Milton Nascimento – Clube da Esquina em Niterói

 

Ginásio Caio Martins, 02/11/19, 21:30h

 

Desde que moro em Niterói – lá se vão quase doze anos – vi pouquíssima oferta de shows interessantes. Ofuscada pela proximidade com o Rio, a “Cidade Sorriso” tem potencial para receber apresentações de artistas como Milton Nascimento, Caetano Veloso, Chico Buarque, Paulinho da Viola e gente desta envergadura. Exceto por Djavan, Lulu Santos e Paralamas do Sucesso, a cidade só recebe atrações de escalões inferiores da música. E, como disse, tem condições para isso. O que falta é um espaço apropriado para tal, uma casa noturna, algo profissional e específico. Porque, sinceramente, o Ginásio Caio Martins é uma instalação de outra época, com outros fins. As acomodações são improvisadas, o acesso é confuso, não há corrimãos, sinalização nos degraus, os assentos são apertados e, por conta deste jejum, não há muito traquejo de organização e público. Ou seja, foi tudo meio caótico durante a apresentação de Milton Nascimento na noite de sábado, mas, oras, o artista não tem qualquer culpa disso, certo?

 

Milton há tempos tem uma voz frágil, que lhe permite fazer pouco do que já fez. No palco isso fica mais evidente, seja pela necessidade de alternar algumas interpretações com o guitarrista e percussionista Zé Ricardo, que tem registro parecido com o de Lô Borges, companheiro de Milton na autoria e execução do primeiro “Clube da Esquina”, disco de 1972, presença obrigatória em qualquer lista de melhores álbuns brasileiros de todos os tempos. Este e o segundo “Clube”, de 1978, fornecem todo o repertório desta turnê, que traz Milton revisitando as canções que cravaram seu nome numa espécie de inconsciente coletivo de uma parcela de geração responsável pelo que houve de mais avançado e plural em termos de pensamento e postura diante da vida. Canções de amor, de amizade, de respeito ao próximo, de entendimento pelas diferenças e temas de valorização do Brasil e da América Latina. Tais lembranças são mais que necessárias em tempos como os atuais.

 

Milton subiu ao palco com certo atraso e desfilou este repertório dourado que ele tem. Passeou por canções importantíssimas, logo começando com “Nada Será Como Antes” e adentrando um verdadeiro filé mignon do cancioneiro brasileiro dos anos 1970. O som do Ginásio Caio Martins não estava a contento, tornando impossível ouvir a bateria e a percussão, mas, aos poucos, a coisa foi melhorando. A voz de Milton, bem, já sabemos que ele não é capaz de atingir a pureza dos registros da época, mas, de alguma forma, não dá pra sentir uma diferença abissal nas versões apresentadas na noite de sábado.

 

A banda é correta, exceto pelos arranjos que tentam enfiar solos de saxofone o tempo todo, irritando em várias passagens, sendo “Para Lennon e McCartney” o caso mais acentuado de inteferência desnecessária. Aliás, Milton não se furtou a trazer as canções que Lô cantava no primeiro “Clube”, apresentando versões bacanas de “Paisagem da Janela”, “Trem de Doido”, “Trem Azul” e “Um Girassol da Cor de Seu Cabelo”, que se somaram a “Cravo e Canela”, “Nuvem Cigana”, “Clube da Esquina 2” (com arranjo próximo do registrado em “Angelus”, disco de 1993) e algumas revelações interessantes, como “Casamento de Negros”, “Nascente” (ambas do disco “Clube da Esquina 2”), “Dos Cruces” e “Lilia”. Entre as canções, Milton conta causos e lembra de como o pessoal do Clube se reuniu.

 

O bis é surpreendente. Milton sai do recorte temporal dos Clubes e brinda o público com três de suas mais belas criações: “Encontros e Despedidas”, “Paula e Bebeto” e, talvez sua mais bela canção: “Ponta de Areia”, que, finalmente, me toca lá naquele cofre-forte de emoções que a gente às vezes tranca e perde a chave. Ali, revolvida pela visão do hoje velho Bituca, senti tudo que deveria sentir diante da narrativa da passagem do tempo, do ir e vir de gente e trens, aquelas metáforas para a vida que só os mineiros sabem pensar e escrever. Milton já homenageara seus parceiros escritores: Márcio Borges, Lô Borges e Fernando Brant. O bis foi a coroação do show, me fazendo esquecer de todas as pessoas que passaram na minha frente, indo e vindo com latinhas de cerveja e pratinhos de coxinhas, bolinhas de queijo, croquetes e batatas-fritas, DURANTE O SHOW. Botamos na conta do despreparo do lugar.

 

Milton Nascimento, que morava em Niterói quando compôs boa parte das canções do primeiro “Clube”, voltou à cidade com a autoridade que sua frágil figura hoje suscita. A das lendas que teimam em ainda subir no palco e cantar. A gente agradece.

 

Setlist

Tudo Que Você Podia Ser
Nada Será Como Antes
Cais
Nascente
Cravo e Canela
Casamento de Negros
Um Girassol da Cor de Seu Cabelo
Dos Cruces
Para Lennon e McCartney
San Vicente
Trem de Doido
Estrelas/Clube da Esquina 2
Nuvem Cigana
Lília
Saídas e Bandeiras
Paisagem da Janela
Maria Maria
Trem Azul

Ponta de Areia
Encontros de Despedidas
Paula e Bebeto

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

One thought on “Milton Nascimento – Clube da Esquina em Niterói

  • 11 de novembro de 2019 em 02:18
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    Puxa, eu nem sabia que o Milton estava em turnê focando os Clubes da Esquina – discos que amo fervorosamente. Dois anos atrás vi em Salvador – Concha Acústica do TCA, muito mais adequado para a música – o show da turnê anterior, mais variado nas escolhas de repertório. Tirando a emoção que é ver Milton ao vivo, ficou nítido a fragilidade da saúde do homem e as adaptações nos arranjos para comportar a voz naturalmente menos capaz… tudo perdoado!

    Creio que seja sorte nossa que Milton tenha retornado aos palcos depois dos seus problemas de saúde dos últimos anos. Sejamos gratos e aproveitemos enquanto é tempo. Abraço!

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