Sepultura em 1993 – Alquimia no Metal

 

 

Chaos A.D. é o quinto álbum da banda Sepultura, lançado em setembro de 1993. Portanto, ele acaba de completar seus 30 anos, apenas um dos motivos que o fazem merecer um comentário. As músicas registradas por Max e Igor Cavalera, Paulo Jr. e Andreas Kisser foram um marco no trajeto da banda, na história do heavy metal e na relação do quarteto e do gênero com o Brasil.

Chaos A.D. deu continuidade à linha ascendente com que a Sepultura desenhava sua história. Álbum após álbum, a banda formada em Belo Horizonte conquistava mais público e mais reconhecimento. Em 1991, já constava de listas de “bests of” em revistas de heavy metal publicadas na Europa.

 

 

A turnê de Arise (1991) foi consagradora, levando o quarteto onde bandas brasileiras nunca tinham posto os pés. O quarto álbum, o segundo sob o contrato assinado com a Roadrunner em 1988, havia sido o primeiro a ser gravado fora do Brasil.

 

No final de 1991, os integrantes da Sepultura passaram a morar nos Estados Unidos. Gloria Bujnowski teve papel importante nessa mudança. Ela surge na história da banda como empresária e veio a se tornar esposa de Max. Em janeiro de 1993, dessa união nasce Zyon.

 

Gloria morava em Phoenix, onde a banda se estabeleceu. A partir de 1994, a relação entre Max e Gloria passa a ter consequências que se mostrariam decisivas para a Sepultura. Elas levariam à saída do vocalista em 1997. Voltemos, no entanto, a 1993, quando nada disso se anunciava no horizonte.

 

Para o quinto álbum, a gravadora e o quarteto escolheram um lugar com atmosfera rural, o Rockfield Studios, no País de Gales. O currículo desse estúdio incluía Black Sabbath, Queen e Megadeth. Os trabalhos duraram cerca de seis semanas, entre julho e agosto de 1993. Mais algumas semanas foram dedicadas à mixagem e a retoques de guitarras- e vocais.

 

A produção coube a Andy Wallace, que ajeitou o ambiente para que a banda gravasse realmente como um coletivo. Durante longas jams, Max e Andreas aperfeiçoaram os acordes trazidos dos ensaios. Wallace manteve o microfone dos vocais nas mãos de Max, como se ele estivesse em um palco. Aliás, a estrutura do local de ensaio da banda nos Estados Unidos já tinha essa característica.

 

Em outubro de 1993, começou a turnê de Chaos A.D., com 35 shows pela Europa. Em 1994, foi a vez dos Estados Unidos e da América do Sul. O dia 4 de junho foi uma data especial: pela primeira vez, uma banda brasileira apresentou-se no Monsters of Rock, realizado em Donington, Inglaterra. Desde os anos 80, esse era o principal festival de heavy metal no mundo.

 

Nas paradas, Chaos A.D. saiu-se muito bem. “Territory”, uma das faixas de trabalho, como informa o livro de André Barcisnki e Silvio Gomes, liderou por várias semanas a lista de músicas de rock pesado mais tocadas em rádio, superando “Heart-Shaped Box”, da Nirvana, e “Go”, da Pearl Jam. Em menos de um ano, o LP havia vendido mais de um milhão de cópias em todo o mundo.

 

A turnê de Chaos A.D. terminou no Brasil em novembro de 1994. Um fato significativo, pois a Sepultura nunca havia sido tão brasileira antes desse álbum. Antes de discorrer sobre a relação do álbum com o gênero no qual havia se originado a banda, miremos nessa aproximação com o Brasil.

 

 

Caipira no metal

 

Com a palavra, Andreas Kisser, o virtuoso guitarrista e também compositor da letra de duas músicas de Chaos A.D.:

 

“Passamos dois anos em turnê com o Arise. Foi a primeira vez que rodamos o mundo e pudemos analisar e entender como era ser brasileiro fora do país. Vimos o Brasil de um ângulo diferente – que mudou a forma como nos sentíamos. Mesmo com Arise, ainda estávamos escrevendo letras que eram muito heavy metal, muito baseadas em fantasia. Mas agora começamos a ficar mais sociais e políticos. Escrevemos sobre coisas que estavam acontecendo no nosso país – a pobreza, a repressão – porque essas coisas tiveram impacto sobre nós.”

 

De fato, o Brasil está muito presente nas letras de Chaos A.D. “Manifest” é sobre o infame “massacre do Carandiru”, quando, em outubro de 1992, 111 detentos foram mortos por forças policiais após uma rebelião no presídio paulistano. Max canta parte da letra como se estivesse apresentando uma reportagem.

 

Há também “Kaiowas”, faixa instrumental cujo título homenageia, como indica o encarte, “uma tribo indígena brasileira que havia cometido suicídio coletivo em protesto contra o governo, que estava querendo expulsá-los de suas terras”. Se o episódio em si não está devidamente descrito, o tema serve para lembrar que atualmente a taxa de suicídio entre povos indígenas no Brasil é três vezes maior do que na população geral.

