A grande imagem de Murakami

 

 

Eu estava gripado. Era a segunda vez em menos de dois meses. Tosse, nariz escorrendo, nariz coçando, nariz entupido, cansaço. Tudo ao mesmo tempo. E com mau humor. Porque não há como sentir tudo isso e manter-se calmo, positivo, alegre. Mas, convencido por minha mulher, topei ir no mercado, achando que isso poderia ser bom. Não ponderei comigo mesmo a alta chance do recinto estar cheio – era feriado – e tomado por pessoas andando em todas as direções, com carrinhos desgovernados. E o cansaço. Em poucos minutos, me senti exausto, pedi para ficar na parte anterior aos caixas, onde há alguns bancos de madeira. Lá fiquei por meia hora. Até que minha mulher surgiu, compras feitas. Voltamos para casa e, na portaria do prédio, nos demos conta de que a energia caíra.

 

 

No nosso caso, tal fato significava uma distância de treze andares até a porta de casa, algo que seria impossível de superar, pelo menos naquele momento, com quatro sacolas pesadas de compras e o meu profundo cansaço. Além de tudo isso, fazia um calor insuportável. Os jornais diziam ser uma onda de calor anormal, um dos muitos presságios do fim do mundo, que nos chegam com certa banalidade diária. Ainda que fosse realmente difícil de aguentar, aquela temperatura altíssima podia ser facilmente confundida com o “calor tropical” ou algo assim. As pessoas que adoram esse tipo de calor desumano, desfrutam dele em recintos refrigerados. Fosse como fosse, era inconcebível a subida. Eu e minha mulher até gostamos, na portaria batia um vento fresco, do qual não desfrutaríamos lá em cima. E o porteiro, Seu Armindo, era uma figura simpática e sempre disposta a conversar. Até parecia constrangido por conta do problema, que condenava os elevadores do prédio a uma imobilidade total e obrigava os moradores que chegavam e recebiam a notícia, a elaborar rapidamente um juízo sobre o que fazer: subo? Não subo? Felizmente foi Seu Armindo que deu uma boa notícia em meio àquele pequeno caos: um pacote de livros havia chegado para mim, via correios.

 

Não compro livros há um tempo maior do que gostaria. A falta de tempo para ler e o dinheiro escasso são os principais responsáveis, mas, por conta de uma promoção de Black Friday, adquiri uma versão de “Admirável Mundo Novo” (eu pensava que tinha uma, do tempo do colégio, mas não a achei) e o mais novo livro do escritor japonês Haruki Murakami, “Primeira Pessoa do Singular”. Ambos custaram, juntos, cinquenta reais, com frete grátis. Penso ter feito um bom negócio. Se os elevadores e a gravidade me sentenciavam ao solo, pelo menos havia a chance de me distrair com algo. Minha mulher, cansada e angustiada ante a impossibilidade de uma solução imediata para o problema, visto que a energia teimava em não retornar, resolveu aventurar-se na subida à pé, via escada, deixando os pacotes comigo, dentro do carrinho do condomínio, em frente a um banco de madeira, que fica num lugar privilegiado em termos de fluxo de vento encanado. Afinal de contas, ninguém imaginava que a energia poderia demorar muito tempo a ser reestabelecida. Entendi e incentivei seu movimento. Foi ali, naquele banco, em meio a uma corrente de ar suficientemente fresca, que abri o pacote com os livros. Resolvi retirar o invólucro plástico do livro de Murakami, que eu nem sabia ser o seu mais recente. Uma coletânea de oito contos, menos de duzentas páginas. Talvez eu o lesse inteiro ali.

 

Folheei o livro, gostei da gramatura do papel e me deparei com os nomes dos contos. Dois me chamaram a atenção de cara: “With The Beatles” e “Charlie Parker Plays Bossa Nova”. O primeiro era mais uma prova da notória paixão do japonês por Beatles, sua música e tudo o que orbita este universo. O segundo, uma impossibilidade fantástica, uma falha no contínuo espaço-tempo, talvez um título de disco inviável em que o mestre do saxofone no jazz americano tocava standards da bossa nova. Seria até plausível, mas Parker morrera em 1955, antes do surgimento da apropriação brasileira do jazz e sua fusão com o samba, feita três, quatro anos depois. Ok, era alvissareiro este começo de leitura e achei por bem iniciar com “With The Beatles”. Logo de cara, um soco no estômago. Porque o grande barato da literatura de Murakami é sua absoluta clareza na escrita, um jeito quase banal de descrever as coisas que, ao mesmo tempo, comportam verdades desconcertantes. Ele começa dizendo que o mais impactante na velhice não é, de fato, envelhecer, mas perceber a passagem do tempo nas pessoas de sua mesma geração. Como, por exemplo, nas mulheres que, outrora vivazes e saltitantes, hoje já podem estar com dois ou três netos.

