E o disco novo da Fiona Apple?

 

 

Lançado em 17 de abril, há menos de uma semana, “Fetch The Bolt Cutters”, o novo disco da cantora e compositora americana Fiona Apple, foi alçado à condição de obra-prima por, pelo menos, dois veículos importantes: o site Pitchfork e o jornal The New York Times. No dia do lançamento, já dava pra ver formadores de opinião brasileiros repetindo as impressões gringas, dizendo que, sim, se tratava de uma obra-prima, um disco marcante, algo do outro mundo. E já estavam fazendo isso com apenas algumas horas de audição. A gente sabe, criticar disco é algo que parece fácil, achismo que o neoliberalismo banalizou. Sendo assim, qualquer um se arvora a emitir opiniões “abalizadas” sobre álbuns, filmes e tal. Tudo bem, é democrático, mas há que se ter cuidado. Sendo assim, após quase uma semana de audição do trabalho, aqui vai a minha opinião.

 

Fiona é uma artista reclusa. Surgiu em 1996, com um surpreendente disco chamado “Tidal” e deu as caras na MTV como uma nova sensação pós-adolescente. Suas canções tinham intensidade, decalcavam um pouco do trip-hop reinante na época e forneceu ao mundo uma imagem que a própria cantora foi demolindo com o tempo. De pós-teen detonada e com olheiras, Fiona foi se tornando uma cantora e compositora “séria”, dotada de uma notável capacidade de compor boas canções, que abria mão dos formatos mais fáceis do pop e que emprestava muita intensidade às suas performances. Seus discos são momentos raros, algo que ela só realiza quando parece ter algo a dizer de fato. De 1996 para cá, 24 anos, Fiona lançou só agora o seu quinto trabalho. Apesar de significar uma mudança estética em relação aos anteriores, “Fetch The Bolt Cutters” é algo totalmente identificado com a persona que Mrs Apple solidificou ao longo do tempo.

 

E qual é essa persona? Uma mulher reclusa, singular, informada, avessa a badalações e coisas do gênero. Alguém que está viva, no planeta, sofrendo e experimentando o que mulheres de 42 anos (ela nasceu em 13 de setembro de 1977) experimenta. Seu disco recebeu elogios dos mais diversos tipos. “Antipop”. “Intenso”. “Diferente de tudo”. Estas foram algumas expressões usadas para definí-lo. De fato, Fiona Apple trouxe ao ouvinte algumas diferenças neste trabalho: gravado em casa, em seu estúdio, com o auxílio de … cachorros – que aparecem nos créditos e nas faixas – “Fetch…” tem na percussão um outro diferencial. As canções pianísticas de Fiona surgem turbinadas por vários tipos de tambores – da bateria usual a kits de percussão diferentes – tocados por ela e por outros. O piano é a mola-mestra das composições, fornecendo o alicerce para todo o resto. E este resto é Fiona cantando, rapeando, recitando, balbuciando, gritando, emitindo suas letras, que falam de como é estar viva hoje, sendo uma mulher de 42 anos. A mágica está em como fazer isso soar distinto.

 

Para isso, Fiona usa a sua habilidade como compositora. Suas canções não compactuam com o pop fácil ou com quase nenhuma forma de pop, mas ela oferece ao ouvinte alguns momentos de inegável belezura com inflexões e vestígios de informações típicas das canções mais populares. “Under The Table”, por exemplo, tem letra quase declamada, mas, em meio ao turbilhão de vocais de apoio e a alquimia piano-bateria, ela decola com um refrão bem assimilável. Outra faixa que tem ecos de uma canção mais pop é “Rack of His”, com pianos/teclados tangenciando um fiapo de melodia que parece clássica – no sentido anos 1940 do termo – e construindo o meio condutor para a faixa. Os vocais de Fiona brincam com intimidade e grito, num jogo de esconde-esconde de intensidade.

 

“Ladies” é um não-rap, um não-r&b, com Fiona voando sobre uma engenhosa e econômica base de baixo, bateria e teclado, com vocais canto-falados, numa canção sobre mulheres e agruras. “Cosmonauts” é uma lindeza de música, algo que pode encapsular o amor e a impossibilidade deste existir num mundo como o real. O refrão lembra da passagem do tempo e a realidade do presente (Eu e você somos como um casal de cosmonautas, mas hoje existe muito mais gravidade do que quando nos conhecemos). É esquisito mas neste verso resume um monte de situações do cotidiano amoroso. “For Her” é cheia de palmas e efeitos percussivos que servem para uma faixa com abundantes vocais de apoio, mixados em vertiginosa ordem, com espaço para a entrada de bateria/percussão. Parece um exercício de harmonia e canto.

 

Fiona Apple ouviu Yoko Ono e os primeiros discos da Plastic Ono Band, de quem ela já se declarou fã. A música que ele ofereceu neste novo álbum é experimental e ousada, mas não significou uma ruptura com os formatos mais simples da canção popular. Talvez ela nem tenha pensado em fazer isso, uma vez que tal movimento tornaria “Fetch The Bolt Cutters” praticamente impenetrável. Sua intenção é de fazer um disco pessoal, personalíssimo, um instantâneo deste 2020 fora do normal. Não sei se é seu melhor trabalho, mas ele não é uma obra-prima. É um disco bonito, talvez um dos melhores do ano, mas, a exemplo de outros álbuns badalados pela crítica na casa dos 30 e tantos anos, este aqui se vale de influências pouco conhecidas para reavivar formatos interessantes de música. Fiona segue sensacional, mas não produziu nada além do que poderíamos esperar dela, o que, sinceramente, é um elogio.

 

Duração: 51 min.

Faixas: 13

Produção: Fiona Apple

Gravadora: Epic/Sony

4 out of 5 stars (4 / 5)

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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