 

“Biotech is Godzilla” trata do que seria um experimento biológico que usa seres humanos como cobaias no Brasil, mais especificamente na Amazônia. A letra inicia citando a Rio Eco 92, evento internacional que não passaria de mera fachada para tramas secretas, e termina mencionando Cubatão, cidade paulista que nos anos 1980 era conhecida como uma das mais poluídas do mundo.

 

Já “Nomad” fala sobre povos expulsos de suas terras de origem. Andreas, compositor dessa letra, declarou que esses povos podiam ser etnias indígenas que habitavam o Brasil, mas não somente. Podemos dizer que as músicas de Chaos A.D. estão percorridas por uma pegada “terceiro mundo”, que capta o impacto da passagem da Sepultura pela Indonésia, uma das estações da turnê de Arise.

 

Foi em uma das pausas dessa turnê que a Sepultura aterrissou no palco do Rock in Rio de 1991. Dessa vez, se apresentou para a maior plateia até então reunida em solos brasileiros. A presença em um grande festival no Brasil se repetiu em 1994 em uma das edições do Hollywood Rock.

 

Nesse festival, a banda apresentou sua versão para “Polícia”, música dos Titãs. João Gordo subiu ao palco carioca para cantar “Crucificados pelo Sistema”, da Ratos do Porão. A Sepultura gravou ambas as músicas nas sessões da Chaos A.D. – “Polícia” chegou a ser incluída na versão brasileira do álbum.

 

Em suma, pipocavam os sinais de aproximação entre a Sepultura e o Brasil. O país estava nas letras. E, pela primeira vez, o português ultrapassava o “um, dois, três, quatro” que prenunciava os ataques nos shows. As conexões iam além, impactando a sonoridade de Chaos A.D.

 

A demonstração mais cabal disso está em “Kaiowas”, que teve tratamento especial, pois foi gravada entre as paredes de um castelo nas proximidades do Rockfield Studios. Não há guitarras. Os violões são acompanhados por tambores percutidos tanto por Igor quanto por Paulo. A certa altura, a melodia entrega-se a uma toada caipira…

 

Menos desconcertante, mas talvez mais significativo, é o início de “Refuse/Resist”, faixa de abertura do álbum. Após sons pulsantes (o coração de Zyon ainda no útero da mãe), a bateria de Igor oscila entre pancadas e repiques, anunciando uma levada com elementos sincopados. Tudo faz mais sentido quando sabemos que em 1992 os irmãos Cavalera haviam ficado encantados com o Olodum.

 

A brasileiridade de Chaos A.D. ficou assumida na festa de lançamento promovida pela Roadrunner em outro castelo galês. A banda brindou os convidados com uma performance de “Kaiowas”, apresentação que contracenou com capoeiristas e com dançarinos cujas vestimentas remetiam aos orixás afro-brasileiros embalados por atabaques.

 

Corte para 31 de agosto de 1995. No palco do MTV Video Music Brasil 1995, a Sepultura comparece para fechar a noite. Tocam “Territory”, seguida por uma versão eletrificada de “Kaiowas”, com várias participações especiais na percussão: João Barone, Charles Gavin, os rapazes da Nação Zumbi e Carlinhos Brown. Estamos a um passo de Roots!

 

 

Entre o thrash e o groove

 

As visões retrospectivas não raramente produzem ilusões: como se o futuro estivesse prenunciado pelo passado. Pode ser que haja um pouco disso na minha sugestão de que a distância entre Chaos A.D. e Roots é menor do que outras perspectivas assumiriam.

 

Outra coisa é mais certa: a diferença entre Chaos A.D. e o que a Sepultura fizera até então. Em suas origens, a banda se vinculava ao thrash e death metal, inspirando-se em Possessed, Exodus, Kreator, Destruction e outros exponentes do gênero. Desde Schizophrenia (1987), já com a presença de Andreas, a Sepultura mostrava sinais de evolução.

 

Chaos A.D. é um marco nesse trajeto ao trazer a banda em dinâmicas, construções e texturas musicais que definitivamente a afastavam do thrash e do death metal. Não era um apagamento do passado, longe disso. O canto vociferado permaneceu. Mas os riffs e os ritmos ficaram menos velozes e ganharam densidade. Há menos solos na guitarra de Andreas e Max utilizou acordes mais graves.

 

Uma prova de que o metal extremo ainda era valorizado está em “Biotech is Godzilla” – mas seu refrão tribal apontava para outros caminhos. Exemplo inverso está em “Refuse/Resist”, com sua percussão abrasileirada, quebrada por um trecho acelerado. Na verdade, em várias faixas de Chaos A.D. estilos próximos e distantes do thrash e death metal convivem, às vezes se perfilando na mesma seção da música em instrumentos diferentes.

