Roots, o álbum emblemático do Sepultura, completou 25 anos em 2021
Qual o significado de um projeto sonoro? É com essa pergunta que me dirijo a Roots, e as respostas para que aponto contornam, deliberadamente, uma série de dimensões. Uma das razões para isso é que se trata de um álbum de metal, gênero que não está entre os meus melhores conhecidos.
Confesso: Kiss foi uma das primeira bandas pela qual me atraí – muito por conta da repercussão do show no Brasil em 1983 que impressionou um garoto de 12 anos. Mas quando, uns três anos depois, já acumulara alguma informação musical, havia me inclinado mais para o punk e o pós-punk.
Tem uma música (“Tom e Jerry”) dos gaúchos dos Replicantes que grita assim: “seja punk, mas não seja burro!”. Uma de minhas várias burrices foi ter comprado a antipatia do punk pelo heavy metal. Metal misturado com progressivo, então, sempre quis distância disso.
Essa postura me fez ignorar coisas interessantes do universo do metal. Por exemplo, thrash metal, que, afinal, mantém aproximações com o punk. Comecei a sacar isso nos anos 90, mas aí que o estrago já estava feito.
Se me aventuro a comentar um álbum do Sepultura, é porque Roots tem dimensões que estão para além do metal. É a essas dimensões que me dedico aqui, fazendo a devida homenagem ao jubileu de prata desse petardo lançado em 1996. Peço ainda licença para não tratar do que aconteceu depois na longa história da banda.
Na ocasião, Roots foi “o álbum brasileiro de maior repercussão internacional”. Mas, além do nome da banda e da nacionalidade dos músicos (Max e Igor Cavalera, Andreas Kisser e Paulo Jr.), o que havia de “brasileiro” na banda que morava no exterior, era contratada por gravadora estrangeira e, por cima de tudo, cantava em inglês?
Em suas origens, realmente o Sepultura deu as costas para o Brasil. Nas palavras registradas no livro de R. Alexandre, Dias de Luta: “Escutávamos heavy metal e black metal e achávamos uma merda tudo o que havia no Brasil. Não gostávamos de samba, não gostávamos de rock. Era absolutamente normal que fôssemos uma turma separada”.
Mas em meados dos anos 90, a situação era outra. Embora o Sepultura não tivesse aliviado o peso e sua música continuasse adotando tons apocalípticos, Roots abunda em misturas. Sobre bases com muito groove, percebemos timbres industriais e ruídos que lembram cantos guturais do Oriente. Mais marcantes ainda são a presença de vozes indígenas e as africanidades percussivas. A capa era ilustrada por um rosto indígena. A faixa de abertura ganhou um vídeo rodado em Salvador, com personagens e cenários que reforçam um de seus epítetos, o de Roma negra.
A presença negra e indígena ia para além de meras apropriações. Correspondiam a participações efetivas, embora desiguais e limitadas. No caso das sonoridades afros, o protagonismo coube a Carlinhos Brown. Brown era então um músico em ascensão, com colaborações com artistas da MPB e do rock. Sua base, no entanto, vinha do trabalho junto a comunidades negras de Salvador, de onde saíram tanto o samba reggae quanto a timbalada.
Brown está creditado com participações em três faixas de Roots, com uma parafernália: berimbau, djembe, chocalho, pandeiro, reco-reco, xequerê, lataria, garrafão d’água… Alguns desses instrumentos, e mais coisas percutíveis, estão presentes em outras faixas, mostrando que se aprofundara a sonoridade tribal do Sepultura, sem que a brutalidade fosse comprometida.
Do lado indígena, houve uma parceria com o povo Xavante, habitantes de terras localizadas no Mato Grosso. A banda, sua empresária e o produtor de Roots passaram dois dias em uma aldeia. Pintaram suas peles e participaram de danças circulares. As gravações in loco geraram inserções em uma faixa e uma música inteira (“Itsári”), na qual os quatro metaleiros tocam violões e tambores e um coletivo de homens xavante entra com as vozes, chocalhos e percussão corporal.
