Trip Hop – Marco Zero

 

O tempo está voando cada vez mais rápido. Já podemos celebrar os 25 anos do surgimento de um novo estilo musical dentro da aquarela de música eletrônica exuberante dos anos 1990: o Trip Hop. Inicialmente o termo foi cunhado pela revista Mixmag para se referir ao primeiro disco de Tricky, “Maxinquaye”, gravado em 1994 e lançado apenas no ano seguinte, 1995. Quando a turma da Mixmag se deu conta do belo nome que havia criado, entendeu logo que as raízes daquele som estranho estavam plantadas há alguns anos antes e abrangiam um universo maior que o disco. Apesar de ser estranhamente sensacional, “Maxinquaye” era o resultado de algo que já existia desde o fim da década anterior e que estava relacionado de forma indissociável à cidade de Bristol, na costa britânica, para onde rumaram vários contingentes de imigrantes africanos e caribenhos, especialmente a partir do pós-II Guerra. Tais contingentes negros deram origem a manifestações culturais sem as quais o Trip Hop jamais teria surgido.

 

Quando a gente pensa no estilo, logo faz associação a outros dois artistas, além de Tricky: Massive Attack e Portishead. Na verdade, até 1994, Tricky era Tricky Kid, um dos integrantes do próprio Massive. O grupo, também formado por 3D, Mushroom e Daddy G surgiu de uma dessas manifestações culturais a que me referi no fim do parágrafo anterior: um soundsystem. Podemos dizer que “soundsystem” é uma espécie de festa ambulante jamaicana/africana, com som, discos, repertório e operadores de som, no caso, DJ’s. O nome dessa coletividade, dessa galera, era Wild Bunch, em homenagem ao western famoso. Sendo assim, era uma galera multirracial, com ótimo referencial musical – herdado de parentes – e compartilhado. Entre os preferidos do Wild Bunch estavam o hip hop, o funk, o jazz e as trilhas sonoras de filmes da década de 1970, especialmente de blaxploitation. Era uma turma criada nas refavelas de Bristol, interagindo e criando seu próprio som. Quando chegou o fim da década de 1980, eles estavam prontos.

 

Desta ebulição oriunda do Wild Bunch surgiu o Massive Attack inicialmente. Em 1991 eles lançaram um disco que é moderno até hoje, “Blue Lines”. Apesar de não ser exatamente um representante do trip hop, posto que é algo muito maior, talvez uma espécie de cartilha informal da nova música eletrônica/negra para o tempo que chegava. Ele é, ao lado de “Club Classics, vol.1”, do Soul II Soul, o que havia de mais moderno e arrojado sendo feito no mundo àquela época. Música negra, universal, com referências ao passado recente e embebida nas possibilidades eletrônicas disponíveis. Porém, como tudo já mudava muito rápido, a Inglaterra de 1994 era bem diferente da de 1991. Quando o Massive lançou seu segundo disco, “Protection”, já estava fazendo história e, provavelmente, fundando o trip hop. Não por acaso, Tricky era um dos membros mais ativos da turma e aprendeu o suficiente para sair em carreira solo logo após o lançamento do álbum.

 

E que som era esse, afinal? Era a mistura gelada das mesmas influências que caracterizam o Wild Bunch: ritmos negros ancestrais e urbanos, devidamente modificados e reprocessados pelo uso da eletrônica disponível. O que caracterizou “Protection”, em especial, foi a baixa velocidade das batidas, o uso de samples de forma criativa e a presença de músicos/produtores familiarizados com essa noção. Das batidas do hip hop – rápidas, nervosas e pulsantes – veio um som mais visual, demorado, “trippy”, de viajante, o que deu na boa sacada da redação da Mixmag. Dentre esses músicos e produtores, além do próprio pessoal do Massive Attack, um colaborador dos tempos de Wild Bunch foi essencial: Nellee Hooper, que havia assinado, não por acaso, a produção de nada menos do que “Club Classics, vol.1”, do Soul II Soul. Hooper injetou suas sacadas, deu a ideia de chamar Tracey Thorn, cantora do Everything But The Girl e deu origem a um dos mais belos singles de todos os tempos: a faixa-título do disco, “Protection”. Outro músico envolvido com o pessoal desde alguns anos era um certo guitarrista e técnico de estúdio chamado Geoff Barrow.

 

Exposto ao clima e ao novo som, Barrow decidiu fazer suas próprias gravações e convocou uma cantora para participar: Beth Gibbons. Já em 1991 o duo era conhecido como Portishead, gravando seu primeiro disco em 1994, com o título de “Dummy”. A partir disso, o duo passou a contar com a presença de outro membro: Adrian Utley. A sonoridade do Portishead era diferente do que Massive Attack e Tricky haviam criado, uma vez que era muito mais próxima do universo das trilhas sonoras de filmes dos anos 1960, misturados com jazz e batidas ainda mais lentas. Mas também havia muitas similaridades, especialmente no uso de samples. Seu maior single à época, “Glory Box”, foi criado a partir de um sample de “Ike’s Rap II”, de Isaac Hayes. No clipe da canção, Beth Gibbons surge como uma cantora de jazz dos anos 1950. Essas referências são decisivas para compreender a proposta estética do duo. Outros dois singles vieram em seguida: “Numb” e “Sour Times”, sem falar em uma belíssima faixa que tornou-se uma preferida dos fãs: “Strangers”. Em 1995, o Portishead faturaria o Mercury Prize pelo disco.

 

E quanto a “Maxinquaye”, estreia de Tricky como artista solo? É, certamente, o mais audacioso dos três discos mencionados aqui. O sujeito conseguiu conceber uma visão própria – e perturbadora – do próprio trip hop, tornando-o algo ameaçador e claustrofóbico. A música é extremamente urbana, eletrônica e enfumaçada, com Tricky balbuciando as letras em meio a efeitos e timbres inovadores, auxiliado por Martina Topley-Bird, sua companheira à época, uma baita cantora. É interessante notar que o mesmo sample de “Ike’s Rap II”, usado pelo Portishead em “Glory Box”, também propulsiona “Hell Around The Corner”, o “single” do álbum. Outras canções, como “Pumpkin” e “Expressway To Your Heart” dão conta do caráter excepcional do disco e credenciaram Tricky para ocupar um posto na vanguarda daquela música inovadora sendo feita. Ele não desapontou e entregou outras duas obras perturbadoras: “Nearly God” e “Pre-Millenium Tension”, ambas gravadas e lançadas em 1996.

 

Com este tripé de álbuns, “Protection”, “Dummy” e “Maxinquaye”, o trip hop se estabeleceu como um estilo musical sustentável e capaz de fazer frente ao britpop reinante. Pouco tempo depois viriam hordas de bandas, projetos e artistas tirando casquinha da sonoridade hipnotizante criada em Bristol, mas nunca chegariam a arranhar a magia criada lá. Massive Attack, Portishead e Tricky seguiram com suas carreiras e fizeram grandes discos nos anos seguintes. Sua marca, porém, já está deixada definitivamente na cultura musical dos últimos anos do século passado, uma espécie de síntese e reinterpretação de pilares ancestrais.

 

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

2 thoughts on “Trip Hop – Marco Zero

  • 20 de julho de 2019 em 19:43
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    Excelente, só faltou citar o Mezzanine

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    • 20 de julho de 2019 em 22:05
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      Opa, Pedro, tudo bom? A ideia do texto é mostrar o início do trip hop, o marco zero do estilo. O Mezzanine, de 1998, deu continuidade ao que já havia sido iniciado. Não se engane, adoro o álbum. Abraço.

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