Reflexões sobre “Girl From Rio”
Há alguns dias o “meme do ônibus” invadiu as redes sociais. Até o ex-presidente Lula, o prefeito do Rio, Eduardo Paes, e vários amigos e amigas – e demais configurações – vieram com aquela frente de ônibus e um trocadalho do carilho no letreiro do coletivo. Além da figura na cadeira de plástico à sua frente. Daí eu fui perguntar o motivo daquela movimentação e veio a resposta: “ah, é do clipe novo da Anitta”. Pois bem, eu nem sabia que a moça tinha lançado alguma coisa nova e, como sou um jornalista-historiador ou vice versa, fui conferir. E não curti.
“Girl From Rio” é o nome da canção. Como as gravações recentes da Anitta, ela tem padrão mundial de qualidade. Produção nos trinques, clipe caro, potencial de venda da imagem do país lá e todas aquelas instâncias de rede social: inclusão, citação, referência e um exército de gente prestando atenção. A música é fraca, mistura de pop song padrão 2020’s com sampling explícito de canção bossanovística clássica, estilizada. E toda a razão de ser passa pelo desejo quase institucional de mostrar o Rio para o exterior. O título já entrega, o clipe é quase uma peça publicitária, da atual condição da cidade e da própria Anitta, ela mesma uma “girl from rio”.
Não é a primeira vez que a “garota do Rio” surge na música pop. Lembrei na hora de “Garota Sangue Bom”, de Fernanda Abreu, lá dos anos 1990. Fernanda lançou a música em seu álbum “Da Lata”, de 1995, usando sua fluência dançante para fazer uma ode à menina carioca, com participação – e composição – de Fausto Fawcett, na qual havia espaço para o recorte geopolítico amplo, contemplando a menina da Zona Norte e da Zona Sul da cidade. E o viés era a dança, o falar, a paquera, tudo embebido pelo imaginário do Rio, com ritmos musicais diversos, do pagode ao funk. Uma construção artística muito superior a “Girl From Rio”. Muito mesmo.
E, claro, além da “Garota Sangue Bom”, várias, inúmeras versões da menina que nasceu e vive no Rio já foram feitas. Se há algo que “Girl From Rio” faz com precisão é demolir a ideia de que o Rio de Janeiro é apenas a cidade da Bossa Nova, dos pontos turísticos, das praias. É também a cidade que existe do outro lado do Túnel Rebouças, a cidade da Avenida Brasil, da Zona Oeste, das milícias, das comunidades, da violência extrema, além de ser a capital de um estado que teve todos os seus governadores encarcerados desde 2000. De alguma forma, tudo isso está no clipe, em que Anitta e uma galera estão num piscinão estilizado, onde se esbaldam com todos os signos de lacração possíveis: mulheres fora dos padrões brancos de beleza, muita bunda – de todos os tipos, cores, tamanhos e movimentos – muita alegria, muita atitude contestadora. E, claro, Anitta aparece curtindo bastante, dançando, empinando sua própria bunda e dando amassos sempre que possível. E, pronto, temos esta versão 2021 da cidade. E eu nem vou dizer que isso está impreciso, imagino que seja isso mesmo.
E talvez seja legítimo, afinal de contas, como disse acima, Anitta é de Honório Gurgel, bairro da Zona Norte do Rio e ela faz questão de lembrar a todos de sua origem humilde, o que é legal. Aliás, o ator com quem ela dá os amassos também é residente do bairro, um “ex-affair” da cantora.
Mas, sei lá, sabe, o Rio não pode ser só isso. O Rio já foi Município Neutro da Corte, capital da república, Cidade Maravilhosa. Tem história aqui. E sei bem que Anitta não é a responsável pelo que fizeram com a cidade, longe disso. O Rio não resistiu a sucessivas escolhas políticas que destruíram a cidade ao longo do tempo. Nem o charme, a graça ou seja lá o que for que o Rio teve alguma vez, tudo isso sucumbiu com o tempo. E a eleição do bispo evangélico marcelo crivella para a prefeitura, em 2016, foi a pá de cal. O Rio acabou, amigos. E vai demorar para voltar – se é que vai – voltar a existir. A cidade hoje sedia manifestações vergonhosas de apoiadores do presidente. Logo em Copacabana, a “Princesinha do Mar”, é antro de gente que vai comemorar mais de 400 mil mortos pela covid-19.
Repito, Anitta nada tem a ver com isso.
Talvez seu clipe tenha sido, pelo menos para mim, uma incômoda certeza de que a cidade mudou, talvez para sempre.
O que me incomoda, bem lá dentro da alma, é que este estado de coisas tenha sido usado para algum tipo de autopromoção lacradora, pseudo-antropológica com viés pessoal, para fazer pessoas bem nascidas da Zona Sul legislarem sobre quem não gostou do clipe, dizendo que a Bossa Nova discriminava os mais pobres – e isso é uma verdade, Roberto Carlos e Tim Maia que o digam – como justificativa para amar a realização de Anitta.
O que fica disso tudo é que a moça de Honório Gurgel nem sempre acerta a mão como cantora, mas, sempre, sempre, sempre provoca discussões e cutuca o sistema e isso, bem, isso é mérito dela, sim.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.
Obrigado, meu amigo Noventista. Seguimos em frente com o noventismo e o flamenguismo. <3
Ah! Sim, isso é fato e ela usa a seu favor.
Mas, esse Rio que cita, que eu concordo e honestamente adoraria conhecer, eu nunca presenciei; por isso, ressalto a contradição na realidade de nós cariocas. O Rio são muitos!!!
Eu acho que o clipe é preciso nas imagens, mas também acho que se aproveita do caos da cidade para lacrar. E isso vira capital pra Anitta, sabe? De resto, o Rio é essa contradição constante. Eu tenho saudades dele.
Excelente reflexão!!!!
Sempre preciso nas palavras.
Como morador de Bangu, minha visão sobre o Rio sempre foi uma, que difere da que expôs, porque penso que é inevitável termos a mesma visão sobre a realidade carioca e suas contradições. Mas mesmo assim eu ainda resisto pelo Rio. Não sei até quando, estou cansado.
Professor CEL, certeira a referência com o hit noventista de Fernanda Abreu. Histórias da música é com o senhor mesmo! Saudações noventistas e rubro-negras.