A colaboração com o povo A’uwe – como os xavantes se autodenominam – ocorreu por conta da intermediação do Núcleo de Cultura Indígena, ONG vinculada a Ailton Krenak e que tinha Angela Pappiani como jornalista. Angela fez a mediação com as lideranças indígenas e sugeriu a participação de Evandro Lopes, técnico de som que já havia trabalhado nas gravações do CD Etenhiritipá, Cantos da Tradição Xavante.
Se para o Sepultura, o projeto envolvia uma parceria – pelas quais os indígenas faziam jus a direitos autorais –, para os Xavante, como mostram as análises e as fontes da dissertação de Flávio Garcia da Silva, foi outra oportunidade para difundir sua cultura e fazer política. Mais duas músicas de Roots mostravam, em suas letras, a preocupação da banda com os povos e seres da floresta (“Ambush” e “Endangered Species”).
É verdade que o álbum anterior (Chaos A.D., 1993) já trazia movimentos que assimilavam elementos afros e indígenas. “Refuse/Resist”, que abre o álbum, começa e termina com uma percussão sincopada, algo que, graças a timbales e tamborins, abunda em Roots. “Kaiowas” é uma instrumental que já foi referida como um baião sertanejo, ou, nas palavras de Andreas, uma fusão de “Led Zeppelin, Olodum e Sonic Youth”. O nome da faixa cita outro povo indígena brasileiro, temática também presente na letra de “Nomad”.
E seria possível recuar ainda mais um pouco, pois a projeção internacional do Sepultura veio acompanhada de sua promoção como uma “banda brasileira” de metal. Isso acabou provocando, sobretudo após Arise (1991), uma reflexão sobre como essa brasilidade poderia se expressar. Mas é em Roots, onde a participação afro-indígena é efetiva, que essa busca gerou um resultado de alto potencial sintético.
“Ratamahatta” é talvez a faixa que melhor expressa isso. É a música que dá maior destaque à participação de Carlinhos Brown, que além da percussão faz um duo com Max nos vocais. A letra é quase toda em português, algo inédito nas composições da banda. E não é qualquer português, mas em palavras que saúdam Zumbi ao lado de Lampião e Zé do Caixão e que assinalam o impacto africano no idioma da colonização (“favela”, “biboca”, fubanga”, etc). Embora o início da música não aproveite as gravações com os Xavante, há ali certamente um diálogo com as vozes indígenas.
Para avaliar o que o Sepultura estava conseguindo fazer, recorramos a um contraponto com o “rock nacional” (tal como se configurou a partir dos anos 80 no Brasil). Nascido também “de costas para o Brasil”, esse rock foi entrando em diálogos com a MPB e na sequência abraçou ritmos regionais. Lembremos de dois exemplos um pouco anteriores a Roots, ambos com influência de sonoridades do metal: o mangue bit de Chico Science & Nação Zumbi e o forró-core dos Raimundos.
Ocorre que o Sepultura saiu menos do lugar em que estava e foi ainda mais fundo no seu encontro com o Brasil. A banda manteve o inglês como língua artística principal, apostando em uma espécie de comunidade internacional de seguidores. Ao mesmo tempo, ela se embrenhou no cerrado para incorporar, mesmo que de maneira limitada, as vozes de povos originários, os primeiros habitantes dessas terras. Bingo!
Em artigo escrito para a Folha de São Paulo em abril de 1996, o antropólogo Hermano Vianna captava o sentido mais geral da aliança entre o Sepultura e os Xavante: “Trata-se do encontro entre tribos inimigas de um ideal de homogeneização nacional que determina que ‘quem não gosta de samba, bom sujeito não é’”. Vale lembrar que o rock brasileiro, especialmente nos anos 90, também já havia apostado em caminhos que iam além da síntese alcançada pela MPB.
