Rid Of Me – O afago áspero de PJ Harvey – parte 1

 

 

 

Rid of Me, segundo álbum de PJ Harvey, é o sucessor de Dry. A banda por trás de ambos é a mesma, com Polly Jean Harvey no vocal e na guitarra, Rob Ellis na bateria e Steve Vaughan no baixo. Sugiro que você leia meu comentário de Dry, pois há várias continuidades entre os dois álbuns. No entanto, com Rid of Me, lançado em maio de 1993, PJ Harvey torna-se grande, em vários sentidos. Para a revista Rolling Stone e sua lista de 2020 dos “500 Melhores Álbuns de Todos os Tempos”, ele está na posição 153.

 

 

 

Das entranhas às alturas

 

Se você seguiu minha sugestão, deve ainda estar de joelhos em devoção a Dry (1992). Pois para começar a escuta de Rid of Me, melhor ir ao chão. Deite na posição que preferir.

 

 

A faixa título inicia baixinho, dá para pensar que tem algo errado no volume. PJ sussurra: “Amarre-se em mim, em ninguém mais / Você não está livre de mim”. O pedido humilhado convive com a ameaça atroz: “Eu vou fazer você lamber minhas feridas”. Do nada, uma explosão sonora, as vozes que pertencem a quem se dirige a música: “Você nunca vai querer conhecê-la!” contracenando com “Lamba minha pernas, estou em chamas / Lamba minhas pernas, sou desejo”.

 

 

Poderia ser o mesmo relacionamento cantado no começo de Dry, que abre com “Oh My Lover”: “Você não sabe que está tudo certo? / Você pode me amar e amar ela ao mesmo tempo”. Mas, como percebemos, a passividade está transtornada. “Rid of Me” abala geral, e eu avisei que era melhor deixar a cabeça perto do chão.

 

 

A segunda faixa, “Missed”, também pode enganar. Acordes delicados costuram a melodia. Mas quando soa a voz de PJ, ela é de uma melancolia cortante. Na letra reaparece a religião desconcertante que percorre várias faixas de Dry. O narrador da canção junta-se a Maria para lamentar que Cristo não se deixe mostrar, ele que é “tão grande”. Uma espécie de arquétipo masculino, a quem a devoção é ilimitada? À medida que evolui, a música vai ficando mais ameaçadora, terminando num riff abrupto.

 

 

 

 

Em “Legs”, o celestial torna-se bem rasteiro. Uma voz encorpada acalma-se para anunciar: “Você é divino / Já lhe disse que você é divino?”. Ou “era”, como logo vamos saber: “Eu lhe disse, quando você estava vivo?”. Entram os demais instrumentos e o som é arrastado, infernal. Um grito de horror sucede a notícia: “Tive de aliviar minha dor de cabeça / Não teve outro jeito, cortei fora suas pernas”. Entre matar e morrer, uma escolha foi feita.

 

 

A impiedade continua na faixa seguinte, “Rub ’til it Bleeds”. Disfarçada sob afagos usados para atrair um amante desavisado. A música vai crescendo e o estratagema vai se revelando: “Deite-se calmamente / Descanse sua cabeça em mim / Vou afagá-la bem / Vou esfregá-la até sangrar”. E então explode: “E você acreditou em mim / Caiu de novo / Estou lhe chamando de fraco / Acertando as contas”.

 

 

“Hook” reintroduz a figura de um homem poderoso, capaz de tudo modificar. Com ele, ela se torna uma rainha; ele vai embora, após deixar sua mancha, e ela está de volta ao nada. A guitarra de PJ soa ensandecida, como nas faixas anteriores cheia de distorção.

 

 

E então, depois de muito barulho alternado com calmarias, temos um sexteto de cordas. Hora agora de ficar em pé, não como um gesto de elevação, mas por que é assim que mais se sente a vertigem. De fato, “Man-Size”, no arranjo composto por Rob Ellis (ele também havia se ocupado dos movimentos de um violoncelo em “Plants and Rags”, de Dry), é repleta de variações e momentos dramáticos.

 

 

Porém, a letra completa a passagem para um narradora que se impõe, que deixou para trás a devoção, humana ou divina, e agora está ela mesma grande. “Man-Size” repete-se ainda em versão prá lá de elétrica, em um andamento tenso, como se estivesse se equilibrando na beira de um abismo.

 

 

Na sua versão acústica, a música é sucedida por “Highway 61 Revisited” – isso mesmo, a canção de Bob Dylan de seu álbum homônimo de 1965. Sua letra faz uns tipos disparatados, incluindo o Abraão bíblico, irem todos para a mesma rodovia. Essa peça monótona de humor torna-se intensa no arranjo do trio, com destaque para a bateria de Ellis.

 

 

Em “50ft-Queenie” PJ aparece grande novamente, tão grande que é inalcançável. De novo ela é também rainha, mas agora não deve nada a homem nenhum. A inspiração vem do filme O Ataque da Mulher de 15 Metros, de 1958. O trio executa um blues rapidíssimo, com algumas clareiras aqui e ali.

 

 

“Yuri-G” evoca o nome do astronauta russo em uma ode à lua. Ou Luna, personagem feminino, que atrai e é atraída pela narradora. Se há uma reincidência na devoção, ela é mais pagã do que cristã, e está dedicada a uma mulher. O som é furioso.

 

 

“Dry”, lançada originalmente no single que destacava “Dress” em 1991, é regravada para constar de Rid of Me. A slide guitar de PJ confere tons até alegres à melodia. Na letra, uma mulher impiedosamente sincera: apesar de sua sede, não importa o que alguém lhe faça (e não é pouca coisa), ela está seca. Mais do que isso: “Você me deixa seca”.

