O começo do que levou a um dos melhores álbuns de 2020
Várias vezes emplacado em listas dos “melhores álbuns de 2020”, Fetch the Bolt Cutters trouxe de volta a interessantíssima Fiona Apple. Quinto disco em mais de duas décadas de carreira – o que dá uma ideia do ritmo com que Fiona percorre a cena artística – é um bom pretexto para voltarmos ao ponto inicial. Vamos falar de Tidal, lançado em 1996.
No começo, as coisas aconteceram rápido para Fiona. Com 17 anos, ela gravou uma demo com três músicas. Havia se mudado para Los Angeles, deixando sua cidade natal, Nova York, onde morava com a mãe, uma cantora. O talento precoce foi recompensado com a sorte grande: a fita chegou aos ouvidos de Andy Slater, que se mexeu para que Fiona assinasse com a Epic/Sony. Mais do que isso: ele passou a empresariar a carreira da jovem e foi o produtor de seu primeiro álbum, gravado e lançado quando Fiona tinha 19 anos.
Tidal foi bem recebido pela crítica. Em 2010, a revista Rolling Stone o incluiu entre os 100 melhores álbuns da década de 1990. Também teve sucesso comercial, passando de duas milhões de cópias vendidas em poucos meses. A promoção foi intensa: seis de suas 10 faixas foram lançadas como singles em 1996 e 1997, mesmo período em que foram divulgados cinco vídeos. A artista foi eleita como Melhor Revelação na premiação da MTV.
Boa parte da força de Tidal vem de suas letras. Todas foram compostas por Fiona, que também toca piano em oito faixas. Assumem um tom confessional, algumas parecem vir diretamente de um diário. Um exercício de auto-exposição, que se estende para a capa, uma foto do rosto de Fiona, destacando (ainda mais) seus olhos: simplesmente não dá para desviar deles.
É difícil comentar essas letras, tal sua densidade. As músicas têm refrãos, mas as demais estrofes não se repetem. Fiona tem muita coisa para falar. Uma síntese possível segue a pista deixada pelo título do álbum, referência aos movimentos marítimos em suas várias direções, diversas profundidades, produzindo imagens que são um misto de transparência e refração.
Fiquemos nas alusões. A “garota emburrada” (título de uma das músicas) que “bota tudo(?) pra fora”, multiplicando os opostos. Autodepreciação e autoafirmação. Os homens (seria sempre o mesmo?) que povoam as letras são ora dispensados, ora convocados. Para eles, ela acena com aconchego e, sobretudo, desafios. Fiona sonha com anjos e dá ouvidos a demônios. Depressiva-agressiva? Seu passado é revisto, seu futuro, uma possibilidade.
As inspirações de Fiona vêm de sua própria vida, mas também de referências literárias. A principal delas é a escritora e artista negra Maya Angelou. Em 1993, Angelou leu um de seus poemas na cerimônia de posse de Bill Clinton como presidente. Angelou foi vítima de violência sexual em sua infância, o que também ocorreu com Fiona quando ela tinha 12 anos. Disso fala a música “Sullen Girl”, como ela revelou em entrevistas.
“Revelação” é uma palavra que define muito da experiência que acompanha Fiona na promoção e repercussão de Tidal. Algo que ela teve que administrar na mesma medida que crescia sua fama, com resultados variáveis, que a levaram a pensar em desistir, que a levaram seguir em frente. Os vídeos são parte dessa experiência, oscilando entre uma contida simplicidade (“Shadowboxer”/ “Never is a Promise”) e uma arriscada exposição (“Sleep to Dream”/ “Criminal”). O mesmo ocorria nas performances de Fiona e sua banda, com a artista mais comedida ao piano e mais expansiva quando levantava-se para cantar.
As músicas de Tidal têm uma duração incomum para um álbum pop. Apenas uma tem menos de quatro minutos; seis duram mais de cinco minutos. Na banda reunida por Slater, destaca-se o trabalho do multi-instrumentista Jon Brion. Ele é que assumiria a produção do segundo álbum de Fiona, lançado três anos depois.
A maioria das músicas é carregada pelo piano. Em torno dele, estão dispostos os arranjos que levam percussão e cordas. Jazz e blues são influências que temperam as melodias mais ou menos pop. Assim são as faixas “Sullen Girl”, “Shadowboxer”, “Never is a Promise”, “Slow like Honey”, “The Child is Gone” e “Pale September”.
“First Taste” distingue-se por sua cadência quase caribenha. O clima de festa domina o clipe que promove essa faixa. “Carrion”, que encerra o álbum, combina um refrão no estilo da maioria das faixas com uma levada bossa novista no restante da música. Já a fantasmagórica “Sleep to Dream” flerta com o trip hop.
O destaque do álbum coube a “Criminal”, pela qual Fiona recebeu o Grammy 1997 de Melhor Performance Vocal Feminina de Rock. A música, um dos singles de Tidal, havia sido também nomeada para a Melhor Canção Rock. Com uma base robusta, combina grooves suaves e atmosferas densas. Seu refrão é no estilo “vai-pra-cima”. Há uma parte instrumental longa ao final, com um contraponto entre um piano dissonante e um arranjo hipnotizante de cordas. Uma joia do pop complexo.
Em todas as faixas, não só o que Fiona canta chama a atenção, mas como canta. Seu talento vocal é impressionante, com variações de entonação e diálogos com o instrumental que sinalizam o centro de gravidade das músicas. As inspirações são ecléticas, indo de Ella Fitzgerald, Nina Simone e outras cantoras old-school até o hip hop contemporâneo.
A aparição da jovem Fiona Apple fortaleceu a presença de mulheres dentro do cenário pop-rock dos anos 90 com um trabalho marcado por narrativas especificamente femininas. Ela se insere em uma linhagem que reúne (para ficar apenas na América do Norte) artistas como Tori Amos, Liz Phair e Alanis Morissette, também dedicadas a composições confessionais. Em 1997, Fiona participou da primeira edição da Lilith Fair, só com bandas lideradas por mulheres, dividindo o palco principal com Sheryl Crow, Tracy Chapman, Suzanne Vega e Meredith Brooks, entre outras. Um bem-vindo cutucão no mundo predominantemente masculino do rock.
Outra maneira de caracterizar a música de Fiona no mesmo cenário é a aposta em composições que atenuam o papel das guitarras no rock. Lembremos que a promoção do grunge e de outros gêneros de música alternativa ao mainstream trouxe as guitarras de volta ao centro do palco. Embora a guitarra esteja presente nos acompanhamentos das faixas de Tidal (podendo assumir papel maior em shows), as bases e os destaques ficam com outros instrumentos. Em alguns casos, o rock impactado pela música eletrônica chegou a lugares semelhantes.
Pelas duas razões, com sua voz e letras desafiadoramente femininas, com sua aposta em um rock que engenhosamente deslocava o papel das guitarras, Tidal imprimia sua marca com força e personalidade. O resultado, se faz parte de tendências mais amplas, não deixa de ser singular. Ele vai ser amadurecido e aperfeiçoado no ainda melhor When the Pawn…, segundo álbum da artista. Com ele vinha a resposta às dúvidas que um dia existiram – a começar por ela mesma – sobre o futuro de Fiona Apple. Esse futuro segue até hoje.
Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).