 

Pode parecer “etarismo” da parte de Murakami, mas me permito achar que não. É que, logo em seguida, ele alinha a presença feminina a uma espécie de balizador de sonhos ou, talvez, das impressões mais profundas possíveis em um ser humano do sexo masculino. Ele diz que a passagem do tempo para as mulheres é a prova definitiva de que seus sonhos de juventude se foram para sempre. E que a morte de um sonho pode ser mais triste do que a morte de uma pessoa. Me parece um jeito quase transcendental de comprovar a importância da presença feminina em sua vida e o exemplo que ele dá não poderia ser mais belo. Uma menina, a qual ele não conhece, cruza seu caminho no corredor do colégio, no outono de 1964, plena Beatlemania. Ele não sabe quem ela é ou de onde veio, tampouco se recorda de tê-la visto outra vez além daquela. Ao passar por ela no corredor, no sentido contrário, ele nota que ela traz, apertado contra o peito, como se carregasse algo extremamente valioso, um exemplar de “With The Beatles”, o segundo álbum do grupo inglês. A imagem é fugidia, “dura dez ou quinze segundos”, tão rápida que ele chega a duvidar de sua veracidade, mas o tempo é suficiente para distinguir o álbum e comprovar que era uma edição inglesa. Não japonesa ou americana.

 

A partir daí, o conto toma outro rumo, igualmente sublime, mas é neste começo que quero ficar, talvez para sempre. Porque Murakami, em dois ou três parágrafos, conseguiu definir ou exemplificar uma “das duas ou três imagens simples e grandes para as quais o coração pela primeira vez se abriu”, comprovando assim um dos postulados mais belos e precisos sobre a obra de um homem, dito por Albert Camus (1913-1960). Camus, um dos mais importantes escritores do século 20, franco-argelino, autor de “O Estrangeiro” e “A Peste”, é um dos expoentes do Existencialismo, ainda que ele não concordasse totalmente com este alinhamento. Basicamente, Camus considerava a vida um absurdo, sob um ponto de vista, digamos, cósmico, mas também dotada de algum sentido, que surge de modo diferente para os indivíduos. Veja, esta é uma simplificação muito … simplista. O fato é que a frase de Camus, escrita por ele no prefácio do livro “O Avesso e o Direito”, aos … vinte e dois anos de idade, praticamente define e viabiliza descrever esta sensação instintiva – a de olharmos, sentirmos, presenciarmos, algo tão importante, impactante e definidor que seremos capazes de tentar repetir este ato pela vida a fora, inapelavelmente. Inevitavelmente.

 

Acredito que Murakami tenha pensado no mesmo, por outra via. Em seu conto, a perplexidade em relação ao tempo é consequência de, paradoxalmente, não sermos capazes de enxergá-lo com nitidez, justo pelo fato de que o vivemos constantemente. Só que, em alguns momentos desta vivência, talvez nos de menor intensidade, este mesmo tempo nos proporciona revelações que irão nos acompanhar para sempre. Até hoje, ao ler a frase de Camus, eu tentava – sem muito sucesso – achar um exemplo dessas “duas ou três imagens” às quais ele se referia, até que li a descrição da menina com o exemplar de “With The Beatles” apertado contra o peito, algo tão rápido que desafia a percepção nítida da verdade. Agora que obtive um exemplo, digamos, tangível, para tal visão, talvez consiga me expressar melhor, uma vez que também acredito que a obra de um homem é a busca incessante pela reprodução desta sensação de visualizar – sentir, etc – essas grandes imagens.

 

Depois de ler o conto de Murakami em uns vinte minutos, de subir com as compras horas mais tarde e pesquisar sobre contexto de “With The Beatles”, me deparei com a ilustração belíssima da imagem da menina com o álbum contra o peito, feita pelo artista californiano Adrian Tomine, para a revista The New Yorker. Apesar de precisa e bela, ao vê-la percebo que ela não dá conta da imensidão de pensamentos e possibilidades que “uma grande imagem” pode trazer para alguém. E pense: você certamente em as suas.

 

Bravo. Leiam “Primeira Pessoa do Singular”, é uma ótima coletânea de contos.

 

PS: o conto sobre Charlie Parker também é ótimo.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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