Quando o Marillion se reinventou

 

 

 

O Marillion era uma banda grande na década de 1980. Começou como um representante meio isolado de um neoprogressivo inglês que não chegou a virar movimento estético e precisou gravar dois álbuns e vários singles para chegar a uma inesperada fama mundial. Tal fato veio em 1985, quando lançou seu terceiro trabalho, o emblemático “Misplaced Childhood”, que trazia o megassucesso “Kayleigh” entre outras canções memoráveis. A partir daí, muita gente passou a conhecer o vocalista Fish, uma criatura exótica, literata, performática e peculiar. Além dele, o grupo trazia quatro excelentes músicos: o guitarrista Steve Rothery, o baixista Pete Trewavas, o tecladista Mark Kelly e o excelente baterista Ian Mosley, sujeitos capazes de criar e sustentar belas melodias e arranjos dentro de um espectro sonoro que envolvia tanto o progressivo mais clássico, tendo o Genesis de meados dos anos 1970 como inspiração básica, como uma vertente leve e controlada de hard rock oitentista. Fechando a conta, os caras ainda tinham o tino para compor baladas campeãs, caso da própria “Kayleigh”. Pois bem, o Marillion, como dissemos, era uma banda grande.

 

 

Nesta condição, foi com surpresa que o mundo recebeu a notícia de que Fish deixaria o grupo após gravar o disco subsequente a “Misplaced…”, “Clutching At Straws”, em 1987. O motivo: desentendimentos entre o vocalista e a política de gestão da carreira da banda, que, segundo ele, exauria os músicos, pagava dinheiro pesado ao empresário e ainda impedia que o lucro fosse mais justo. Para surpresa de Fish, o restante da banda não concordava com sua postura e tal fato precipitou sua saída. Ele cumpriu a agenda de shows até meados de 1988, com a turnê de “Clutching…” e embarcou numa carreira solo que, apesar de bem sucedida inicialmente, jamais chegou no mesmo nível do que o Marillion conseguiu sem ele. Para encerrar o ciclo com Fish, o grupo lançou um último trabalho, o duplo ao vivo “The Thieving Magpie”, que trazia uma boa amostra dos shows que a banda vinha fazendo em uma espécie de turnê contínua. Depois dele, uma merecida pausa para pensar num substituto e, a partir disso, num novo som, numa nova pegada. Seria necessário o surgimento de um novo Marillion?

 

 

A chegada do novo vocalista aconteceu em janeiro de 1989. Steve Hogarth, que havia participado de um grupo chamado The Europeans, e que não tinha qualquer álbum do Marillion em casa, iniciou ensaios com o grupo e, em março, já estava efetivado. Hogarth trazia um registro vocal bem distinto de Fish, mais rascante, mas talvez mais versátil que o antigo vocalista. Além disso, “H”, como passaria a ser chamado pelos fãs, também tocava teclado e compunha. Esta última habilidade seria necessária, uma vez que Fish deixara a banda, levando consigo as letras que já havia escrito para um eventual novo álbum. Com o trabalho começando no primeiro semestre de 1989, provavelmente o Marillion lançaria seu quinto disco de inéditas em algum ponto do segundo semestre daquele ano. Dito e feito: em setembro surgiu o espantoso “Seasons End”, um trabalho que refletia bem o espírito daquele tempo, com canções politizadas, extremamente bem arranjadas e que, sim, apontavam para um Marillion revitalizado, reenergizado. Este trabalho está sendo relançado agora, em uma edição que contém 3CD’s e 1DVD, além de uma versão em vinil quíntuplo. Em ambas estão presentes uma versão remasterizada do álbum original; uma apresentação completa do repertório do disco em Leicester, no Montfort Hall, gravada em 29 de maio de 2022 e outro registro ao vivo, gravado em 2 e 3 de março de 1990, em Montreal, no Canadá. A parte em blu ray traz dois documentários: “Seasons Change”, sobre as gravações do álbum e “From Stoke Row To Ipanema”, sobre a turnê na qual a banda embarcaria para divulgar o novo disco, que passaria pelo Brasil no início de 1990.

 

 

“Seasons End”, como o nome já diz, apresentava um Marillion bem mais politizado que de costume. A faixa-título, um épico maravilhoso sobre ataques ao meio ambiente, assumia uma postura que, como dissemos, refletia bem o que acontecia no mundo naquele fim de década. “Uninvited Guest”, por exemplo, é sobre a AIDS. A bela baladona “Easter” falava sobre a união das pessoas sob o manto da boa vontade e da tolerância, mirando na situação étnica e religiosa da Irlanda do Norte. “The King Of Sunset Square”, que abre o álbum, é sobre o massacre da Praça da Paz Celestial, em 4 de junho daquele ano e “The Holloway Girl” fala sobre o tratamento duríssimo que o governo britânico dava a doentes mentais naquela época, optando por, dependendo do diagnóstico, internar a pessoa numa instituição penal. Por fim, “Berlin” é outra canção de natureza política, falando sobre a cidade dividida e sua situação ao longo dos últimos anos. Não por acaso, o Muro de Berlim cairia menos de três meses depois do lançamento de “Seasons End”, em 9 de novembro de 1989. Musicalmente falando, o Marillion avança em relação ao que fizera em “Clutching At Straws”, seu disco anterior, mas não muito. Há um desenvolvimento notável nas melodias e nos arranjos, algo que se notara logo no primeiro single do novo trabalho: “Hooks In You”, um quase hard rock com nítida têmpera pop, que surpreendeu fãs novos e velhos naquele momento.

 

 

Entre 8 de junho e 18 de dezembro de 1989, o Marillion testou o repertório de novas canções em concertos dados na Europa, especialmente na Inglaterra. Em janeiro de 1990, o grupo iniciou uma turnê mundial com altíssima demanda de apresentações e, pela primeira vez, veio ao Brasil para duas apresentações no Hollywood Rock. Em São Paulo, o grupo subiu ao palco no dia 19 de janeiro e, uma semana depois, no dia 26, adentrou a Praça da Apoteose, no Rio, para um inesquecível show que este escriba testemunhou in loco. Hogarth parecia ter sempre pertencido ao Marillion, tamanha sua desenvoltura no palco, mesmo nas canções que marcaram a chamada “Era Fish”, como, por exemplo, “Kayleigh” e a sensacional “Hearth Of Lothian”. Depois das apresentações brasileiras, a banda rumou para Montreal – cujos concertos foram inseridos nesta novíssima versão de “Seasons End”.

 

 

São poucos os casos em que um grupo sofre uma transformação em seu lineup e consegue soar maior e melhor que antes, especialmente com o ex-integrante continuando a fazer música muito próximo do que fazia quando na banda. Tudo bem que ainda há gente que diz que “nos tempos do Fish era melhor”, mas o Marillion com Hogarth já completou 35 anos (contra oito com o antigo vocalista) e se tornou uma banda que, se não é tão grande quanto antes, é um bem-sucedido caso de amor com uma legião de fãs fiéis, que bancam suas viagens, participam de eventos e se aproximam dos integrantes num ambiente de camaradagem poucas vezes visto e mantido. E tudo isso começou aqui, com este espetacular disco que é “Seasons End”. Audição obrigatória.

 

 

Setlist dos shows

Rio de Janeiro, 26 de janeiro
São Paulo, 19 de janeiro

The King of Sunset Town
Slàinte Mhath
The Uninvited Guest
Easter
Warm Wet Circles
That Time of the Night (The Short Straw)
Seasons End
Kayleigh
Lavender
Heart of Lothian
Hooks in You

Bis:
Incommunicado

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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