Dez anos sem Solomon Burke.

 

 

Soul music é uma forma de arte eminentemente vocal. A voz é o início, o fim e o meio da soul music, gênero que é mutação do gospel negro surgido nas igrejas batistas dos Estados Unidos. Nas igrejas, os negros norte-americanos podiam (ainda podem) expressar livremente com suas vozes e seus corpos toda a dor provocada pela discriminação racial a que eram (são) submetidos desde sempre no mundo dominado pelos brancos. Em geral, o acompanhamento instrumental do gospel negro nas igrejas é feito somente por um órgão ou um piano e alguns instrumentos de percussão leve, ou seja, é mínimo. Toda a força e a beleza da música das igrejas negras dos Estados Unidos está nas vozes altissonantes dos solistas e dos integrantes do coro.

 

As vozes das igrejas batistas negras estadunidenses encontraram vereda aberta no campo da música popular laica quando, nos anos 1950, Ray Charles transformou hinos religiosos em canções maliciosas de R&B. Ray apontou o caminho das pedras preciosas para astros da música gospel como Sam Cooke, que abandonou o circuito religioso para tentar a sorte no mercado pop também naquela mesma década.

 

Vozes são a matéria-prima da soul music. Gravações de cantoras e cantores como Aretha Franklin, Otis Redding, Gladys Knight, Carla Thomas, Etta James, Curtis Mayfield, Stevie Wonder e Linda Jones (entre muitos outros) emocionaram e ainda emocionam pessoas em todo o planeta. Para conseguir algum destaque em meio à concorrência feroz, cantores de soul precisavam colocar todos os recursos vocais de que dispunham à serviço das canções.

 

Sabemos que o bom cantor ou cantora não depende somente da beleza do timbre ou da grande extensão vocal que possui, mas também da técnica e da capacidade de compreender integralmente o repertório que canta.

 

Solomon Burke foi a arte da voz e a voz da arte. Ninguém cantava como Solomon Burke. Ele foi capaz de abrir a voz para ser ouvido pelos anjos e arcanjos que moram no topo do céu e também de cantar de forma extremamente íntima,  sussurrando ao ouvido de cada pessoa. Foi, acima de tudo, um mestre cantor: nunca vocalizava além da conta, fazia uma leitura inteligentíssima das canções sem abrir mão do aspecto emocional provocado pela melodia e pelo texto.

 

Solomon Burke foi dono de delicadeza rara entre cantores populares – e até entre cantores de soul, que geralmente entoam do púlpito para as multidões. Nem mesmo Al Green foi tão delicado. Solomon foi um gigante que podia flanar como um passarinho. A voz dele era como o ar, leve e sutil, mas capaz de derrubar as estruturas mais sólidas quando se apresentava de forma mais intensa. Solomon Burke sabia o momento certo para destacar uma sílaba, uma palavra ou uma frase, para deslizar sobre a canção ou para desabar sobre ela. Como todo grande narrador/sermonista/cantor, também conhecia a importância da pausa e do silêncio. A variedade de emoções que Solomon cobria com a voz era mais ampla do que a de grande parte dos colegas dele.

 

Solomon Burke foi um homem grande. O excesso de peso o impedia, nos últimos anos de vida, de ficar em pé no palco para cantar. Ele cantava sentado, como se estivesse em um trono real. Era uma imagem poderosa, mas o real poder de Solomon emanava da música que fazia, em especial da voz sagrada de barítono que saía dele.

 

A história pessoal de Solomon Burke é digna de filme. Ao nascer, em 1936 ou 1940, dependendo da fonte, Solomon foi consagrado Bispo da United House of Prayer for All People pela avó, que fundara uma sede desta igreja na Philadelphia, isto é, ele já nasceu comprometido com a religião. Aos sete anos de idade, ele era o Wonder Boy Preacher que realizava sermões na igreja da avó e em igrejas pentecostais negras. Adulto, Solomon Burke tornou-se arcebispo da igreja que ele mesmo fundou, “House of God for All People”.

 

Nas apresentações coletivas de soul music nos anos 1960, Solomon descolava uma graninha a mais vendendo galinha frita, pipoca, refrigerantes e sanduíches de costeleta de porco para seus colegas artistas. Ele foi dono de funerárias, farmácias, restaurantes e de um serviço de limusines. O homem sempre precisou fazer dinheiro, pois teve quatorze filhas e sete filhos (que geraram noventa netos). Solomon não foi uma figura sofrida como muitos cantores negros de sua geração, foi um homem positivo, forte, cheio de vida, carismático e incansável. A combinação de atividades espirituais, artísticas e comerciais empreendidas por Solomon Burke tinha precedente na figura do Bispo Charles Manuel “Sweet Daddy” Grace, o fundador da United House of Prayer for All People da qual a avó do cantor era devota. O Bispo “Sweet Daddy” vendia salvação da alma junto com sabonetes, pastas de dentes, café, bolachas, talco e outros produtos mundanos.

