O velho mestre da Motown lança álbum conceitual sobre sexo
Smokey Robinson – Gasms
40′, 9 faixas
(Smokey Robinson)
Poucas pessoas poderiam apostar que Smokey Robinson, 83 anos, lançaria um novo álbum em pleno 2023. E menos gente investiria seu suado e escasso tutu na suposição de que Smokey faria um disco conceitual sobre … sexo. Pois é. “Gasms”, seu novo trabalho, é uma obra que tem o sexo como objeto primordial de análise e inspiração. Nem precisava tanto, Smokey é um colosso da música, foi o grande arquiteto do “Motown sound”, a sonoridade que encantou o mundo a partir dos Estados Unidos no início dos anos 1960. É um dos raríssimos compositores que pode se gabar de ter sido gravado pelos Beatles (duas vezes) e, além dos feitos fora do estúdio como vice-presidente da Motown, poeta, figura-chave para a negritude sonora soul, Smokey tem uma carreira musical invejável, seja com seu grupo vocal, The Miracles, seja sem ele. Ele foi considerado “o maior poeta vivo dos Estados Unidos” por ninguém menos que Bob Dylan, ou seja, se há algo que Smokey merece e exige é reverência e respeito. Não dá pra analisar “Gasms” esperando que o velho mestre consiga repetir os triunfos da juventuda, mas não dá pra desprezar o feito ou mesmo achar “estranho” um homem idoso dissertar sobre sua vida sexual ativa e os benefícios disso.
Soul e sexo juntos não é novidade. Posso lembrar sem esforço de três álbuns com esta fusão em mente, “Let’s Get It On” (Marvin Gaye, 1973), “Musical Massage” (Leon Ware, 1976) e “Fire” (Ohio Players, 1974), sem mencionar as várias obras de Prince nos anos 1980 ou o recente “Dirty Computer”, da ótima Janelle Monae, de 2018. Smokey, portanto, não está inovando se comparado ao gênero musical Soul/Funk e suas variáveis modernas, mas, se olharmos para sua carreira, não veremos um paralelo tão nítido. “Gasms”, ao que parece, só poderia vir para ele numa fase da vida em que a percepção que norteia o conceito fosse possível, no caso, só agora. É bom que se diga: “Gasms” significa algo como “uma experiência extremamente gratificante, ótima, explosiva”. No idioma inglês, a expressão vira um sufixo, que confere esta característica a vários setores: eargasm, nerdgasm, musicgasm, foodgasm e, claro, a mais conhecida, orgasm, são possíveis e viáveis na língua de Shakespeare.
Smokey deu entrevistas a vários veículos confirmando que o trabalho versava sobre ele se sentir “sexual” aos 83 e não se conformar com a visão dominante que a sociedade tem de pessoas idosas como seres que não são mais capazes de praticar e pensar em sexo. “Eu ainda me sinto da mesma maneira, só que estou mais sábio. Quando você é jovem e tem esses sentimentos exploratórios sobre sexo, não viveu o suficiente para saber o valor de ter mais experiência. Então, sim, tenho uma atitude diferente em relação a isso, mas ainda me sinto sexual. E espero sempre me sentir assim. OK, cronologicamente, tenho 83 anos, mas não é exatamente a minha idade.”, ele declarou ao jornal britânico The Guardian. A julgar pelas canções que “Gasms” traz, a premissa que ele expôs é totalmente verdadeira.
Musicalmente, “Gasms” é um álbum de Soul/Funk clássico, com um pé firme nos anos 1970. A banda que acompanha o homem tem como destaque a presença de Ray Parker Jr na guitarra e a produção não tenta mascarar os efeitos da passagem do tempo na voz de Smokey. Dá pra perceber que ele não mais sustenta seu falsete celestial como antes, mas é possível notar que se trata do mesmo homem. Com a premissa conceitual do álbum, este detalhe até pontua com mais nitidez o discurso. Há versos interessantes e mesmo transcendentais, como “we are each other’s ecstasy”, que ele menciona em “Roll Around”, mostrando a parte mais, digamos, metafísica do assunto. Em “I Fit In There”, porém, ele já se volta para a questão mais, hum, mecânica, no verso “If you got an inner vacancy / Baby, then make it a place for me”, que mostra a classe do homem em abordar o assunto em sua forma mais “vulgarizável” e, mesmo assim, soar elegante.
Smokey está em turnê pelos Estados Unidos. Tem shows marcados para os próximos meses e vai levar sua novíssima versão para os palcos. Sua obra está além das medidas e sua contribuição para a música do século 20 e dos nossos tempos não pode ser ignorada. “Gasms” é interessante e merece sua atenção, ainda que, não esteja na mesma prateleira de seus maiores clássicos. Mas, é como dissemos: trata-se de Smokey Robinson, ora bolas.
Ouça primeiro: “Roll Around”, “I Fit In There”
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.