Entrevista com Ed Motta em 2008

 

 

Achei em meus arquivos uma entrevista feita com Ed Motta por conta do lançamento de seu álbum “Chapter 9”, que saiu em 2009, pela gravadora Trama. A conversa aconteceu por telefone e, não lembro por que motivo, nunca foi publicada pela Rolling Stone Brasil, veículo com o qual eu colaborava na época. Foi a primeira conversa que tive com Ed, que foi exemplar e muito gente boa. A segunda, também pela Rolling Stone, foi em 2013, quando ele lançava o álbum “AOR”.

 

Ed Motta é uma excelente praça. A imagem de artista complicado se desfaz no primeiro momento e a entrevista rola solta. O assunto é seu nono disco de carreira, Chapter 9, e suas influências. O papo atravessa os limites musicais e conversamos sobre lanchonetes do passado de Copacabana (Ed nasceu na Tijuca, um bairro muito parecido com Copa), lojas de brinquedos e as perspectivas do mundo sob o ponto de vista musical. Conhecedor profundo de música – principalmente de rock – Ed fala de suas experiências e de como fez um disco de blues rock, algo que ninguém poderia supor.

 

 

Chapter 9 é o seu disco mais próximo do idioma rock?

 

Sim,com certeza. Na verdade eu já tinha dado uma visitada nesse terreno quando gravei “A Loja Do Sub-Solo”, pro Manual Prático Para Festas, Bailes e Afins (disco de 1997). Essa vinheta é uma homenagem à Sub-Som, uma loja que existia na Galeria Vitrine da Tijuca, na qual eu conheci e comprei muita coisa. Eu já pensava nessa coisa de tocar rock com um approach negro, como aquelas bandas inglesas da virada da década de 60/70, Free, Spencer Davis Group, essa galera. Mas não tem só o rock, o disco tem influência de um monte de coisas, desde a maneira de conceber a estrutura harmônica das canções até trilhas de cinema.

 

 

Como foi a transição do clima Rio Antigo do seu disco anterior, Aystelum (2005), para o soul blues do novo trabalho?

 

Foi bastante casual. Eu entrei no estúdio pra gravar a demo do disco e dessa vez eu consegui fazer isso no Estúdio Trama. Quando eu vi a quantidade de microfones pensei que poderia microfonar todos os instrumentos e comecei a brincar com isso. O João Marcelo Bôscoli disse que poderia sair alguma coisa dali e eu só estava pensando na demo pro novo disco, como eu faço sempre! As músicas foram saindo espontâneamente, nesse cilma de blues rock. Eu precisei interromper as gravações por seis meses para ensaiar e compor as canções do musical 7. Acho que esse clima meio blues tem a ver com o fato de ter ficado um tempo em São Paulo, longe de casa. Eu preferia estar no estúdio do que no quarto do hotel, só pensei nisso.

 

 

Cantar todas as canções em inglês foi opção ou necessidade?

 

Olha, as letras em inglês têm a ver com uma opção estética mesmo. Pra mim o inglês é uma língua tão natural quanto o português, aliás, pra quase todas as pessoas que têm a minha idade (Ed tem 37 anos) e gosta de rock/soul/funk. Achei que o inglês casava bem com a sonoridade que foi saindo daquela demotape. Encomendei as letras para o Chico (Botelho, com quem Ed compôs para o musical 7) e Rob Gallagher (que é inglês). Eles receberam as bases de duas em duas e foram colocando as letras. No fim das contas, o Chico só colocou uma letra.

 

 

Muita gente cobra de você uma fidelidade permanente a uma veia pop que você não parece ter vontade de usar sempre. Isso te incomoda?

 

Mais ou menos. O que me incomoda é essa coisa de atribuírem à arte uma função específica. As pessoas não têm uma percepção maior da arte, apenas pensam que ela é desse ou daquele jeito. No meu caso, sou influenciado por um monte de coisas extra-musicais, principalmente por quadrinhos e cinema, isso se reflete na minha música. Eu sinto uma vontade natural nada forçada de explorar outros caminhos, idiomas e esbarro nessa percepção estreita que, supostamente, me obrigaria a seguir esse ou aquele formato. Eu gosto de Stephen Soundheim, Barry Manilow, Christopher Cross, Stephen Bishop (o compositor da trilha sonora de Tootsie), mas não me sinto inspirado por eles o tempo todo. Nem pelos artistas do soul ou do funk somente. Aliás, isso mostra que o mundo vem esbarrando nessa coisa de fazer mal o seu papel. A gente vê um monte de gente informando errado, desconhecendo coisas básicas. O mundo vem perdendo a precisão nas coisas, mas isso é outro assunto. O Chapter 9, por exemplo, me soa muito pop. Quando começaram a falar sobre ele já disseram que ele tinha esse clima “soturno” e “triste”, o que eu não vejo. Pra mim as influências daquelas bandas inglesas de hard rock do início dos anos 70 são muito claras.

 

 

A Internet te ajudou de alguma forma na concepção do Chapter 9? O que você acha do disco estar disponível pra download gratuito no site da Trama?