 

À primeira vista, Solomon Burke pode parecer um Falstaff por conta da personalidade forte, da diversidade de interesses pessoais e da figura imponente, mas ele foi um homem dotado de compaixão e e de sensibilidade refinada. Solomon foi um excelente contador de histórias, capaz de controlar multidões e serpentes com suas narrativas. Solomon foi fã declarado de country, gênero dominado por canções que contam histórias de amor e de sofrimento. Durante sua carreira fonográfica, que começou em 1955, Solomon Burke foi o principal proponente do country-soul ao lado de Ray Charles e gravou muitos clássicos deste subgênero, incluindo seus primeiros grandes sucessos, “Just Out of Reach” e “Cry to Me”, lançadas em compacto pelo selo Atlantic em 1961. Solomon foi responsável por algumas das mais impactantes e belas gravações da história da soul music no período em que fez parte do cast da Atlantic Records. Em 1965, Solomon Burke era um dos maiores vendedores de discos da companhia, mas na segunda metade dos anos 1960 os hits começaram a escassear e a Atlantic passou a investir mais em artistas como Wilson Pickett e Aretha Franklin.

 

Em 1969, Solomon deixou a Atlantic e lançou o LP Proud Mary pelo selo Bell. Como o nome indica, o LP contém uma (excelente) versão do sucesso do grupo de swamp rock Creedence Clearwater Revival. O autor de “Proud Mary, John Fogerty, fã doente de soul e R&B, aprovou de forma entusiasmada a releitura que Solomon Burke fez da sua canção.

 

Nos anos 1970, Solomon Burke continuou a lançar belíssimas gravações de soul music com inflexões de country, mas aventurou-se por outros estilos como o funk (na trilha sonora do filme Cool Breeze, publicada em 1972 pela MGM Records), a soul music erótica à feição de Barry White (no LP Music to Make Love By, lançado pela Chess em 1975) e a disco music (no LP que fez em parceria com o incomparável Swamp Dogg, Sidewalks, Fences and Walls, de 1979). No entanto, nem as joias de country-soul que produziu em quantidade invejável e nem o flerte com ritmos do momento renderam a Solomon Burke lugares nas paradas de sucessos pop.

 

A carreira fonográfica do cantor estendeu-se de forma discreta pelos anos 1980 e 1990, recebendo elogios da crítica especializada e a indiferença do grande público. Ao vivo, Solomon continuava a arrebatar corações e mentes a cada apresentação. A voz de Solomon Burke permaneceu como objeto de adoração entre fãs de soul durante mais de cinquenta anos. Entre os admiradores de Solomon estavam alguns dos grandes compositores do rock e de música popular do século passado, como Bob Dylan e Van Morrison. Em 2002, o produtor fonográfico Joe Henry obteve para Solomon Burke um repertório de canções escritas por estes dois compositores e mais Elvis Costello, Nick Lowe e Brian Wilson, que foram incluídas no álbum Don’t Give Up On Me, lançado naquele mesmo ano. O álbum recebeu grande destaque na imprensa especializada, recolocou o nome de Solomon Burke na mídia hegemônica e rendeu ao cantor o Grammy de Melhor Álbum de Blues Contemporâneo. Foi o primeiro Grammy de Solomon Burke.

 

Ainda que tardio, o reconhecimento deu novo gás à carreira do cantor. Em julho de 2003, ele participou de um show dos Rolling Stones em Paris, no qual cantou seu clássico “Everybody Needs Somebody to Love, que a banda inglesa regravou em 1965. No palco, à vista de milhares de fãs dos Stones, Mick Jagger colocou na cabeça de Solomon Burke uma coroa e curvou-se como bom súdito da realeza da música negra norte-americana.

 

Solomon Burke lançou quatro álbuns excelentes entre 2005 e 2010, entre eles a obra-prima Nashville, de 2006, gravada na capital da country music com músicos e estrelas do gênero como Dolly Parton, Patty Griffin e Emmylou Harris. Ele ainda estava na ativa, realizando shows pelo mundo e gravando discos aos setenta anos. Isso tudo até 10 de outubro de 2010, dia em que morreu. Ele estava em turnê pela Europa. Não foi determinado se Solomon faleceu no avião que o transportava para a Holanda ou no aeroporto, já em Amsterdã.

 

Talvez pela sofisticação do seu canto, Solomon Burke não tenha sido um artista estimado pelo indiferente consumidor médio de música pop. O cantor nunca teve uma gravação nos primeiros lugares das paradas de sucessos, ainda que tenha influenciado alguns dos principais nomes do rock e da black music. Até na literatura pop de Nick Hornby encontramos Solomon Burke. No livro Alta fidelidade, de 1995, o personagem principal, Rob Fleming, cita “Got to Get You Off My Mind”, de 1965, como uma de suas canções favoritas – e tenta, inutilmente, fazer um bando de ingleses brancos e sem suíngue dançar ao manhoso ritmo midtempo da faixa.

 

Nothing’s Impossible, o último álbum que o cantor lançou em vida, foi editado em 2010 e marcou também o fim da carreira de Willie Mitchell, legendário produtor e músico responsável pelas gravações de Al Green, de Ann Peebles e da galera do selo Hi de Memphis nos anos 1970. Willie Mitchell morreu em janeiro de 2010.  Nothing’s Impossible é um álbum belíssimo e indispensável, assim como quase todos os itens da discografia do cantor, que podem ser encontrados nas plataformas de streaming mais manjadas, ou seja, só não conhece a arte e a sabedoria do rei Salomão quem não quer.

 

Zeca Azevedo

Zeca Azevedo é. Por enquanto.

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