A Odisseia dos Tontos – Veredito

 

 

Em tempos de filmes enormes, corremos o risco de deixar passar algumas pequenas pepitas cinematográficas. Este é o caso específico de “A Odisseia dos Tontos”, longa de Sebastian Borensztein (que também dirigiu “Um Conto Chinês”), estrelado por Ricardo Darin, seu filho Chino, e grande elenco. É mais uma dessas provas incontestáveis da excelência do cinema argentino, seja pelas ótimas histórias, seja pela habilidade de misturar comédia e tragédia num mesmo contexto, sem precisar apelar para recursos manjados. Em “A Odisseia…” tudo funciona. Não por acaso, o filme é a maior bilheteria por lá em 2019 e vai representar o país no Oscar.

 

A história se passa na cidadezinha de Alsina, bem longe de Buenos Aires, na qual um grupo de pessoas decide montar uma cooperativa de colheita e processamento de grãos. À frente da empreitada está Fermin Perlassi, um ex-jogador de futebol de um time obscuro, com um passado de poucas glórias, que toca, ao lado de sua esposa, Lídia, um bar no local. Eles têm a ideia de reativar um velho silo na cidade e falam com alguns empresários locais, entre eles, o sensacional Fontana, vivido por Luis Brandoni, que é anarquista e ex-zelador de rodovias aposentado. Após coletar as economias dos participantes, Perlassi deposita o valor no banco da cidade, justo na véspera do Corralito, medida adotada pelo governo neoliberal argentino que bloqueou as poupanças populares, estipulando um valor semanal para saque: 250 pesos.

 

Da noite pro dia, literalmente, os empreendedores se vêem completamente falidos e atordoados, sofrendo, inclusive, uma perda terrivel num acidente automobilístico. Com o passar do tempo, surge o boato de que o grupo foi, na verdade, alvo de um golpe empreendido por poderosos da cidade, a partir de informações privilegiadas sobre o iminente confisco. Quando a mesma medida ocorreu no Brasil, em 1990, havia a certeza de que os grandes investidores e donos de fortunas foram avisados de que haveria limite para operação das poupanças, gerando um grande movimento de saques nas vésperas do confisco.

 

Darin e cia deixam de ser “tontos” para partir numa vingança completa contra quem roubou o suado dinheiro que investiram. Ao longo desta narrativa, o roteiro – baseado no romance “La noche de la usina”, de Eduardo Sacheri, o mesmo de “O Segredo de Seus Olhos” – vai apresentando os personagens com calma suficiente para que saibamos de suas vidas o necessário para gerarmos simpatia. Os pequenos dramas pessoais, as histórias das vidas dos participantes, os detalhes nas cenas e sequências, fazem do longa um espetáculo sensacional.

 

A mensagem é: “tonto”, neste caso, é aquela pessoa que cumpre leis, procurando manter-se dentro da sociedade de forma cooperativa e preocupada com os outros. Até que chega um momento em que tudo isso cai por terra diante dos fatos. E a reação é inevitável. Como disse Darin em entrevista sobre o filme: “pode acontecer em qualquer país de sangue latino”. Quem iria discordar disso?

 

 

Em tempo: a certa altura do filme, Darin e Brandoni conversam sobre a falcatrua da qual foram vítimas. E Brandoni, na pele de seu personagem Fontana, diz a Perlassi/Darin:

 

– Quem é filho da puta de verdade, não sabe que é. Ele acorda de manhã, passa o dia inteiro fazendo os outros de trouxas e não se dá conta de que é um filho da puta.

 

Outra verdade inconteste.

 

La Odisea de los Giles
Argentina, 2019
De Sebastian Borensztein
Com Ricardo Darin, Chino Darin, Luis Brandoni, Veronica Llinas

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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