Nesse raciocínio, Roots significava uma espécie de conclusão lógica para a busca empreendida pelo rock nacional. No álbum de 1996, o Sepultura conseguiu encontrar mais raízes sem deixar o metal! Isso mesmo que alguma coisa interessante ainda fosse surgir no campo do rock. Por exemplo: Eddie, banda gravada em 1998 pela mesma Roadrunner, que foi capaz de incorporar o frevo e de revelar Karina Buhr, uma das mais interessantes artistas dos últimos tempos.
Por outro lado, esse Sepultura de Roots já estava sendo assimilado pelo rock nacional. Os elogios a Chico Science eram uma evidência. Outra era relação com os Titãs, que começa com a versão de “Polícia” incluída na edição brasileira de Chaos A.D. A banda paulista retribuiu convidando Andreas e Igor para participarem de uma faixa do álbum Domingo. O nome da música não pode ser casual: “Brasileiro”.
Da mesma época, as cenas do VMB da MTV de 1995 são reveladoras: o Sepultura fecha as apresentações, com uma versão eletrificada de “Kaiowas” que culmina com a participação de uma orquestra de tambores integrada por Carlinhos Brown, Charles Gavin (dos Titãs), João Barone (dos Paralamas) e por percussionistas da Nação Zumbi.
Mas a provocadora deshomogeneização empreendida pelo Sepultura tinha limites, e eles aparecem no palco do mesmo VMB, em sua edição de 1998. Ao receberem o prêmio de melhor videoclipe na escolha da audiência, os quatro integrantes dos Racionais MC’s não estavam sozinhos. Muitos “manos”, de várias periferias, subiram junto.
Sobrevivendo no Inferno, álbum de 1997, levou as rimas dos rappers de São Paulo para outro patamar de repercussão. Nele, a deshomogeneização nacional foi provocada a partir de um lugar diferente daquele proposto por Roots. Não abrindo mão das misturas musicais, a “voz da favela” aparecia para contar suas histórias e reclamar um protagonismo que tinha cor. E a visão do Brasil como o encontro harmonioso das três raças era frontalmente desafiada.
As diferenças entre Sepultura e Racionais ficam evidentes quando comparamos suas narrativas musicais do que ficou conhecido como Massacre do Carandiru, uma chacina na penitenciária paulistana em 1992. Enquanto “Manifest” (do álbum Chaos A.D.) emprega um tom jornalístico, “Diário de um Detento” é o relato de quem viveu diretamente o pandemônio.
Cheguemos mais perto do presente para encontrar sintonias com a posição dos Racionais MC’s. Quando foi entrevistado pela BBC Brasil em 2016, o vocalista da banda Arandu Arakuaa descreveu assim seus componentes: “Eu canto como um pajé, com voz mais rouca, e ainda temos um baterista negro. Além de mim, que nasci no Norte e sou descendente de índios, temos integrantes filhos de nordestinos. Tudo isso gera uma série de questionamentos por fugir do padrão do branquelo cabeludo”.
Arandu Arakuaa apresenta-se como uma banda de metal, mas com uma variação grande de estilos. O mais importante: suas letras são compostas em idiomas indígenas. O vocalista afirma que a banda gosta de Sepultura, mas lamenta que Roots tenha “referências indígenas apenas na capa do álbum e em uma de suas faixas”. E assim, o que mais recentemente pode ser visto como um limite, já foi o trunfo de um álbum.
Em um momento em que o número de assassinatos de indígenas bate tristes recordes, não custa lembrar de inimigos comuns em meios às diferenças aqui apontadas. Como se trata aqui de uma homenagem ao Sepultura, deixemos a última palavra para Roots. “Dictatorshit” traça a linha entre 1964 e 1995, vociferando ao final algo que rima bem com o título do álbum dos Racionais: “We still hear the cry / from the ones that survive”. E o português aparece de novo: “Tortura nunca mais!”
* Este texto é dedicado a duas pessoas: Leonardo Campoy, autor do livro Trevas sobre a Luz, que certa vez me presenteou com uma seleção de músicas que contava a história do metal; Jaider Esbell, artista plástico indígena, cujas Entidades, expostas em Porto Alegre, acompanharam a minha escrita e poderiam estar na capa de Roots.
Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).