 

 

“Me-Jane” tem como protagonista Jane, ela mesmo, a “mulher do Tarzan”. A letra retrata uma parte não muito agradável da vida conjugal na selva: uma Jane irritada por ser o tempo todo coadjuvante de um companheiro pouco recíproco. Novamente a bateria de Ellis valoriza o blues enraivecido de PJ.

 

 

“Snake” revisita a Bíblia, bem no começo de tudo. A cobra não apenas mostra a fruta proibida, como é ela mesma essa fruta. Comida, a cobra também penetra o corpo da mulher. Eva tenta explicar isso tudo para Adão, dirigindo blasfêmias ao animal. A música é de uma violência atroz, brutal, com cada palavra cuspida feito um projétil.

 

 

“Ecstasy” é um blues envenenado. Sem destoar da atmosfera do álbum, tem um andamento mais lento, a dinâmica cheia de espaços e de elevações. Se no final de Dry PJ mergulha na água, na última faixa de Rid of Me, ela flutua, voa, canta. Uma vez mais, implora para que alguém olhe para ela. Mas agora ela está no alto, em êxtase. Você aí de pé consegue segui-la?

 

 

Albinografias

Steve Albini foi o cara que a banda contatou para produzir Rid of Me. PJ apreciava o que Albini conseguia fazer: uma sonoridade tangível, como se o ouvinte estivesse compartilhando o mesmo espaço do artista. POD da Breeders e Twezz da Slint eram referências, mas a principal inspiração era o Surfer Rosa da Pixies.

 

 

A dinâmica quiet-loud criada pela Pixies certamente estava no DNA do som do trio. Ellis, em entrevista de abril de 1992, dá a pista: “É preciso conseguir ir de um sussurro para um grito assim (estalando os dedos). E eu não acho que tenhamos isso em Dry”. Pois “Rid of Me”, que dá o tom para o álbum, é exatamente isso.

 

 

Na verdade, a banda fez uma primeira tentativa de gravação do segundo álbum em junho de 1992 na Inglaterra. Dessas sessões, saiu o registro de “Man-Size Sextet” que foi para Rid of Me. Mas o restante não foi considerado satisfatório.

 

 

Desde o início do ano o trio era parte do cast da Island, controlada pela Polygram. Manteve-se o acordo com a Too Pure em relação ao primeiro álbum, mas a Island estava ansiosa para anunciar o que seria Rid of Me.

 

 

PJ enviou para Albini uma fita com músicas gravadas desde o final de 1991 até outubro de 1992. Albini adorou e o acordo foi que PJ, Rob e Steve seriam hóspedes do Pachyderm Studio, o lugar que o guitarrista da Big Black construiu ao lado da casa onde morava em Minnesota, Estados Unidos.

 

 

Foi tudo muito rápido, em meio à neve típica do inverno na região. As sessões começaram em 5 de dezembro de 1992 e foram até o dia 18. Isso incluiu a mixagem, pois para a execução das faixas foram apenas sete dias.

 

 

Era o estilo Albini de trabalhar: produção básica, sonoridade abrasiva. Tentar burilar, fazer mais polido, poderia estragar um prato melhor servido cru. Mas havia alguns truques na produção dessa crueza: passar a voz pelo amplificador, como ocorreu em “Yuri-G” e “Hook”.

 

 

Os anos de 1992 e 1993 são bastante férteis para as criações de PJ Harvey. Na fita demo que funcionou como prévia para Rid of Me há seis músicas que não entraram no álbum. Sabemos que “Reeling” foi gravada com Albini em versão incluída no single de “50Ft Queenie”. “Hardly Wait” é cantada pela personagem de Juliette Lewis à frente de uma banda no filme Estranhos Prazeres, de 1995.

 

 

Em março de 1993, o trio voltou ao programa de John Peel na Rádio BBC e apresentou quatro músicas, nenhuma delas incluída no Rid of Me que seria lançado dois meses depois. “Naked Cousin” entraria na trilha sonora de O Corvo – A Cidade dos Anjos. “Wang Dang Doodle” é versão de uma música do bluesman Willie Dixon, incluída no outro single de 1993, que destacou “Man-Size”.

 

 

O blues continua a ser uma das principais inspirações para PJ Harvey no modo de compor com a guitarra. O slide aparece em algumas faixas de Rid of Me. O blues de PJ é singular, não funciona por uma associação direta ao gênero, mas como uma atualização que acumula muitas outras referências.

 

 

Se em Dry o baixo de Vaughan tem papel importante em várias músicas, ele é menos marcante em Rid of Me, cedendo espaço para a bateria de Ellis. Ela tem um estilo muito singular, lembrando o que na década de 90 vai ser chamado de pós-rock, mas com mais punch. Evitando ou complexificando o 4×4, suas levadas são essenciais para a força do álbum, algo que a produção de Albini soube valorizar.

 

 

Quando Albini quis mostrar o seu currículo para a Nirvana, escolheu Rid of Me. A banda não teve dúvidas com quem gostaria de trabalhar para gravar o sucessor de Nevermind. Mas há quem ache que o produtor sufocou a voz de PJ Harvey. E há quem ache que a atmosfera captou com perfeição a aspereza das canções.

 

 

De todo modo, PJ Harvey não estava presa a Albini. Não só “Wang Dang Doodle”, mas também a cabaresca “Daddy” – que aponta para direções que PJ Harvey seguiria no futuro – não tiveram a participação do americano. Vale conferir as versões demo de Rid of Me, distribuídas entre 4-Track Demos, lançado no mesmo ano do álbum, e B-Sides, Demos & Rarities, compilação recentemente divulgada. Antes de dormir, delicie-se ou atordoe-se com uma das faixas que ficou de fora de Rid of Me, “Goodnight”.

 

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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