Rid Of Me – O afago áspero de PJ Harvey – parte 2

 

 

Antes de começar a leitura deste texto, te lembramos da parte 1, que está neste link aqui.

 

 

Em uma entrevista publicada em 2013 pela revista Spin, o baterista Rob Ellis falou sobre como PJ Harvey se expõe em Rid of Me: “Eu simplesmente presumi que ela estava escrevendo a partir de alguma experiência pessoal, mas também com um olhar poético, uma imaginação de escritora, que não é necessariamente autobiográfica. Obviamente, algumas das letras eram bem fortes, viscerais, então a música tinha que ser algo que combinasse com isso.”

 

 

 

 

A “experiência pessoal” à qual alude Ellis corresponde à mudança de PJ Harvey da interiorana Yeovil para Londres em 1991. Essa mudança incluiu o início de um relacionamento com Joe Dilworth, baterista da Th’ Faith Healers, banda também do selo Too Pure, gravadora que lançou Dry. Ambas as experiências foram dolorosas e levaram Polly a um esgotamento.

 

 

Em agosto de 1992, ela foi se recuperar no litoral de Dorset, perto da região onde vivera toda sua vida. Ali ela terminou de compor as músicas que entrariam em Rid of Me. Tal relato daria sentido ao trajeto percorrido pelas faixas do álbum, tal como apresentadas na primeira parte de meu comentário, do sofrimento à afirmação.

 

 

O problema dessa interpretação é que algumas canções já existiam antes mesmo de Dry ser gravado, em dezembro de 1991. É o caso de “Dry”, “Me-Jane”, “Rub ’til it Bleeds” e “Man-Size”. “Ecstasy” e “Missed” já estavam em repertórios de shows desde junho de 1992, “Rid of Me” mesmo antes, ao passo que “Legs” só aparece em novembro.

 

 

Em suma, Rid of Me é sim uma espécie de exorcismo de experiências pessoais. Mas é também um exercício criativo, apenas em parte baseado numa biografia. Nos dois primeiros álbuns, já notamos muitos sinais da PJ Harvey que futuramente inventará personagens para cantar sobre elas. Que sejam femininas não é mero acaso.

 

 

Em se tratando das letras de PJ, uma questão incontornável é a das relações de gênero. Gênero é uma dessas dimensões constitutivas da vida humana – não uma “ideologia” inventada por mentes doutrinadoras. Alguns artistas tematizam em suas obras essa dimensão – é o caso de PJ Harvey, por meio não só de suas letras, mas também do seu visual e o dos seus álbuns.

 

 

Causou certa surpresa quando em entrevistas de 1992 e 93 PJ Harvey negou assumir uma postura feminista. Tampouco ela quis ser assimilada a um movimento importante em termos de questões de gênero no rock alternativo, o riot grrrl. Talvez a cantora inglesa não quisesse reduzir sua arte a rótulos que não captassem as várias camadas de sua experiência.

 

 

Como nos conta J.R. Blandford com base em entrevistas da artista, Polly lembra de ter ficado desapontada quando soube que precisava usar vestidos ou outras coisas diferentes dos meninos. Ela se acostumou a andar com os amigos de seu irmão mais velho e a companhia masculina não era algo que a incomodasse.

 

 

Ao mesmo tempo, ela cultivava certa androginia, algo que acompanha a aparência de PJ Harvey desde cedo. Na época do ensino médio, ela foi confundida com um rapaz. Em 1991 e 1992, seu visual rendeu comparações com Patti Smith, uma artista que PJ admirava. Em algumas letras, o gênero de quem narra ou é objeto da narrativa não é definido. E a feminina “Polly Jean” tornou-se uma não identificada “PJ”.

 

 

Por outro lado, os gêneros surgem bem marcados por meio do recurso aos pronomes ou de imagens nas letras, tanto de Dry, quanto de Rid of Me. Percorrendo essas letras, podemos enxergar vários encontros entre pernas e vestidos, entre cobras e sheela-na-gigs. Mas a presença de termos supostamente complementares não gera mais definições, pois os lugares são subvertidos.

 

 

O mesmo se pode dizer do jogo de imagens entre a capa e a contracapa do encarte de Dry (estou me referindo ao CD). De um lado, uma boca em close, mostrando alguns pelos, desfigurada por uma mancha (o que teria tentado penetrar nesse lugar que expele palavras?); de outro, um batom, objeto “feminino” exibido evidentemente como um falo.

