Rocketman: Verdades e Mentiras
Quem tem o privilégio de alcançar a longevidade tem também a oportunidade rara de olhar retrospectivamente para a própria existência e encará-la como uma obra quase acabada. Sei que muitos jovens fazem tal coisa, sobretudo os introspectivos e melancólicos, mas é um gesto precoce que não tem o alcance da revisão de uma trajetória bem mais longa. Muitas pessoas mais velhas dizem que não estão interessadas no passado, só no presente, mas em algum momento elas devem sentir o peso da vivência ampliada e, por isso, devem guiar seus atos contemporâneos não somente pelas demandas dos desejos mais ardentes e pelas limitações físicas e mentais que decorrem da idade avançada, mas também por um programa mais ou menos delineado (nem sempre seguido à risca, pois a vida é cheia de acidentes e de esquecimentos, alguns deles convenientes) que nega ou reforça a história de toda uma biografia.
A palavra mágica que resume o parágrafo anterior é uma variação daquela que o encerra: autobiografia. “Ao vencedor, as batatas!”, proclama o insano filósofo Quincas Borba no romance de Machado de Assis que leva o nome daquele personagem de ficção. Borba é o criador do Humanitismo, visão de mundo segundo a qual a existência é só conflito e, por isso, reserva aos vencedores o que tem de melhor. Produto da imaginação literária incomum de Machado de Assis, dona de ironia refinadíssima (sem falar na habilidade fora do comum na lida com as palavras e na criação de enredos e de personagens do tamanho da vida, entre outros predicados) o Humanitismo parece sintonizado com os valores do liberalismo contemporâneo, ou neoliberalismo, para o qual o triunfo dos mais fortes é garantia de perpetuação da espécie humana. Aos perdedores reserva-se a lata de lixo da História ou, no mínimo, o esquecimento. Nós, os anônimos, fomos todos criados à sombra dos faraós embalsamados ou inchados de botox, inclusive os faraós da cultura.
Acredito não só que “qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa”, mas também que “a vida de qualquer pessoa” representa seu tempo tanto quanto a de alguém ungido pela fama, pela fortuna, pela sorte, pelo status quo, podem escolher à vontade. A diferença, no caso específico das biografias, é que os anônimos, muitas vezes chamados de “pessoas comuns”, costumam ter suas existências registradas em livros e filmes de forma genérica, impessoal — quase todas as “pessoas comuns” que protagonizam alguma historia são figuras de ficção desenhadas à feição de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos que não gozam de nenhum tipo de notoriedade social. “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”, afirmou George Orwell, escritor cujo pessimismo era e ainda é plenamente justificado pelos fatos.
Rocketman, o filme sobre a trajetória pessoal de Elton John, é uma autobiografia. O roteiro do longa-metragem foi escrito por outra pessoa, mas o produto final passou sob o crivo do biografado. Elton John é um tipo raro de astro pop porque, a despeito da grande fama e fortuna que amealhou ao longo de mais de cinco décadas de atividades, ainda retém um alguns traços de “pessoa comum”. Talvez por conta dos óculos, talvez por conta do fato de que não se encaixa nos padrões apolíneos de beleza, além de não transmitir à primeira impressão a imagem de homem refinado, Elton John não pode aspirar à condição de estátua de mármore de David Bowie, de galã de McCartney e de sátiro de Mick Jagger, nem ao status de referência cultural de Bob Dylan e de Leonard Cohen. O próprio Elton John, dono de um senso de humor autodepreciativo, disse isso muitas vezes em entrevistas. Talvez este seja um dos segredos da longevidade artística de Elton, a proximidade que ele tem com a figura da “pessoa comum”, além, é claro, dos superpoderes musicais que permitiram a ele construir um dos mais belos e consistentes songbooks da era do rock.
Elton é extraordinário criador de melodias populares, capaz de rivalizar com Paul McCartney neste quesito. Em entrevista registrada no documentário Two Rooms: A Tribute to Elton John & Bernie Taupin, de 1991, que celebra a parceria de Elton John com o letrista Bernie Taupin, o cantor diz que expressa todas as suas emoções nas melodias que concebe. E ele as concebe muito rapidamente. O letrista Tim Rice declarou que o músico compôs as melodias das cinco canções que integram a bem-sucedida trilha sonora do filme O rei leão em cerca de uma hora e meia. Além da incomum proficiência melódica, Elton John foi responsável por uma síntese sonora pós-beatle que, nas palavras de Neil Young (registradas no já citado documentário Two Rooms: A Tribute to Elton John & Bernie Taupin), “não era como o rock’n’roll, mas também não era como o pop puro”. Em comentário recente publicado no Facebook, a legendária jornalista Ana Maria Bahiana decifrou em poucas palavras o segredo do som contagiante de Elton John: “Toda a sensacional obra de Elton — e Bernie — é um exemplo perfeito do que chamo de “erros maravilhosos” — quando um criador acha que está fazendo a música que ele ouviu e o fascinou — blues, r&b, country&western, soul — e acaba fazendo algo completamente diferente e totalmente seu”. A atraente fusão sonora proposta por Elton John foi capaz de alcançar crianças, jovens e adultos do mundo todo, sobretudo nos anos 1970 e 1980, décadas em que ele marcou presença com regularidade espantosa nos meios de comunicação de massa, principalmente naqueles comprometidos com a veiculação de música popular.
Alçado à condição de astro popular em 1970, aos vinte e três anos de idade, por meio do single Your Song, do álbum Elton John e de shows cuja musicalidade, repertório e intensa energia tomaram de assalto a cena musical, em particular a norte-americana, Elton John viu sua carreira ascender aos céus como um foguete em poucos anos. De 1973 a 1976, Elton foi literalmente o “rei do pop”. Tornou-se um clichê dos críticos profissionais de cultura pop e de seus seguidores afirmar que a “fase imperial” de Elton John é a que vai de 1970 a 1975. Tudo conspira a favor dessa afirmação, principalmente o ritmo insano de trabalho do músico e de seus associados neste período de explosão criativa (de junho de 1969, época de lançamento do primeiro álbum, Empty Sky, até o final de 1975, Elton publicou dez LPs com material inédito, um deles duplo, um LP ao vivo, uma trilha sonora e vários singles com canções não incluídas nos álbuns de carreira) e o sucesso comercial estrondoso dos discos dele e os shows para multidões — dois deles particularmente marcantes, realizados nos dias 25 e 26 de outubro de 1975 no estádio dos Dodgers, time de beisebol de Los Angeles, que foram vistos por cerca de cem mil pagantes. O próprio Elton John reconhece esta fase como a mais bem-sucedida de sua carreira do ponto de vista criativo e comercial.
Em junho de 1976, o compacto com o dueto de Elton e Kiki Dee, Don’t Go Breaking My Heart, monopolizou as paradas de sucessos planetárias, vendeu milhões de cópias e contribuiu ainda mais para a saturação da imagem do músico inglês na mídia. Em outubro do mesmo ano, Elton publicou o subestimado álbum duplo Blue Moves, que tem canções magníficas em quantidade suficiente para ser chamado de “clássico”, mas que não repetiu a performance comercial assombrosa dos álbuns anteriores e não cativou os (de)formadores de opinião da imprensa musical. Entre os fatores que resultaram no relativo fracasso de Blue Moves e no fim do ciclo virtuoso da carreira de Elton John está a repercussão negativa da entrevista concedida pelo astro para a revista Rolling Stone no mesmo mês do lançamento do disco, na qual ele afirmou ser bissexual. A declaração teve como consequência imediata a retração nas vendas dos discos de Elton John no mercado norte-americano, em especial na região conhecida como Cinturão da Bíblia. Além disso, o músico e seus colaboradores começaram a sentir a estafa resultante de anos a fio de trabalho ininterrupto. O cansaço e a loucura da fama desgastaram a relação de Elton com seus músicos e principalmente com o amigo e letrista Bernie Taupin. Os dois decidiram dar um tempo na parceria e buscaram outros colaboradores: Bernie foi trabalhar com outro amigo, Alice Cooper, e Elton catou um novo letrista, o eficiente Gary Osbourne, para manter a carreira nos trilhos.
Para completar a lista de fatores que contribuíram para o encerramento da fase de ouro de Elton John listamos o estado da arte da música pop na segunda metade dos anos 1970, marcado pela emersão ao mainstream da disco music e do punk, gêneros que representaram novos estilos de vida urbanos e que, por isso, dominaram a cobertura da mídia especializada naquele tempo. O impacto do surgimento da disco music e do punk foi de tal monta que os astros pop da primeira metade da década de 1970 viram-se subitamente transformados em “veteranos” e tiveram que repensar seus passos em um novo cenário comercial e cultural hostil. Alguns artistas retiraram-se do picadeiro pop por alguns anos nessa época, entre eles John Lennon, Paul Simon e Leonard Cohen, mas Elton John decidiu manter-se em evidência no mercado pop, redefinindo sua música e até mesmo o seu visual. Tudo ficaria bem se tal esforço não tivesse sido acompanhado pelo consumo excessivo de drogas e de bebida, pelos gastos desenfreados e pelo pesado sentimento de culpa ligado ao fato de que o cantor precisou esconder sua verdadeira identidade sexual do grande público por medo de represálias pessoais e comerciais. Elton lutou para permanecer no hit parade, mas não lutou pela própria saúde e pela própria sanidade.
Enquanto muitos de seus contemporâneos tornaram-se páginas viradas do folhetim pop nos anos 1980, Elton John continuou a produzir sucessos mundiais: só em 1981 e em 1986 o astro não colocou uma canção no topo das paradas. Por mais doente que estivesse, Elton permanecia capaz de compor belas melodias, de produzir muitas gravações e de fazer muitos shows. Foi no encerramento da década que Elton, exausto, drogadito, bulímico e emocionalmente devastado por conta de um casamento heterossexual que não atendeu seus desejos mais básicos, decidiu procurar ajuda. Quando voltou à cena, estava livre das drogas e da bebida e pronto para assumir-se homossexual sem se importar com o impacto que tal revelação teria sobre sua carreira. Outros sucessos vieram, entre eles a já citada trilha sonora do filme O rei leão e a versão de Candle in the Wind feita para o funeral da Princesa Diana, além do título de ‘Sir’ concedido pela realeza britânica. Elton também encontrou o parceiro que tanto procurou pela vida afora no cineasta David Furnish, com quem casou. Os dois filhos do casal completaram o “final feliz” da história de Elton John, que neste momento realiza gigantesca turnê mundial de despedida dos palcos.
Quase tudo o que foi exposto acima está, ainda que de forma transfigurada, em Rocketman. Durante a produção do filme, Elton e o marido, que é produtor da obra, lutaram para manter as cenas de sexo entre homens e de consumo de drogas que impediriam a exibição de Rocketman para um público mais amplo. A supressão de tais cenas não podia ser admitida porque a história de superação pessoal depende delas: são estas cenas que ilustram a “devassidão” da vida pregressa de Elton John, redimido pelo amor e pelo rehab. Por mais que se mostre ousado, ainda mais quando comparado à débil cinebiografia de Freddie Mercury lançada em 2018, o filme sobre Elton John é também um esforço feito pelo cantor e compositor para reforçar uma leitura muito específica de sua trajetória. É claro que ele, assim como qualquer outra pessoa, tem o direito de fazer tal coisa, mas precisamos reconhecer que as “pessoas comuns” não têm os meios necessários para produzir narrativas controladas e de grande impacto sobre suas vidas. De resto, parece justo suspeitar que cinebiografias produzidas pelos biografados ocultem episódios ainda mais constrangedores do que os divulgados. É correto esperar que narrativas sobre a vida de figuras públicas produzidas fora do alcance das garras dos egos dos biografados tenham mais liberdade para analisar e vida e a obra destes indivíduos, trazendo à tona interpretações e fatos que muitas vezes estão na contramão das usuais peças de propaganda disfarçadas de relatos “honestos” que estamos acostumados a engolir.
Rocketman trata os fatos da vida de Elton John de forma alegórica, rompendo propositalmente com a verossimilhança, para encaixá-los de forma atraente em um filme de cinema. Há um jogo entre a precisão e a imprecisão da memória (ainda mais quando são as lembranças de uma pessoa que viveu por muito tempo sob o efeito das drogas) que permite algumas derrapagens cronológicas, embora certos escorregões forcem muito a barra (o pior deles, quero crer, foi colocar Crocodile Rock, canção de 1973 que foi a primeira de Elton John a chegar ao topo da parada pop norte-americana, no show de estreia do cantor nos Estados Unidos, ocorrido no clube Troubadour de Los Angeles em 1970). Mesmo assumindo seu lado ficcional sem culpa, Rocketman não tem o gume de Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese, documentário de 2019 que embaralha verdades e mentiras sobre uma turnê de Dylan, jogo que remete a Verdades e mentiras, virtuoso e subestimado filme de Orson Welles lançado em 1973. Rocketman é fantasia hollywoodiana sobre um astro que foi ao fundo do poço e conseguiu voltar de lá por seu próprio empenho, ou seja, constrói ou reforça uma lenda; o filme de Scorsese e Dylan (tudo indica que é uma obra conjunta) desafia as convenções e brinca maldosamente com a fé que o espectador deposita no meio, na mensagem e nos mensageiros. Dylan é um prankster contumaz que desafia narrativas fechadas sobre sua arte e sua vida; Elton quer deixar como legado uma versão oficial da sua história em forma de obra cinematográfica, mesmo que ela recorra a elementos fantásticos. O que os esforços cinebiográficos de Elton John e de Bob Dylan têm em comum? A recalibração do status quo dos dois artistas ajustada aos projetos estéticos e existenciais de cada um deles.
Então, ao final, Rocketman não consegue escapar totalmente à condição de peça de propaganda que é própria das cinebiografias “oficiais”, mas escapa, em um drible hábil, da mediocridade narrativa e dos preconceitos que arruinaram o filme sobre Freddie Mercury e oferece ao espectador alguns insights sobre o homem e o artista, sobretudo quando registra a infância do cantor e compositor (não estou aqui endossando totalmente o discurso do filme de que todos os traumas de Elton John decorrem da falta de afeto paterno e materno). E mais, faz isso na forma de um musical bom de ver e de ouvir, que conta com ótimas perfomances dramáticas (com destaque absoluto para Taron Egerton no papel principal) e uma bela trilha sonora produzida e arranjada por Giles Martin, filho e herdeiro artístico de George Martin, o produtor dos Beatles. Talvez seja mais fácil perceber Elton John de modo mais preciso em suas entrevistas, nos discos e nos vídeos que fez ao longo da vida e até mesmo em textos de criteriosos comentadores da cultura, mas Rocketman é um pacote de sons e imagens que possui o poder de atrair o público médio às salas de cinema enquanto agrada e até comove os antigos fãs do homem-foguete do rock.
Zeca Azevedo é. Por enquanto.