 

A internet pra mim é um oásis. Muito mais que um parque de diversões. Eu sempre colecionei coisas, discos, quadrinhos, fitas VHS, catálogos, enfim, um monte de coisas. Com a web tudo ficou mais fácil para se adquirir, uma vez que os livros importados não são taxados pelo governo. Mas o e-mail ajudou apenas para me comunicar com o Rob (Gallagher, letrista inglês da maioria das faixas de Chapter 9). O disco está disponível pra baixar no site da Trama. Eu acho legal, democrático, espero mesmo – sem clichê – que mais gente tenha acesso à minha música. Os arquivos que estão disponíveis trazem o encarte, a capa, além das músicas. Sei que o cara que coleciona mídia física vai continuar comprando disco, portanto, não me incomodo com isso. Mesmo porque a Trama proporciona o download legal, patrocinado e remunerado, ou seja, sai a custo zero para o consumidor e remunera o artista. Não tenho do que reclamar, mesmo porque eu garimpo um monte de coisas e a internet viabiliza isso pra mim. Enquanto estou ouvindo estou lendo e entendendo o que está tocando, algo que todo mundo deveria saber.

 

 

Mesmo com uso de guitarras e acento blues, o soul setentista e as levadas de piano Rhodes a la Steely Dan ainda são sua maior influência para Chapter 9?

 

Na verdade vem tudo junto, isso é o shuffle que aparece naturalmente no blues de Chicago. O próprio Steely Dan bebeu dessa fonte, das músicas em compasso 6/8, cheias de suingue. Acho que tem a ver com o fato de tocar todos os instrumentos no disco, isso veio naturalmente na hora de compor. Muita gente fez canções nesse compasso, com essa levada e quase nem dá pra perceber. “Fool In The Rain”, do Led Zeppelin é assim. O Lulu Santos tem “Sincero” (de 1985, do disco Normal), o Wham tem “Wake Me Up Before You Go-Go” (de Make It Big, 1984), ou seja, no fim das contas, é tudo obra do shuffle de Chicago. (Ed dá os exemplos das músicas cantarolando a letra e melodia). Acho que as músicas em 6/8 fogem do esquema 4/4 e isso pode confundir um pouco e talvez atrapalhar aquelas pessoas que ficam na ditadura do econômico, simples, quase banal. Eu acho que a simplicidade pode existir ao lado das melodias mais complexas. O Who, por exemplo, todo mundo diz que é visceral, mas o Tommy (disco de 1969, contendo a ópera-rock homônima) é totalmente pensado e planejado. Acho possível alguém ouvir o Nevermind The Bollocks (disco de estréia dos Sex Pistols) com “Anarchy In The UK” e depois apreciar o Close To The Edge (dos progressivos Yes). Eu não sou contra o barroco, acho que tem espaço pra tudo.

 

 

Como está seu relacionamento com a Trama nesses tempos tão tortuosos da indústria musical?

 

O relacionamento é bacana. Eles apostaram nos meus discos, sempre me deram tudo que eu precisei. Já são quatro discos (Ed está no cast da gravadora desde 2001, já tendo lançado Poptical, Ao Vivo, Aystelum e agora Chapter 9) e não tenho do que reclamar. Pelo contrário.

 

 

O que você acha da música feita no Brasil hoje em dia? Há algo que te emociona?

 

Olha, sinceramente, nada. Aliás, tem sim. Você conhece Letieres Leite e Orkestra Rumpilezz? (Eu digo que não e Ed explica) É a big band de um saxofonista baiano, que faz um som mesclando timbres de candomblé com sopros, dentro de uma abordagem totalmente jazz. Pra mim, o sujeito é o novo Moacir Santos. Música que me emociona mesmo. Além disso, nada. Continuo comprando discos dos caras que admiro, por exemplo, o Who (cujo disco novo – Endless Wire – achei chato) e o Donald Fagen (tecladista do duo americano Steely Dan). Ouço os caras de sempre, garimpo coisas aqui e ali e sempre volto pros caras que gosto de ouvir. Muito jazz, aliás, o jazz me fez perceber o valor da música popular brasileira.

 

 

Você tem uma carreira solidificada no exterior. Os fãs de lá são muito diferentes? O que eles esperam de um novo disco do Ed Motta?

 

Pra eles o som do Dwitza (disco instrumental de 2000 no qual Ed envereda por uma sonoridade jazzística) é o meu som. Se eu chego pra tocar “Manuel” para o público lá fora, provavelmente não vão entender nada. É o oposto daqui, exatamente. Eles também são “primeira impressão”, colocam a sonoridade num compartimento estanque. Eles esperam de mim um samba-jazz rapidinho e só.

 

 

Chapter 9 é o melhor disco que você já fez?

 

Não, sei lá. Eu gosto muito do Aystelum e do Dwitza. Também gosto do Poptical. Eu gosto de todos. O meu primeiro disco está fazendo 20 anos, eu ouço ele até hoje e vejo sinceridade total no que está ali. Também gosto do Contrato Com Deus, meu segundo disco, que foi lançado na mesma semana do Plano Collor. Acho que eu já mostrava ali que não era um artista muito convencional. Até hoje tento fazer com que esse disco seja relançado, como ele tem um monte de vinhetas – o número de faixas extrapolou 14, que é o limite para a gravadora pagar o direito autoral único. A partir desse número a obra rende o dobro de direitos autorais. O disco foi amputado e lançado numa série Dois em Um com o primeiro, mas sem as vinhetas. Aí não é o disco, né? Os discos iniciais são ingênuos, sinceros, já são 20 anos. Estou quase um Van Morrison – solta uma risada.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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