 

A opção por Andy Wallace na produção esteve associada com desejos de mudança. Scott Burns havia acompanhado a banda nos dois álbuns anteriores, mas seu trabalho ficava no território do thrash metal. Wallace tinha um currículo mais diverso, indo de Slayer (outra referência para a Sepultura) até Rollins Band, Rage Against the Machine, Sonic Youth, L7 e Nirvana – nos últimos quatro exemplos, na mixagem, função que desempenhou também em Arise.

 

Outro álbum que Wallace havia mixado era Meantime (1992) da Helmet. Eis aí uma banda que fazia parte do grupo de novas influências da Sepultura. Outra era a Ministry (seu fundador, Al Jourgensen, chegou a ser considerado para produzir Chaos A.D.). Mais um exemplo: Pantera. Bandas com as quais a Sepultura havia cruzado em seus shows pós-Arise. Em “Slave New World”, Max divide a letra com Evan Seinfield, vocalista da Biohazard, também entre as novas influências.

 

Precisamos ver Chaos A.D. como parte de mudanças que ocorriam no universo do heavy metal, simbolizadas pelo ingresso da Metallica no mainstream. Embora a Sepultura não trilhasse os mesmos caminhos em sua ascensão, ela participava de uma cena que ocupava espaços deixados pela decadência do glam metal e do hard rock e abertos pela nova sonosfera barulhenta instigada pelo grunge.

 

Nessa linha, vou dar ênfase à influência do punk dentro dos rumos tomados pela Sepultura, ainda que outros gêneros, como o tecnoindustrial, também mereçam atenção. Notemos que os shows finais da turnê de Chaos A.D. no Brasil foram em companhia dos Ramones. A única versão incluída entre as faixas originais do álbum de 1993 é “The Hunt”, da New Model Army (álbum The Ghost of Cain, 1986), banda com raízes no punk. Reforça minha opção a gravação de versões para “Polícia”, uma das mais punks da Titãs, e para “Crucificados pelo Sistema”, da Ratos do Porão, a qual, por sua vez, também se aproximara do metal.

 

A amizade com João Gordo, aliás, iniciada no final de 1986, contou muito para o interesse pelo punk. Em 1990, Max e Andreas ensaiaram com ele alguns projetos paralelos à Sepultura. Em 1992, um encontro antológico ocorreu entre Igor e Andreas, o pessoal da Ratos do Porão e Jello Biafra, quando se juntaram para uma jam numa casa de shows em São Paulo.

 

A jam incluiu “Holiday in Cambodia”, um clássico dos Dead Kennedys, música que a Sepultura incluía em sua turnê de 1989. Em 1991, a banda contribuiu com uma versão para outra música dos punks californianos, “Drug Me”, para o álbum tributo à Alternative Tentacles, gravadora chefiada por Biafra.

 

Biafra tem uma participação direta em Chaos A.D. com a letra de “Biotech is Godzilla”. A menção ao evento Rio Eco 92 é em primeira mão, pois Biafra esteve na cidade maquiada fazendo shows com a Mano Negra em um palco montado sob os Arcos da Lapa.

 

Um comentário geral sobre as letras de Chaos A.D. ainda não revisadas vai nos levar para longe do Brasil. Nelas predominam cenários opressivos protagonizados por violências militares (“Territory”) e narrativas enganadoras (“Propaganda”). Nesses cenários, somos convidados a resistir (“Refuse…”). Tal chamado, no entanto, não ignora as guerras interiores (“Slave New World”). Afinal, “a vida é caos” (“Clenched Fist”).

 

Ao lado da afirmação literal de “We Who Are Not As Others”, temos a crônica de perseguição em “The Hunt”. Finalmente, “Amen” é inspirada por um episódio específico, a morte dos seguidores de David Koresh no Texas em 1993. A letra tematiza o fanatismo religioso, mas cabe notar que a tragédia teve a contribuição de uma intervenção no mínimo imprudente das forças policiais.

 

A capa do álbum é novamente uma perturbadora ilustração de Michael Whelan (que colaborava desde Beneath the Remains). Três vídeos divulgam faixas de Chaos A.D., as mesmas que foram lançadas em formato single: “Refuse/Resist”, “Territory” e “Slave New World”. Destaque para o segundo deles, gravado no Oriente Médio. Misturam-se imagens dos quatro rapazes no meio do deserto e cobertos de lama com instantâneos de forças militares israelenses e pichações pró-Palestina. Ao final, fotos de jornais noticiando os Acordos de Oslo (1993), jamais cumpridos. “War for territory!” Poderia ser mais atual?

 

Observação: na versão de Chaos A.D. disponível nas plataformas de áudio com as doze faixas originais remasterizadas em 2017, há também demos de algumas músicas, apresentações ao vivo e os covers divulgados junto com os singles. Inclui ainda “Inhuman Nature”, outra cover de banda punk, nesse caso a Final Conflict, assim como uma versão de “Symptom of the Universe” (Black Sabbath). Duas faixas trazem marcas diretas de Roots: “Chaos B.C.”, versão carnavalizada de “Refuse…”, e “Kaiowas”, gravada entre o povo Xavante com os quais foi composta “Itsári”.

 

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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