O Globalizado Coldplay

 

 

Rapaz, o Coldplay lançou um disco bom. Chama-se “Everyday Life” e é duplo. Se me dissessem que Chris Martin e cia. colocariam um álbum como este à venda, eu torceria o nariz imediatamente. Mas, justiça seja feita, ouvindo as faixas de “Everyday Life”, a gente encontra indícios de que há algum espírito criativo sob as camadas de pompa e circunstância que a banda abraçou e valorizou nos últimos onze anos. E mais: o quarteto inglês resolveu inserir um monte de elementos musicais estranhos, exóticos, ora crocantes, ora cremosos em sua palheta sonora, acertando o alvo em muitas vezes, porém, errando-o em muitas outras. A impressão, no entanto, de que há algo cutucando a mesmice de arena em que se transformou o grupo já dá algum ânimo.

 

Eu sou um daqueles que ouviram “Parachute” em 2000 e achou que era um ótimo disco de estreia. Também sou um dos que recebeu o segundo trabalho, “A Rush Of Blood To The Head”, de 2002, como um álbum que poderia ser melhor do que foi, mas que ainda trazia bastante coisa interessante. A partir daí, o grupo entrou num caminho de pequenos equívocos, que o levou a lançar, em 2008, “Viva La Vida”, o disco que foi – como gostam de chamar os coaches – um “turning point” em sua trajetória. Apesar desta minha opinião, a maioria esmagadora dos fãs do Coldplay conheceu a banda neste momento. E a abraçou como um grupo de rock festivo, pronto para encher as arenas do mundo. Quase não havia mais sombra daquele som introspectivo e interessante, uma espécie de visão mais pop do que fazia o Radiohead do fim do século 20. Em seu lugar entrou uma maçaroca de ôôôô’s em refrões monótonos, além da inserção de batidas eletrônicas e beats diversos, num processo que gerou vários trabalhos constrangedores no meio do caminho.

 

De lá pra cá, o Coldplay lançou od fracos “Mylo Xyloto”, “Ghost Stories” e “A Head Full Of Dreams”, além de um álbum e vários EPs ao vivo. Suas plateias cresceram exponencialmente. Deixaram de rivalizar com os escoceses do Travis para bater de frente com o U2. Aliás, Martin nunca escondeu suas tentativas vocais de emular a vox do Bono, com o perdão do trocadilho. Só que, ao invés de reproduzir as paisagens sonoras complexas do grupo irlandês, o Coldplay popizou tudo, enfiou os tais refrões com gritinhos e firmou parcerias com Rihanna, Beyonce e tudo mais que o dinheiro da gravadora podia comprar, porque, ora, ali estava um artista peso-pesado mundial, que lota estádios e faz música que pode servir de tema publicitário a fundo musical de casamentos. O investimento é o espelho da demanda, já diziam os economistas.

 

Só que isso deve cansar. Talvez Martin e o grupo tenham enchido o saco disso tudo. Sendo assim, com uma campanha publicitária cheia de mensagens cifradas, outdoors misteriosos e umas ações orquestradas, o Coldplay veio ressurgindo aos poucos como uma banda com algo a dizer. Esta aura de influências estranhas ao que o grupo sempre fez é o foco das atenções. O novo trabalho, além de duplo – o primeiro lançado por eles – traz surpresas. Tem, por exemplo, “Arabesque”, uma canção com participação de Femi Kuti e do rapper belga Stromae, provavelmente a melhor coisa que compuseram desde o primeiro lado de “Parachutes”. Metade dos vocais vem em francês e Kuti e sua banda oferecem uma dinâmica de metais hipnótica e sensacional. Não sei se é um elogio, provavelmente não, mas não parece nada feito pelo Coldplay até hoje.

 

A política está presente no disco. Mas, onde antes a banda tratava do ser humano com uma visão coacheriana, no sentido de valorizar o esforço, a perseverança e uma certa dose de meritocracia, agora Martin abandona o discurso e investe sobre a truculência da polícia e da repressão globais contra manifestações. O ritmo é soturno, lembra uma fusão de U2 com Paul Simon, mas sem qualquer felicidade ou explosão de cores. É uma canção noturna, soturna e interessante. “Daddy” também é totalmente introspectiva, com letra sussurrada sobre uma base de piano e sutilíssima percussão, com Martin falando da ausência paterna como algo sério e crônico na atualidade. Não deixa de ser surpreendente. “BrokEn” é uma faixa gospel em sua totalidade, no arranjo e na letra. Se o U2 pode fazer isso com a versão ao vivo de “I Still Haven’t Found What I’m Looking For”, por que não o Coldplay?

 

O segundo disco já abre com outras duas canções “estranhas” ao espectro tecladeiro pop da banda. “Guns” fala sobre violência armada em meio a um arranjo de voz e violão tocado com pegada blueseira surpreendente, abrindo espaço para Martin soltar os vocais além do soturno. “Orphans” vem em seguida, falando das crianças abandonadas, mas já tem um arranjo mais convencional, entre algo da trilha de “O Rei Leão”, comercial da Bennetton e um coro de vocais de apoio que às vezes emula “Sympathy For The Devil”, faixa dos Rolling Stones sobre algo bem distinto, mas, enfim…O disco segue adiante com “Èkó”, que novamente evoca signos afropop de uma forma branda, com melodia bela e arranjo economico de teclado e violões. O resultado final é bem bonito.

 

E se eu disser que “Cry Cry Cry” é o mais próximo que o Coldplay pode chegar de uma canção que decalca tiques e taques do pop sessentista? O andamento é de r&b, no sentido de que “My Kind Of Lady”, era para o Supertramp de 1982. E tem faixa instrumental ao piano com título em persa, “بنی آدم” e outra faixa que poderia estar na trilha sonora de “Rei Leão”, “Champion Of The World”, no qual o padrão do Coldplay atual surge em toda a sua força. A faixa-título encerra o percurso sonoro, com estes mesmos elementos tradicionais – teclados, voz de Chris Martin aberta sobre um precipício, falando para a eternidade, efeitos, créditos subindo e tudo mais – mostrando que a banda pode estar em fase de transição para algo ainda mais ambicioso ou promovendo um enxugamento de elementos eventualmente supérfluos.

 

O que dá pra dizer é que “Everyday Life” é um disco surpreendente para quem esperava um movimento rumo a mais diluição ou apenas um atestado de acomodação. É um disco que traz a vontade tentar entender o que passa na mente de quem o fez. E isso já é um ótimo sinal.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

3 thoughts on “O Globalizado Coldplay

  • 27 de novembro de 2019 em 16:00
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    Vou hoje ouvir. A produção é de quem? Desde “A Rush Of Blood To The Head” não me convoco para ouvir a banda. Até gostava , sim.

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    • 27 de novembro de 2019 em 17:02
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      Cara, é uma galera produzindo. O disco mostra uma clara tentativa de fazer algo diferente.

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  • 27 de novembro de 2019 em 11:47
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    Não dá, simplesmente, não dá… troço chato… é “coisadeplay” mesmo…

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