacionar no quinto lugar.

 

O último single extraído do LP (que chegou a ser lançado no Brasil na época pelo selo Epic) foi a pungente “There Are More Questions Than Answers”, composição de Nash que fechava o álbum e trazia um belíssimo solo de pedal steel guitar. Novamente alcançou o Top 10 britânico, ficando na nona posição no fim de outubro de 1972. Seria seu último sucesso em três anos: os dois álbuns seguintes – “My Merry-Go-Round”, de 1973 (que incluía outra canção de Bob Marley, “Nice Time”), e “Celebrate Life”, de 1974 – teriam repercussão bem mais discreta.

 

Seu novo ponto alto viria em 1975 com o álbum Tears On My Pillow, uma produção de luxo que trazia na ficha técnica – entre dezenas de músicos tarimbados da cena de reggae inglesa – nomes como Bunny Sigler (compondo em três faixas e produzindo outras três), Bobby Womack, Herbie Hancock, Hugh Masekela e as vocalistas Betty Wright e Madeline Bell. Bob Marley voltou a contribuir, desta vez com duas faixas: “Reggae On Broadway” e “Mellow Mood”. Mas o maior sucesso foi mesmo a faixa-título, que levou Nash ao topo no Reino Unido pela única vez.

 

A canção do jamaicano Ernie Smith, um baladão reggae de refrão irresistível com direito a parte declamada no meio como nas velhas canções R&B, ocupou o primeiro posto da parada britânica na semana de 12 de julho de 1975, destronando “I’m Not In Love”, do 10cc – e sendo ultrapassada em seguida pelos Bay City Rollers, fenômeno pop juvenil do país na época. Mas permaneceria no Top 10 entre o fim de junho e o início de agosto, embalando aquele verão na ilha e rendendo a Nash diversas aparições em programas musicais por toda a Europa.

 

No ano seguinte, uma delicada regravação para outro velho sucesso de Sam Cooke, “(What A) Wonderful World”, ainda teria alguma repercussão. Mas os anos seguintes seriam como aquele início da década de 1960, de progressiva retirada dos palcos e telas. Houve um breve retorno ensaiado com o álbum Here Again, de 1986, que gerou o hit “Rock Me Baby” (ainda hoje tocado com alguma frequência na Antena 1 carioca). Mas aquele seria seu último lançamento – ainda que seu nome voltasse a ser relembrado no início da década seguinte.

 

 

 

O grande êxito da regravação de Jimmy Cliff para “I Can See Clearly Now”, incluída na trilha sonora do divertido filme “Jamaica Abaixo de Zero”, sucesso de bilheteria em 1993, despertou de novo o interesse pela versão original, que passou a ser incluída em diversas coletâneas temáticas com hits de outras épocas. Desde seu lançamento, há 48 anos, a canção que eternizaria Johnny Nash na história da música pop mundial rendeu diversos covers dos mais variados artistas, de Ray Charles e Donny Osmond aos grupos Soul Asylum e Hothouse Flowers.

 

Somente na metade dos anos 2000 Nash voltaria ao noticiário por seu envolvimento com música, ao iniciar por conta própria um trabalho de digitalização de suas gravações antigas num estúdio em Houston. O homem de quem Bob Marley dizia que “cantava como um pássaro” morreu de causas naturais ao lado da família no rancho em que viviam em sua cidade natal. Deixou esposa e um casal de filhos, além de uma imensamente subestimada contribuição para a música pop, mesmo que nunca tivesse se preocupado em ostentá-la.

 

Abaixo segue uma playlist bonitinha com uma seleção das melhores gravações de Johnny.

 

 

Emmanuel do Valle

Emmanuel do Valle é jornalista profissional e pesquisador diletante, não necessariamente nessa ordem.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *