O Nordeste real de Juliana Linhares

 

 

Juliana Linhares – Nordeste Ficção

Gênero: MPB, alternativo

Duração: 41 min.
Faixas: 11
Produção: Elísio Freitas e Marcus Preto
Gravadora: Independente

5 out of 5 stars (5 / 5)

 

 

 

 

O que é, afinal de contas, “música nordestina”? É forró, baião, forrock, maracatu, mangue-beat, toadas, baladas, ritmos, ancestralidade, contemporaneidade, canção, saudade e caminho? Ou é tudo isso? Ao longo do tempo, seja por Luiz Gonzaga, Fagner, Alceu Valença, Amelinha, Chico Science ou mundo livre s/a, a entidade musical Nordeste teve várias formas, vários sons e sempre uma identidade com um Brasil diferente aos olhos de quem está no sul do país. Diferente como não poderia deixar de ser, uma vez que, sim, somos muitos países dentro de um só, cujo conceito e ideia andam meio cansados e sem sentido hoje em dia. O fato é que, honrando essa linha evolutiva/artística da música nordestina universal, Juliana Linhares, potiguar, vocalista genial da Banda Pietá, lançou um disco solo em que assume para si esta herança geográfica e leva adiante a continuidade dessa tradição. Em seu álbum, “Nordeste Ficção”, tem esta visão de futuro no presente, banhada de passado e tradição, mas nunca devedora de sentimentos como saudade ou nostalgia. Juliana é um dínamo vocal, uma força da natureza quando canta e chegou para ficar, se tudo der certo.

 

 

Juliana tem uma voz superlativa e uma performance de palco marcante que empresta elementos teatrais muito bem colocados. Com a Pietá ela dá vazão a este lado como um complemento para som que o trio faz, porém, solo, fico me perguntando como ela irá se portar ao vivo, uma vez que neste trabalho mergulha sem cerimônia em vários momentos belíssimos, doces e muito bem escolhidos por ela e pelo diretor artístico Marcus Preto. Tem espaço para tradição e modernidade, em doses iguais e jeitos bem distintos de serem postos. “Nordeste Ficção” é um trabalho que pretende passear pelas referências regionais sem se ater a elas como algo distante ou inacessível. Os arranjos, as performances e as próprias canções dão a impressão de estenderem seus braços para o ouvinte, como se o convidassem para um passeio em um lugar muito mais próximo do que ele supõe. E essa impressão de familiaridade cabe ao poder de síntese que Juliana exibe, tanto na escolha das canções quanto do jeito de compô-las e interpretá-las.

 

 

Tem espaço pra tristeza e alegria ao longo das 11 faixas. Tem a lindeza sofrida de “Armadilha”, de Juliana e Caio Riscado, que fala da falta de perspectivas sobre o futuro sob o ponto de vista político. Tem também a lindíssima “Bolero de Isabel” (de Jessier Quirino), que evoca toda a tradição do imaginário nordestino desde a literatura e a dramaturgia. Tem o reggae/baião, lento e enigmático, de “Tareco e Mariola”, no qual a voz de Juliana alcança níveis impressionantes de sentimento e versatilidade. As duas colaborações de Chico César são sensacionais, cada uma a seu jeito: “Lambada da Lambida”, caribenha, cheia de bossa e vocais femininos tem evocação do amor feminino, enquanto “Embrulho” já aponta para um universo lírico e belo de andanças e desvelos do coração.

 

 

Zeca Baleiro é outro que aparece em “Meu Amor Afinal de Contas”, outra canção bela e lenta sobre as impossibilidades do amor, com arranjo sofrido e que privilegia o sofrimento e incapacidade de lidar com o sentimento. “Aburguesar” é parceria com Letrux, que também participa da gravação, compondo outro momento mais político, com alusão à pequenez dos problemas pessoais da classe média em face da tragédia da pobreza da maioria. E há momentos em que o álbum atinge os píncaros da beleza: “Bombinha”, a faixa de abertura, é do sueco-pernambucano Carlos Posada, na qual Juliana evoca certa semelhança com Amelinha e Elba Ramalho. “Balanceiro” é outra que vai nesta mesma onda, ainda que seja muito mais tradicional e estilizada, nas praias do xote. E “Frivião”, a faixa que encerra o álbum, é mais universal e ampla, porém igualmente vinculada a tudo que se ouve nestes 41 minutos.

 

 

“Nordeste Ficção” é praticamente perfeito. Se ele contivesse o single “Perfume de Araçá”, que Juliana soltou pouco tempo antes do disco sair, ele atingiria um nível ainda maior de excelência. É um trabalho plural, para poucos e raros. Juliana é uma das maiores cantoras brasileiras em atividade e isso não se discute.

 

 

Ouça primeiro: “Bombinha”, “Lambada da Lambida”, “Nordeste Ficção”, “Balanceiro”

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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