Tony Allen, 1940-2020
O nigeriano Tony Allen, um dos maiores bateristas de todos os tempos, faleceu ontem, em Paris.
Ele nasceu em Lagos, em 1940. Autodidata, começou a tocar bateria aos 18 anos, inspirado pelo jazz. Tony dizia que sua versatilidade no instrumento se devia à necessidade de “saber tocar tudo”, por conta dos empregos como músico integrante de big bands na noite nigeriana do início dos anos 1960, quando os repertórios abrangiam música latina, africana, jazz, highlife e vários outros ritmos.
Em 1969, Tony excursionou pela primeira vez pelos Estados Unidos, já fazendo parte da banda de Fela Kuti. Lá desenvolveu a rotina de praticar em travesseiros todos os dias, assim que acordava. Enquanto músico da banda de Kuti, Allen às vezes precisava tocar por cerca de seis horas ininterruptas.
Para celebrar sua vida – e realizar um velho desejo da Célula Pop – pedi autorização ao meu mestre Carlos Albuquerque para reproduzir um post dele no Facebook que, por sua vez, já reproduzia uma entrevista que ele realizou com Tony Allen em 2012, por conta da primeira visita do músico ao Rio de Janeiro. Como os mestres são gentis, Calbuque assentiu com a reprodução, que você lê abaixo. O original foi publicado no Jornal O Globo.
Em tempo: diz a lenda que, quando Tony saiu da banda de Fela Kuti, precisou ser substituído por … quatro bateristas.
RIO – Tony Allen não está à procura da batida perfeita porque ele já criou uma. Ao lado do mitológico Fela Kuti, com quem trabalhou por muito tempo, o baterista nigeriano de 72 anos é considerado um dos pais do afrobeat, o hipnótico som que mistura, num mesmo caldeirão, jazz, funk e highlife. Se Fela foi a voz e o rosto desafiadores do afrobeat, Allen — que se apresenta no Circo Voador neste domingo — foi o artesão rítmico, o motor de um som que evoluiu da África para o mundo.
Do Talking Heads aos Paralamas do Sucesso, do Antibalas ao Criolo, do Vampire Weekend ao Bixiga 70 e à Abayomy Afrobeat Orquestra — que abre o show do Rio, mais uma iniciativa do projeto Queremos, em noite que terá ainda DJs da festa Makula —, a levada envolvente e militante do afrobeat, surgida nos anos 1970, atravessou fronteiras e gerações, sempre com o DNA de Allen impresso. Com 14 discos solo no currículo, além de outros tantos gravados com Fela, o baterista que Brian Eno descreveu como “provavelmente o melhor do mundo” chega ao Brasil apoiado no projeto Rocket Juice & The Moon (uma parceria com Damon Albarn, de Blur e Gorillaz, e Flea, dos Red Hot Chili Peppers), que acaba de gerar um disco homônimo, e prestes a lançar sua autobiografia, muito justamente intitulada “Tony Allen: Master Drummer of Afrobeat”
— São mais de 50 anos de estrada, e há muito o que contar. Acho até que um livro é muito pouco — diz Allen, por telefone, de Paris, onde vive desde o fim dos anos 1980. — No livro, que fiz com a ajuda de Michael E. Veal, conto um pouco da minha trajetória e também do afrobeat, além de como era a vida em Lagos, na Nigéria, nos anos 1970, um período rico musicalmente e também muito confuso e violento.
Esse não é o début de Allen no Brasil — só no Rio. Ele se apresentou em São Paulo pela primeira vez em 2004, voltando à cidade dois anos depois, para participar do projeto Brasilintime, que unia feras do ritmo — como Wilson das Neves, Mamão (Azymuth) e os americanos Paul Humphrey e James Gadson — e dos toca-discos. Em 2004, ele esteve em Salvador também, tocando no festival PercPan.
— Salvador foi uma experiência incrível, e me senti em casa em meio a todo aquele ambiente percussivo. São Paulo também foi muito bom porque conheci Wilson das Neves, que tem um requinte especial para tocar samba.As maiores influências de Allen, porém, foram seminais bateristas de jazz, como Max Roach e Art Blakey, e também o supremo Clyde Stubblefield, o funky drummer imortalizado por James Brown, que ouviu incessantemente quando estava começando na carreira e tocava em clubes de jazz em Lagos.
— Eles tinham uma coisa especial, um ritmo só deles, e me fizeram pensar que eu poderia também criar o meu som especial, a minha própria batida — conta.
Essa batida começou a ganhar formas em 1964, quando Fela o convidou para se juntar a ele, num grupo que unia highlife — um ritmo bastante popular na Nigéria e em outros países africanos — e jazz.— Fela ficou louco porque eu era o único baterista que conseguia tocar highlife com uma pegada de jazz — lembra Allen. — Naquela época, jazz era considerado som das elites, e ninguém queria se dedicar a ele, o que era uma besteira. Mas foi somente depois que Fela voltou de uma viagem aos Estados Unidos, no final dos anos 1960, e formou o grupo Africa 70 — influenciado pela militância racial na América e pelo som e a postura de artistas como James Brown e Sly Stone — que Tony Allen se sentiu desafiado a criar uma batida diferente, e ainda africana.
— Queria fundir todas as batidas numa só — explica ele sobre a levada polirrítmica do afrobeat. — Adorava os JBs (a banda de James Brown), mas não queria copiar ninguém. Afinal, sou nigeriano, não americano. Cheguei a um ponto de ser o único músico da banda que tinha total liberdade de criação. Eu me tornei o diretor musical do Africa 70, a base das músicas era minha. As demais partes, era Fela quem escrevia e passava para os outros instrumentistas.
O cerco político do governo militar da Nigéria em torno de Fela, e todo o ambiente hedonista da famosa República Kalakuta — a comunidade alternativa criada pelo incendiário músico, onde vivia com suas 27 mulheres e gravava seus discos — foram demais para Allen, que pegou suas baquetas e partiu para outra.
— Era muita gente sugando a energia de Fela, e ele parecia não ver isso, de tão ocupado que estava lutando contra as autoridades e defendendo sua independência — diz o baterista. — Mas não chegamos a brigar. Tanto assim que ele me ajudou em alguns discos solo que fiz depois que me desliguei da banda. Ainda mantivemos contato depois que saí do país, até que soube da sua morte, o que me deixou muito triste. Ele era um gênio, um fora de série.
O musical da Broadway inspirado na vida de Fela, Allen conta que não viu e não gostou (“Não tive vontade. Nenhuma história vai ser melhor do que aquela que vivi”, diz). Garante ser fã dos herdeiros de Fela, em particular Femi Kuti, e conta que visita o país uma vez a cada dois anos.
— Mas há poucos jovens tocando afrobeat em Lagos. A maioria só quer ouvir e tocar hip-hop. Só que isso não é um grande problema. Eu também ouvia funk, que era o equivalente ao hip-hop de hoje. Espero que um dia eles desenvolvam o seu próprio estilo. Seria muito estranho ouvir afrobeat apenas no exterior.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.