O meu Cinema Paradiso

 

 

Via de regra, todo mundo tem um Cinema Paradiso, talvez mais de um. Eu acho que tenho vários e eles são marcos da passagem do tempo. A inexorável, imparável, paciente passagem dos dias e anos. Os Cinemas Paradiso são como carimbos que recebemos da vida sempre que mudamos de fase no jogo. Ou fichas que ganhamos por ficarmos sóbrios mais um dia. Pois bem, se você não está entendendo nada, eu te esclareço. “Cinema Paradiso” é o nome de um filme belíssimo, triste que só ele, dirigido pelo italiano Giuseppe Tornatore em 1988, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro daquele ano e que contem uma das trilhas sonoras mais emblemáticas da carreira de Ennio Morricone. A história, resumidamente, é sobre a amizade de um garoto e um projecionista de uma cidadezinha pobre do sul da Itália. Em comum a ambos há a paixão pelo cinema como arte e pelo cinema como ponto de sociabilidade, no caso, o que dá nome ao longa. É nele que o povo da cidade se encontra, as crianças entram escondidas, tudo acontece. A paixão é tanta que o menino Totó, após idas e vindas da juventude, termina como um cineasta famoso, fato que lhe dará prestígio e fama, mas nunca lhe devolverá a felicidade perdida naqueles dias de juventude. E, bem, o final de “Cinema Paradiso” é um dos mais belos de todos os tempos. É impossível não se emocionar. Ponto final.

 

Pois bem, o seu Cinema Paradiso não precisa, necessariamente, ser um cinema. Pode ser uma rua, um colégio, um lugar onde você via shows…É importante que seja um espaço que você frequentou em outra época, ou em várias épocas. É um lugar que traz boas memórias, que tem o poder de despertar lembranças de tempos idos. Um lugar no qual você esteve com caras e roupas diferentes. Em suma, é um lugar no qual você irá se encontrar, se rever. E, como eu disse, a gente às vezes tem vários. Eu tenho o Cine Roxy como um Cinema Paradiso da minha vida e ontem recebi a notícia triste de que ele encerrou suas atividades. O imóvel, tombado, situado na esquina entre a Rua Bolívar e a Avenida Nossa Senhora de Copacabana, está à venda por 30 milhões de reais. A condição é: quem comprar deverá manter a condição de casa de espetáculo, afinal de contas, está lá no decreto de tombamento.

 

O Roxy é um daqueles marcos que definem o próprio bairro de Copacabana, Zona Sul do Rio. Ele está lá desde 1938 e faria 83 anos por agora. Quando o bairro tornou-se um destino procuradíssimo por uma emergente classe média, o Roxy já estava lá. Minha família o frequentou e, como consequência natural, eu também fui lá inúmeras vezes. Vi filmes emblemáticos na sua sala enorme, com som Sensurround e projeção Cinemascope. As cadeiras tremiam. Fui com meu avô, fui com minha mãe. Fui sozinho, fui com namoradas e minha ex-mulher. Era um lugar que eu ia pra ter certeza de que Copacabana não foi uma ilusão na minha lembrança. Ele estava lá, firme. Os Cinemas Paradiso são lugares que te lembram de você, que te dão força quando a vida turva os pensamentos, sabe? O Roxy estava lá, pronto para me dizer: – olha, você veio mesmo aqui, lembra? Então…

 

Nos anos 1990, a enorme sala se fragmentou em três. Tudo bem, continuou sendo o Roxy, apenas com uma maquiagem diferente. Era uma parada obrigatória em tempos distintos. Era passagem inevitável quando eu ia na saudosa Copadiscos, que ficava na Nossa Senhora, pertinho do cinema, onde eu comprei meus primeiros discos de The Cure e The Police. O Roxy era o lugar em que a gente ia depois de passar no Bob’s – o primeiro do Brasil – da Rua Domingos Ferreira ou da pizzaria Caravele. Eu sempre parava para ver qual o filme estava passando, ler o cartaz de exibição. E respirei de alívio  várias vezes quando seu ar condicionado me dava boas vindas com aquela lufada de vento frio logo que entrava em seu salão art déco, com um lustre deslumbrante e piso de mármore. Antes eu comprava alguma guloseima na bomboniére, ou melhor, o adulto que estava comigo o fazia, mais tarde, eu, adulto e duro, tinha a estratégia de passar no supermercado em frente (já foi Merci, Casas da Banha, Zona Sul…) e comprar algo por um preço bem mais baixo.

 

Vi “E.T” no Roxy. Vi “Contatos Imediatos do Terceiro Grau” no Roxy. Vi o primeiro “Guerra Nas Estrelas”, com oito anos, no Roxy. Vi “O Último Imperador” no Roxy. Copacabana tinha um número altíssimo de cinemas, tendo a rua em que eu morava, Constante Ramos, como um epicentro. Para o lado do Leme, havia o Copacabana, Art-Palácio, o Condor, o Bruni (depois Star). Para o lado do Posto 6, havia o Roxy, o Caruso. Todos transformados em lojas comerciais. Arthur Dapieve disse, como copacabanense que é, que Copacabana era uma sucessão de prédios sem alma, uma vez que a passagem do tempo levava as antigas fachadas, transformando a paisagem. O Roxy parecia imune a este processo, mas não.  Do meu auto-exílio em Niterói, sofro menos. Acho.

 

Por mais que o neoliberalismo tente e acabe cooptando a parte física das pessoas e das coisas, ele jamais será capaz de invadir as mentes. Sendo assim, “em algum lugar do passado”, que é presente ao ser lembrado, o Roxy estará, majestoso, me recebendo em diferentes épocas, todas juntas. E nele eu entro com as pessoas que um dia amei, que também me habitam e me fazem ser quem eu sou. E quem eu serei. Nesta dimensão múltipla, só cabe felicidade. De alguma forma.

 

Em tempo: junto do Roxy estão todos os outros cinemas mencionados aqui,  a Modern Sound, a Copadisco, a Moto Discos, o Banerj, a Confeitaria Colombo – onde eu ia comer vatapá no copinho com minha mãe nos sábados de manhã -, a Som Sete, o Dom Pixote, o Boninos, o Cirandinha e todos esses marcos que faziam de Copacabana…Copacabana.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

2 thoughts on “O meu Cinema Paradiso

  • 8 de junho de 2021 em 23:22
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    Obrigado, mestre. Temos os nossos portos seguros, do contrário, não seria possível. Abraço.

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  • 8 de junho de 2021 em 16:46
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    Texto simplesmente esplêndido, meu caro. O que você chama de seu Cinema Paradiso eu chamo de meu Bar Esperança, mas a simbologia é exatamente a mesma, como certamente é a mesma para zilhões de pessoas. Aquele passado-presente que nos permite seguir em frente, especialmente em momentos difíceis, como os atuais. Grande abraço e parabéns pelo texto e pela sensibilidade!

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