Jotadablio, Borealis e mais um monte de gente
Não sei se Jorge Wagner e Marco Antônio Bart Barbosa irão gostar de um texto mais, digamos, pessoal, para descrever seus novos trabalhos artísticos. A eles – e a quem lê aqui – garanto isenção e uma tentativa sincera de análise crítica sobre os sentidos e significados de “Toda Forma de Adeus”, estreia de Jotadablio, e sobre “No God Up Here”, o mais novo álbum do Borealis, seus projetos musicais. E já aviso que as sonoridades que ambos escolheram como via de expressão são bem diferentes ainda que, surpresa, Bart participe de uma faixa no álbum de Jota. E mais amigos jornalistas estão envolvidos na empreitada. Manoel Magalhães, ex-Polar e ex-Harmada, cineasta e dono de um lindo álbum solo, “Consertos em Geral”, lançado em 2018, é o produtor e viabilizador sonoro de Jotadablio. E Marcelo Costa, o homem que é dono do mais importante site alternativo de música do Brasil, o Scream & Yell, é responsável pelo lançamento e divulgação do álbum de Borealis. A nós, aqui na Célula Pop, só cabe celebrar, divulgar, contar pra todo mundo sobre essa feliz engrenagem nascida na espontaneidade e na necessidade de viabilizar esses projetos artísticos. Bravo, viva, vamos nessa etc.
Os temas que norteiam os trabalhos também são distintos. Ainda que Jorge e Marco sejam contemporâneos e seus interesses musicais estejam em órbitas mais ou menos próximas, os resultados de suas vivências e influências vão em direções quase opostas. Se o Borealis de Marco Bart é um projeto pessoal de eletrônica minimalista, noise, quase dançante, compondo, gravando, tocando num laptop, o Jotadablio é um trovador urbano que reflete sobre a existência, a solidão e os sentimentos enquanto leva seu cachorro para passear de manhã. Mas, entre ambos, há esta ponte, digamos, não-artística, que aproxima suas manifestações artísticas e as coloca numa prateleira não muito divulgada, a de pessoas na meia idade que precisam se expressar em meio a uma vida mecânica e sem as respostas que suas perguntas, formuladas há tanto tempo, exigem. Ou exigiram. Porque, tanto Bart, quando Jorge, além de suas profissões “oficiais” do presente, já foram – ou ainda são – sonhadores de teto de quarto. De amores impossíveis, de paisagens reveladas por música e, não raro, de sacrifícios cometidos em nome de suas paixões – musicais e não. São caras que saíram de interiores de cidades periféricas, movidos por amor ao Pavement e ao Wilco, contra todas as estatísticas do IBGE, para sofrer num país que ignora esses gostos fora da curva. E que prevaleceram.
A carreira do Borealis começou em 2015. A gente já tem uma entrevista com Bart, feita há alguns anos, por conta do álbum “Siemens Dream”, trocadilho que mistura o Kraftwerk com o Smashing Pumpkins, mapeando bem as influências do sujeito, mas, se eu fosse arriscar algo, cravaria que ele gosta mesmo é de Smiths, Madchester e quetais, além de New Order e do rock alternativo de guitarras americano, no sentido Pavement/Sonic Youth do termo. “No God Up Here”, novíssimo trabalho, é conceitual, assim como “Siemens”: é um trabalho que fala da corrida espacial e pega um sample da fala de Yuri Gagarin, cosmonauta russo, proferida quando de sua ida ao espaço, em 1961 – “não há Deus aqui em cima”. Ou seja, é um trabalho desiludido, lógico, certo e palpável, que Bart traduz em faixas que oscilam entre o noise eletrônico, o krautrock instrumental e beats sufocados no vácuo. No meio disso tudo, o bom humor tímido, de fazer uma “versão” do tema de “Moon Patrol”, o jogo de fliperama – que ganhou versão para Atari 2600 – e cuja melodia está na mente de gente que está no meio dos “enta”. A produção, assim como as dos trabalhos anteriores, é dele, que também executa tudo no âmbito doméstico. Música eletrônica low-profile portátil, urbana, existencial. Tudo o que não cabe em qualquer mainstream.
Neste mesmo trilho, mas num outro ramal, está Jotadablio. Fã de Frank Sinatra, Wilco e Belchior, no repertório de Jorge Wagner tem espaço para a emoção de um jeito diferente do que Bart expõe no Borealis. O amor – e a falta dele, seus rompimentos e nascimentos – é a mola mestra de tudo o que se ouve em “Toda Forma de Adeus”. Jorge é de Paracambi, interior do estado do Rio, gosta de usar o termo “suburbano” para definir suas impressões e considerações sobre o mundo e dá pra entender que esta opção, digamos, semântica, abarca um amor contido, um jeito de sofrer sem que ninguém perceba, mas que, no fundo de todo o disfarce, dói pra caramba. E se há algo que une todas as canções do álbum – seu primeiro – é a superação de dor. Na verdade, uma vez lido o release, a gente aprende que as canções foram compostas esporadicamente ao longo dos últimos dez, quinze, quase vinte anos, mostrando uma constante na narração dessa imprevisibilidade de emoções a dois. Estas canções juntas, pleno 2023, talvez criem este conceito adjacente ao disco, o da superação. O homem segue vivo, refletindo sobre a vida enquanto passeia o cachorro, com cara de quem lidou bem com tudo o que as canções do álbum falam. E nelas há três que calaram fundo aqui: “Cartão de Embarque”, que tem uma levada alt.country de primeira linha, com timbres bem estudados e colocados, letra que fala de trem – que pode ser do Ramal Japeri ou o Peace Train, de Cat Stevens – e de partidas e chegadas. “O Que Espero” é mais lenta, cinematográfica e abre com um verso que sintetiza quase tudo: “Eu esperava o mundo me dizer um pouco mais // Pensava que o tempo me traria alguma paz”. E “Mesmo de Longe”, outra lindeza com gosto de estrada e poeira que acumula na prateleira. Na capa, um ônibus velho em Planaltina, perto de Brasília. “Foto de um amigo”, diz Jorge.
Nenhum desses álbuns, nenhuma dessas carreiras é para ganhar dinheiro ou algo assim. São dois sujeitos atendendo a uma necessidade premente de se expressar. Mais ainda: de serem fiéis a sonhos e desejos acalentados há muito tempo. São dois caras dizendo que estão aí, apesar de tudo. De todas as reuniões burocráticas, procedimentos inúteis que aprenderam, palestras que deram e assistiram. São caras que ainda se interessam por aquele acorde específico. Aquele trecho de letra. Como dizia o franco-argelino Albert Camus, “A obra de um homem não é senão esse longo caminho para encontrar, pelos desvios da arte, as duas ou três imagens simples e grandes sobre as quais o coração pela primeira vez se abriu”. Esses dois álbuns são isso.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.
Que texto lindo, cara!