 

 

Ou podemos pensar ainda no jogo de vozes entre Harvey e Ellis. Assim como acontece em algumas músicas da Pixies, feminino e masculino estão “trocados”, pois a voz da mulher é mais grave que a voz do homem. Ellis cantando em falsete a parte “Lick my legs” em “Rid of Me” é a ocorrência máxima dessa inversão, também ouvida em “Highway 61” e outras faixas.

 

 

E não ignoremos a explosão de mensagens, nenhuma delas muito direta, no vídeo de “Man-Size”. Após uma rápida aparição que sugere uma dança flamenca (PJ apenas segura um vestido, com um rosa entre os lábios), vemos a cantora sozinha, sentada diante da câmera. Usa apenas calcinha e um top com estampa de Marylin Monroe. Sexy? Talvez, mas certamente também o seu contrário, a ironia evidente, inclusive no momento em que uma meleca se desprende do nariz…

 

 

A letra de “Man-Size” – lembremos, a faixa figura em duas versões em Rid of Me – pode sugerir um homem ridiculamente exposto em seus passatempos com garotas da hora e botas de couro. Mas faz mais sentido ver nela a experiência de uma transformação: atingindo “o tamanho de um homem”, a mulher não precisa gritar. Isso é feminista? Por que não poderia ser?

 

 

Já o vídeo de “50Ft Queenie” – a letra é novamente sobre uma mulher de tamanho avantajado – tem estilo bem diferente e capta outra dimensão ainda da artista. Nas filmagens a banda aparece inteira. Mas enquanto a câmera está frenética caçando Steve e Rob, ela se detém sobre PJ Harvey: vestido vermelho curto, casaco de oncinha, óculos escuros… Polly, sua exibicionista! Embora o sorrisinho no final deixe ver que nada ali é muito sério.

 

 

Mas o que esse vídeo mostra estava realmente acontecendo nos palcos. Em 1993, PJ deixa para trás o visual recatado que caracterizava sua presença nos shows até então. Vestidos noturnos e echarpes fru-fru tomam o lugar do preto básico.

 

 

A transformação é bem captada no vídeo documentário lançado em 1994, Reeling with PJ Harvey, dirigido por Maria Mochnacz, com cenas de shows do ano anterior. Há muitas passagens de bastidores com PJ experimentando figurinos, buscando novas formas de expressar-se. Também temos a chance de conhecer o cenário no qual ocorreu o clique que resultou na capa de 4-Track Demos, lançado ainda em 1993. Outro falo desponta, agora por meio de uma câmara fotográfica. Além de complicados exercícios vocais, PJ protagoniza boas risadas, ela que canta tantas atrocidades em Rid of Me.

 

 

PJ desarmava expectativas, não para revelar alguma verdade, mas para experimentar outra personalidade. Esse jogo de esconder-revelar, sob outra estética, estava na capa de Rid of Me: a foto feita no banheiro de Maria Mochnacz sugere nudez, mas PJ aparece quase irreconhecível. Se fosse possível resumir as letras do álbum em uma única frase, arriscaria dizer: uma mulher de força gigantesca, inclusive no sofrimento.

 

 

Havia, no entanto, outra coisa acontecendo: a transformação de PJ não estava sendo acompanhada por seus colegas de banda. A distância entre as experiências e as expectativas e também o extenuante ritmo de shows fragilizaram os laços entre o trio. E ele se desfez em agosto de 1993, depois que a banda participara da tour do U2 pela Europa, já tendo passado pelo Japão.

 

 

PJ começou a fazer apresentações solo, a primeira das quais em um programa de TV nos Estados Unidos. Em outubro, a Island lançou 4-Track Demos, o material que convenceu Albini a produzir Rid of Me. Nessas gravações, figura apenas PJ.

 

 

O desmanche do trio foi o começo de novos caminhos para PJ Harvey. Liricamente, há muitas continuidades entre os dois primeiros álbuns e seu sucessor, To Bring You My Love (1995); sonoramente, as diferenças são enormes.

 

 

Talvez a imagem que melhor resuma esse momento de passagem é a apresentação de PJ Harvey no Brit Awards de 1994. É um dueto com Björk, outra artista em ascensão com o lançamento do seu primeiro álbum solo. Empunhando a guitarra, PJ canta, como nenhum homem seria capaz, “(I Can’t Get No) Satisfaction”.

 

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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